terça-feira, 3 de março de 2009

O Rio seqüestrado

No começo do século XVIII, o corsário francês René Duguay-Trouin pediu 12 milhões de cruzados aos portugueses como “resgate” pelo Rio de Janeiro. Ele tomou a cidade de assalto com uma força de 5 mil homens, obrigando a população a se esconder nas florestas
por Mônica Cristina Corrêa

REPRODUÇÃO DE GILBERTO FERREZ, ICONOGRAFIA DO RIO DE JANEIRO, 1530-1890, CATÁLOGO ANALÍTICO, VOL.II

Ao chegar ao Rio de Janeiro, a frota do corsário francês Duguay-Trouin aproveitou-se da neblina para surpreender as defesas da cidade/Duguay-Trouin assalta a cidade do Rio de Janeiro em 1711, litografia, Ferdinand Perrot, 1844, Coleção Gilberto Ferrez, Rio de Janeiro .

“Agora, nada de pudicícias. Vamos direto ao ponto: eu fodi mesmo foi uma cidade. Entrei nela à moda lusitana – de borzeguins ao leito. Enfiei-lhe o barrete. Um estupro, protestará você. Não seja dramático a esta altura da história.” (Antônio Torres, O nobre seqüestrador)

Segundo a imaginação do escritor baiano Antônio Torres, a descrição acima teria sido dada por ninguém menos do que uma estátua “falante” do corsário francês René Duguay-Trouin, referindo-se ao seqüestro que perpetrou no Rio de Janeiro, em 1711. Literatura e fantasia à parte, uma memorável invasão francesa ocorreu no século XVIII, quando uma frota de 17 navios e 5 mil homens adentraram a baía de Guanabara e surpreenderam a população carioca.

Em menos de dois meses, o governador do Rio de Janeiro na época, Francisco Castro de Morais, viu-se obrigado a capitular e entregar aos franceses resgate tão pesado que causou à coroa portuguesa um prejuízo imenso. E rendeu ao adversário, malgrado as perdas com o naufrágio de dois de seus navios – aliás, os mais carregados – um lucro de 92%.

As razões que trouxeram Duguay-Trouin, incentivado por seu rei, Luís XIV, ao Rio de Janeiro, foram notoriamente comerciais, muito embora ele as tenha atribuído a uma vingança. Em 1710, um compatriota, François Duclerc, investira contra a resplandecente colônia do Brasil. Mas sem o talento militar de Duguay-Trouin, Duclerc serviu-se de más estratégias e caiu, bem como grande parte de seu exército, prisioneiro dos portugueses. Segundo os relatos franceses, esses teriam sido cruelmente tratados e o capitão injustamente assassinado, apesar da rendição. Sem comprovação dos maus-tratos, tais rumores bastavam a Duguay-Trouin, que pretendia vingar seus concidadãos.



© THE BRIDGEMAN ART LIBRARY/ KEYSTONE

Duguay-Trouin (à esquerda) em reunião com o rei Luís XIV, que o condecorou e lhe deu uma pensão vitalícia por seus serviços à França/ Duguay-Trouin conta seus feitos a Luís XIV, gravura de Mme de Cernel, 1789, coleção particular


A morte de Duclerc nunca ficou devidamente esclarecida. Estando preso no Colégio do Morro do Castelo, teria solicitado transferência alegando que não tinha “vocação para monge” e por isso foi mandado para a casa do Tenente Gomes da Silva, onde acabou assassinado, à noite, por homens que o teriam acusado de “requestador de mulheres”. Nenhum desses dados, porém, era mais forte do que o apelo comercial que moveu Duguay-Trouin e sua tropa. Obviamente, em suas Memórias, o capitão, condecorado pelo rei, não admitiria ser movido por razões financeiras, porém o que fez foi saquear uma colônia portuguesa.

