quarta-feira, 27 de abril de 2011

Onde o popular e o erudito se encontram


Conheça a história do maestro Letieres Leite e sua Orkestra Rumpilezz, que experimenta confluências entre jazz, música erudita e candomblé
Por Pedro Alexandre Sanches
A sala de concerto está tomada por músicos elegantemente vestidos de branco. Eles formam não uma orquestra, mas uma “orkestra”, composta e disposta de modo algo diferente do habitual. Os 14 músicos de sopro formam um semicírculo ao fundo e estão todos vestidos de bermudas e chinelos. Portando trajes um pouco mais a rigor, cinco percussionistas ocupam o centro e a frente do palco. Eis a Orkestra Rumpilezz, da Bahia, idealizada e dirigida pelo maestro Letieres Leite.
Vestimentas e disposição dos músicos podem parecer detalhes de menor importância, mas não são. Fornecem imagem correspondente aos sons emitidos pela orquestra e definem o que há de subversivo nessa experiência musical. A chamada música erudita, de padrão europeu, sempre privilegiou melodia e harmonia. Ao ritmo, fosse na música “erudita” ou na “popular”, sempre coube o fundo do palco, aquele lugar apelidado de “cozinha”. O inconsciente coletivo dita, de modo geral, que melodia e harmonia são “brancas”, e ritmo é “negro”, seja aqui neste país onde (não) somos racistas, seja em qualquer parte do mundo. Na Rumpilezz, essa lógica foi simbolicamente invertida.
Não é por acaso que o mestiço Letieres Leite, de 50 anos, propõe com sua orkestra demolir o paredão que separava “música erudita” e “música popular”, “Primeiro Mundo” e “Terceiro Mundo”, casa grande & senzala. “O trabalho é inspirado na percussão baiana e dedicado aos percussionistas. A música deles possui rigor, organização, conceitos estáveis”, define Letieres. “É o contrário do que às vezes se pensa, que essa sistematização não existiria pelo fato de esses músicos utilizarem a tradição oral como ferramenta básica. A estrutura da música sacra afrobaiana é extremamente rigorosa, forte, organizada. O figurino acompanha esse raciocínio.”
A matriz essencial para a Rumpilezz é a música de candomblé, ou música sacra afrobaiana, como prefere dizer o maestro. Rum, pi e le são os nomes dos atabaques que norteiam os cânticos e toques de orixás nos ritos religiosos do candomblé. Do jazz vêm a orquestra de sopros e o zz que completa o nome da orkestra. “Houve um período em que o candomblé era perseguido pela polícia. O atabaque e a capoeira eram associados à vadiagem”, evoca Letieres. “Mas toda essa música foi preservada nos terreiros de candomblé, que são o maior centro de preservação da cultura baiana.”
Estamos perto de uma nomenclatura que é das mais polêmicas na música “popular” brasileira do final do século passado. Especialmente ao longo da década de 1990, parte substancial da música afrobaiana foi embalada para consumo imediato sob o rótulo de axé music. E Letieres conhece muito de perto essa realidade: desde 1997, ele é músico e arranjador principal da banda de Ivete Sangalo, uma das líderes incontestáveis da axé music e da indústria do carnaval baiano.
“Prefiro dizer música afrobaiana, porque a palavra axé tem um significado muito maior do que deram”, afirma o arranjador que deixou suas impressões digitais em hits de massa como “Canibal” (1999), “Pererê” (2000), “Festa” (2001), “Sorte Grande” (2003)... Refere-se aos significados do termo iorubá “axé” na religiosidade africana: energia, poder, força da natureza. Assim o maestro define o conjunto heterogêneo que engloba a música sacra afrobaiana, o pulso rítmico de agremiações percussivas como Ilê Aiyê e Olodum e, por que não?, a axé music: “É uma música que foi formatada, preservada e difundida por pessoas negras de baixa escolaridade que não conseguiram sistematizar seu conhecimento”.