OURO Um dos marinheiros presentes na expedição de Duguay-Trouin-, Guillaume François Parscau Duplessix, entretanto, é mais direto ao relatar os feitos de seu comandante, num diário de bordo que legou à história: “Não se pode acreditar que particulares façam despesas tão grandes com o propósito único de tirar satisfação pelas ofensas que alguns compatriotas receberam em um novo mundo. A seqüência dos acontecimentos veio demonstrar claramente que ambas as partes não escreviam o que realmente pensavam”. O marinheiro refere-se às cartas trocadas entre o capitão francês e o governador do Rio, a propósito de tais ofensas.

A verdade é que a colônia apresentava inúmeras riquezas, sobretudo porque funcionava também como rota de escoamento do ouro. Era a época da mineração. Em 1710, Jean-François Duclerc aparelhou, em Brest, cinco navios de guerra e partiu com mais de 1.500 homens; em 6 de agosto abordou o Rio de Janeiro. Mas não o fez diretamente; pelo que se sabe, desembarcou em Guarariba no dia 11 e com suas tropas pôs-se em marcha rumo à capital. Embora o governador Morais logo soubesse de tal avanço, não tomou providências. O historiador Augusto Tasso Fragoso é contundente em seu livro Os franceses no Rio de Janeiro: “Só no último lance, percebendo que o inimigo se avizinhava e lhe desbordava a posição de defensiva, enviou uma pequena força (300 homens) para ocupar o caminho do outeiro de Nossa Senhora do Desterro [Santa Teresa]. Contra esse pequeno núcleo arremete a tropa de Duclerc e desse modo se trava um combate numa periferia da cidade”. E mais adiante: “Morais nada praticou de realmente louvável para vencê-lo. Coube-lhe a vitória pela simples razão de que o inimigo se lhe veio entregar à prisão, dentro da capital, enjaulando-se numa casa”. Ao atacar a residência do governador, Duclerc acabou cercado.


St. Sebastien Ville Episcopale du Bresil, ilustração, Froger, c.1695, Bilbioteca Nacional, Rio de Janeiro

Vista do Rio de Janeiro no fim do século XVII. Com a descoberta de ouro no Brasil, a cidade se tornou mais vulnerável aos ataques de piratas estrangeiros

Um ano mais tarde, Morais sofreria uma derrota vergonhosa frente a Duguay-Trouin. Se na primeira investida os franceses não contavam com um chefe dos mais audazes, não se pode dizer o mesmo da segunda, e o Rio de Janeiro viveu, decerto, alguns de seus dias mais tenebrosos. São vários os documentos a dar provas disso, a saber: as Memórias (1730), do próprio corsário francês, entre as quais se encontra o episódio da invasão do Rio; o diário de bordo de Duplessix, já mencionado; e um relato de Chancel Lagrange, também presente à expedição – ele, aliás, desempenhou o papel de intérprete entre portugueses e franceses. Há ainda os documentos relativos à devassa que se seguiu na cidade após o ataque e a correspondência do governador Morais.

Somaram-se ao mau desempenho das defesas do Rio de Janeiro alguns fatores ligados à sorte que favoreceram os franceses. Uma neblina completamente incomum baixou sobre a baía de Guanabara e facilitou a penetração francesa, conforme consta do relato de Lagrange: “Uma espessa bruma veio nos favorecer ainda mais”. Duplessix reconhece esses aspectos: “É incontestável que houve tanta sorte de nossa parte quanto covardia da parte dos portugueses”.

Depois de invadir a baía, Duguay-Trouin apossou-se da ilha das Cobras, que os defensores abandonaram, e desembarcou, na praia do Saco de Alferes, 3.300 homens, além de outros 500, que estavam acometidos de escorbuto mas logo se restabeleceram. Sempre sem encontrar oposição do adversário. Após curtos combates, Duguay-Trouin enviou uma intimação ao governador do Rio para que se entregasse. Tendo como resposta uma recusa, o almirante francês decidiu cumprir sua promessa. Os dois dias que se seguiram foram abalados por chuvas tempestuosas e diluvianas. É possível imaginar o estado da cidade após os ataques franceses e tais intempéries.

Sabendo que a população apavorada havia deixado a cidade rumo à floresta, Duguay-Trouin a invadiu e apoderou-se das fortalezas. Seguiu-se a negociação de um resgate, cuja finalização só aponta para discrepâncias: de 12 milhões de cruzados solicitados pelos franceses, só foi possível aos portugueses pagar 610 mil, acrescidos de 100 caixas de açúcar e 200 bois. Os prejuízos, no entanto, ultrapassaram muito o desembolso.