Letieres demonstra ter exata percepção da dimensão que tomou a música baiana após a prospecção brutal feita pelas gravadoras multinacionais, em especial a partir do estouro ultracomercial do grupo É o Tchan. “A cultura baiana sofreu uma estagnação do sentido de invenção e investigação, em detrimento de uma arte de consumo mais imediato. Músicos extremamente criativos passaram a trabalhar em escala industrial porque têm retorno financeiro mais rápido.”
Ele é exemplo vivo disso. “Ivete é ímpar, faz os músicos se sentirem valorizados. Emprestou equipamentos para a gente”, elogia. “Ela tem a preocupação de que o ritmo seja valorizado, 70% do palco é a percussão. A prática diária de entretenimento para mim é uma escola. Operacionalmente, é uma rotina pesadíssima, mas é um prazer. A melhor opção profissional é trabalhar com essas estrelas.” Por essas e outras, não é raro Letieres estar ausente das apresentações, como aconteceu em um dos dois concertos da Rumpilezz em São Paulo, em julho passado. Quando isso acontece, a regência é assumida pelo saxofonista e flautista André Becker, de 43 anos.
Trajetória de convergências
A dupla militância de Letieres conduz a uma evidência nem sempre percebida. Por ironia (ou seriam apenas os fatos da vida?), há investimento indireto e direto de Ivete Sangalo (e de sua produtora) no trabalho experimental, rigoroso e musicalmente arrojado da Orkestra Rumpilezz. Com extratos do conhecimento intuitivo e não-sistematizado da música de rua da Bahia, Letieres espalha para além de várias fronteiras o recado de que nossa música (a brasileira, ou melhor, afrobrasileira) não é sabedoria bruta, grosseira ou de segunda categoria. Muito pelo contrário.
A trajetória profissional de Letieres é de várias convergências, desde a juventude. Era percussionista diletante em 1979, quando se tornou estudante de Artes Plásticas na Universidade Federal da Bahia (UFBA), a mesma que noutros tempos abrigou as experimentações euro/afro/brasileiras dos músicos e professores Hans-Joachim Koehlreutter e Walter Smetak, ambos alemães, e Ernst Widmer, suíço. A aproximação do sax e da flauta o levaria à Áustria em 1984, para estudar música no Konservatorium Franz Schubert, de Viena.
Foi nessa fase que começou a experimentar confluências entre jazz, música erudita e candomblé e a compor os temas que culminariam no álbum de estreia Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz (Caco Discos/Biscoito Fino, 2009) e nos cada vez mais frequentes concertos Brasil afora. “Se eu fosse usar o samba, já estava bastante estilizado. Outro elemento já muito utilizado na música instrumental era o baião, com seus derivados. Percebi que quanto ao universo percussivo baiano havia ainda uma timidez, exceto por Moacir Santos e a Orquestra Afro-Brasileira. Comecei a escrever as primeiras composições em 1984”, lembra.
“Todos os temas são originais, só uso a música sacra afrobaiana como referência. Elejo um ritmo, como um toque de orixá. Pego um aguerê dedicado a Oxóssi, desconstruo e vou compondo para cada seção de sopro da big band”, explica. “Todos os instrumentos de sopro utilizam células rítmicas resultantes da desconstrução dos toques de candomblé. A tuba é o atabaque rum, os saxofones são os atabaques le, e assim por diante. Esse é o tecido da Rumpilezz.”
Do período em Viena para cá, aconteceram na Bahia Luiz Caldas e Ilê Aiyê, Olodum e Margareth Menezes, Daniela Mercury e Carlinhos Brown, Banda Eva e É o Tchan, Claudia Leitte e o Rebolation do Parangolé. Multivalente, Letieres tocou com Paulo Moura, Hermeto Pascoal e Raul de Souza, mas também adentrou o mainstream pop, acompanhando Gilberto Gil, Elba Ramalho, Lulu Santos, Daniela Mercury, Jammil e Uma Noites e a Timbalada de Carlinhos Brown.