Les campagnes de Duguay-Trouin Rio-Janeiro, gravura, Pierre Mortier, 1756, coleção particular

Plano de ataque de Duguay-Trouin para saquear o Rio de Janeiro

Os soldados de Duguay-Trouin não se contiveram e pilharam a cidade, embora severamente punidos por seu chefe. Tanto nos relatos de Lagrange como nos de Duplessix, as descrições trazem à tona o desperdício. “Com efeito, além de todas essas coisas, que rica pilhagem não foi feita! Quanto não se perdeu ou não pôde ser transportado! Quantos bens preciosos foram destruídos! Quantos ricos tecidos, aos quais se dava importância, foram espezinhados, arrastados pelas ruas e enterrados na lama! (...) Podemos ajuntar, penso eu, os terríveis estragos de toda a espécie nos víveres que abundavam na cidade. (...) Nas ruas, nadava-se, por assim dizer, no vinho que os nossos soldados, a tiros de fuzil ou de pistola, faziam jorrar das pipas encontradas nos depósitos. Os cereais, os legumes secos, as farinhas e outros gêneros formavam com esse vinho uma espécie de lama amassada que dava pena ver”, conta Duplessix. Lagrange é sucinto, mas não menos chocante: “Desperdiçou-se, durante o saque dessa desafortunada cidade, cerca de 3 milhões. Isso sem contar as casas que foram queimadas pelo inimigo em retirada ou por nossas bombas”. Nem a arte sacra fora poupada, embora danificá-la fosse contra os princípios do almirante francês. O saque do Rio de Janeiro deixa evidente o interesse nas riquezas e na glória de que gozaria o corsário junto a seu rei no retorno. Outro fator curioso nos relatos franceses é uma visão extremamente negativa dos portugueses que também pode, de algum modo, explicar tamanho desmando na colônia seqüestrada.

Não é raro os viajantes franceses dizerem que os portugueses são covardes e por isso não teriam defendido sua cidade, coisa que até se podia imputar a seu chefe. O governador Morais mostrou-se realmente muito inábil. Mas as generalizações transcendem tais observações, a ponto de Duplessix aferir que Deus estaria se vingando dos portugueses pela ação dos invasores: “Deus quis servir-se de nós para castigar esse povo, que, entre todos do mundo, é o mais dissoluto em seus costumes e o mais desprezível em seu caráter”. E prossegue: “Com efeito, vícios de toda a espécie reinam soberanamente entre os indivíduos de ambos os sexos e de todas as classes”. Mais adiante, o marinheiro dirá que cabe ao lugar o provérbio italiano “buona terra, mala gente”, pois que o Rio de Janeiro lhe parecia uma das terras mais belas e férteis do mundo. Repetia-se, sem dúvida, a idéia primitiva dos descobridores da América portuguesa, a de que a terra era paradisíaca mas seus habitantes eram execráveis.

LUSOFOBIA

Nem mesmo o reconhecimento da beleza das igrejas e da arte no Rio de Janeiro foi suficiente para mudar essa percepção. Se por um lado Lagrange diz: “À medida que entrávamos nesta grande baía [Guanabara], descortinava-se diante dos nossos olhos a cidade com os magníficos edifícios dos jesuítas e dos beneditinos, edifício sem igual no mundo e que forma com as demais construções a mais bela perspectiva do universo”, por outro, vê-se que nada disso foi motivo para poupar a cidade. Duplessix é um pouco condescendente: “Vê-se, também, nos seus interiores, grande número de quadros e ornamentos, o que demonstra que esse povo não deixa de ter certo gosto pelas obras de arte ou que, pelo menos, as reconhece e deseja possuí-las”.

Decerto esse desprezo pelos portugueses deve ter influído para uma ação tão violenta.

Mesmo com o pagamento de um resgate muito aquém de sua demanda, René Duguay-Trouin içou velas em 13 de novembro de 1711. Sabe-se que sua partida foi providência correta, pois ele ouvira dizer que o governador de Minas Gerais, Antônio de Albuquerque, ciente da invasão no Rio, para lá marchava à frente de 8 mil homens e já se encontrava nas proximidades.

Em 29 de janeiro de 1712, Duguay-Trouin já estava à altura das ilhas dos Açores com sua esquadra. Sofrendo com fortes temporais, dispersaram-se e escaparam por pouco da morte. Sem que estivesse completa a frota, o comandante aportou em Brest em 6 de fevereiro. Dois navios chegaram depois, um deles seguiu para Caiena e os dois mais carregados se perderam para sempre, para grande desgosto do corsário, pois em seu comando havia um de seus melhores homens. Mesmo com essas perdas, os lucros foram significativos para os franceses, mas nada se comparados ao imenso prejuízo dos portugueses e do Rio de Janeiro.

Dois meses depois, Duguay-Trouin encontrava-se em Versalhes em presença do rei, que o gratificou com a pensão de 2 mil francos e o condecorou com a Ordem de São Luís.

Na colônia e em Portugal, procedeu-se à devassa para apuração dos fatos. Considerada a imperícia do governador, apelidado de “O Vaca”, este foi condenado ao degredo na Índia, pena mais tarde revogada. O povo, entretanto, precisou ratear o pagamento do prejuízo até 1716.

Essas invasões do século XVIII fechavam um segundo ciclo de tentativas francesas no Brasil. De todas, a de Duguay-Trouin foi a mais efêmera, porém a mais devastadora, pois não tinha objetivo de implantação, e sim de obter riquezas. Se ainda hoje uma estátua em Saint-Malo, na França, honra René Duguay-Trouin, não se pode dizer que ele tenha tido um papel nobre na história do Brasil.

PIRATAS “OFICIAIS”
Mesmo que pareça, a ação de Duguay-Trouin não era tida como pirataria, pois entre corsários e piratas havia diferença. Enquanto estes existem desde os primórdios do comércio marítimo, os corsários só aparecem em meados do século XVII. Seus ataques eram legitimados por um soberano e, uma vez prisioneiros, eram tratados como militares, não sendo enforcados como os piratas. Corsários obtinham o que se chamava de “carta de marca” do seu rei. Assim, em tempos de guerra, o rei poderia colocar navios da marinha à disposição de armadores particulares. Em alguns casos, as armadas eram “mistas”, como foi o caso dos invasores do Rio em 1711: a um grupo que punha o capital, o rei cedia navios e tripulação em troca de um quinto dos lucros da pilhagem.

A ILUSÃO FRANCESA
A presença francesa na costa brasileira é freqüente desde o descobrimento do país. Aliás, reivindica-se parte dessa descoberta aos franceses; há a hipótese de que o marinheiro Jean Cousin, de Dieppe, tenha estado no Brasil já em 1488, mas nunca se comprovou o fato. Além disso, o capitão de Gonneville, procedendo de Honfleur, na França, esteve na região de Santa Catarina, em 1504, onde permaneceu entre os carijós por seis meses.

Mais significativas foram as tentativas de implantação colonial que os franceses fizeram no Rio de Janeiro, em 1555, sob o comando do almirante Nicolas-Durand de Villegaignon e no Maranhão, em 1612, com a vinda dos padres capuchinhos. Ambas fracassaram, e os franceses foram expulsos pelos portugueses. Mas legaram ao Maranhão o nome da capital, “São Luís”.

PARA SABER MAIS
Outras visões do Rio de Janeiro colonial. Jean Marcel Carvalho França. José Olympio, 2000.

O corsário, uma invasão francesa no Rio de Janeiro – Diário de bordo. Duguay-Trouin. Bom Texto, 2002.

Os franceses no Rio de Janeiro. Auguto Tasso Fragoso. Biblioteca do Exércio, 2003.

O nobre seqüestrador. Antônio Torres. Record, 2003.

Mônica Cristina Corrêa é pós-doutoranda em literatura comparada e relações franco-brasileiras pela USP

Revista Historia Viva

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