Ele admite ter admiração pelo jazz baiano testado por Caetano Veloso no disco Livro (1997), mas diz que não há relação direta entre ambas as experiências: “Eu já tinha as composições muito tempo antes. Acredito que a inspiração de Livro deva ser a mesma que a minha, a música ancestral rítmica da Bahia”.
Entre os integrantes da Rumpilezz, há quem toque em filarmônicas e na Orquestra Sinfônica Brasileira, e há quem toque com Daniela, Brown e Ana Carolina. O mestre de percussão, Gabi Guedes, tocou reggae por uma década com o jamaicano Jimmy Cliff. Letieres conta que há “alagbês” do candomblé no corpo de percussionistas da Rumpilezz, e decifra: “Alagbê é o ogan que tem o cargo de cuidar dos toques e cânticos do candomblé. O atabaque rum é o elemento principal do candomblé. É muito difícil alguém tocar o rum se não for um iniciado. Tem que ser um alagbê.”
Como se vê, a Rumpilezz roça diversos elementos que costumam atiçar preconceitos em nossa sociedade ainda eurocêntrica, apesar de repetirmos à exaustão o orgulho pela “democracia racial” definida por Gilberto Freyre – e apesar de Salvador ser “a maior cidade negra fora da África”, como Letieres gosta de lembrar. A música formal produzida por sua orkestra faz fronteiras e estabelece relações diplomáticas (quando não afetivas) com a música negra das ruas, as “cozinhas” percussivas, as não raro demonizadas religiões afrobrasileiras, a axé music.
Igualmente eurocêntricos e embranquecidos, os meios de comunicação e as universidades têm sua responsabilidade na repulsa difusa com que a sociedade trata aquelas modalidades, como Letieres também demarca. “Pela riqueza e diversidade que possui, a percussão não é reverenciada como devia na academia e nos meios de comunicação.”
A participação do artista nesse mosaico está longe de se reduzir ao tão criticado bombardeio midiático da indústria axé-carnavalesca. Ele é fundador e diretor pedagógico da Academia de Música da Bahia, especializada no ensino de música popular. Mantém, no bairro da Amaralina, a Casa Rumpilezz, que além de fazer música passa adiante os saberes da orkestra para crianças (na Rumpilezzinho) e enfrenta questões de gênero: “Fui muito cobrado por não ter mulheres na orquestra, por elas mesmas. Fizemos a Rumpilezz de Saia”, conta.
Por acaso ou pelos fatos da vida, a Orkestra Rumpilezz se consolidou a partir de 2006, em concomitância com o desmoronamento do carlismo baiano e a decadência de seu criador, Antonio Carlos Magalhães (1927-2007). Governada desde janeiro de 2007 por Jaques Wagner (PT), a Bahia tem testemunhado nos primeiros anos deste século a perda de hegemonia do “axé system” e, consequentemente, uma tendência cada vez maior à diversificação musical.
Em 2009, por exemplo, a Rumpilezz participou da faixa “Maldito Mambo”, do disco Chachacha, dos Retrofoguetes, uma banda baiana de surf rock. Letieres reconhece na movimentação política motivações para as mudanças já mais que perceptíveis: “Toda alternância de poder leva à busca de coisas contrárias ao que existia”.
E, sim, o mundo, o Brasil e a Bahia continuam povoados por candidatos potenciais a “mocinhos” e “bandidos”. Mas talvez fosse conveniente dar uma espiadela mais atenta nos músicos da cozinha de uma Ivete Sangalo ou de uma Claudia Leitte, toda vez que os ouvidos ficarem cansados ou congestionados por uma propaganda chata de rede de TV paga ou por um hit chicleteiro de verão. Como diria a pálida gaúcha Elis Regina, as aparências enganam, aos que odeiam e aos que amam.
REVISTA FÓRUM

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