terça-feira, 16 de junho de 2009

Santas e anoréxicas

Na idade média, gordura era sinal de prosperidade e beleza. Tal exuberância causou indignação entre jovens religiosas, que passaram a recusar alimento
por Moacyr Scliar

Por muitos e muitos milênios, e ainda hoje, para vastos contingentes populacionais a falta de alimento, não o excesso deste, constituía ameaça à saúde. Magreza era um perigo; estava associada com muitas doenças, sobretudo a tuberculose. Gordura, pelo contrário, era sinal de saúde.

Estes conceitos mudaram radicalmente. Obesidade, sabe-se hoje, predispõe a doenças. O obeso é, não raro, olhado com irritação; afinal, comer é uma forma primária, e fácil, de gratificação; remete à oralidade da infância. O obeso ocupa espaço, num mundo em que a expressão “estou buscando meu espaço” é constantemente repetida. Obesidade gera culpa e é combatida com providências às vezes drásticas. Mulheres jovens, sobretudo, restringem dramaticamente a ingestão de alimentos, não raro chegando à anorexia nervosa, uma situação que, entre parênteses, só no século XIX foi rotulada como doença. Uma doença para a qual chamaram a atenção os óbitos da cantora americana Karen Carpenter e, mais recentemente, da modelo brasileira Ana Carolina Reston Macan.

A anorexia começou a se tornar visível no início da Idade Moderna. Depois de séculos de pobreza medieval, a Europa entrou num período de prosperidade: as pessoas das classes mais elevadas passaram a se vestir bem, morar bem, comer bem – e muito. A gordura era sinal de prosperidade e, nas mulheres, de beleza, como mostram os quadros de Rubens (1577-1640). Esta exuberância suscitou protestos que, sobretudo entre religiosas jovens, tomaram a forma de recusa do alimento. Um exemplo clássico é o de Santa Catarina de Siena. Nascida em 1347, ela foi educada por uma mãe dominadora, com quem tinha uma relação conflituosa. Muito cedo começou a ter visões místicas e, a partir daí, passou a recusar o alimento e a se flagelar. Só comia alguns vegetais e frutas para não chocar demasiadamente as pessoas com quem convivia. A fragilidade de seu corpo antecipava uma morte precoce e, de fato, faleceu aos 33 anos. Já Santa Maria Madalena de Pazzi (1566-1607) via a vontade de comer como tentação do Diabo; Santa Rosa de Lima (1586-1617), além de jejuar, usava cilício e dormia em cama forrada de cacos de vidro, espinhos e pedras. Às sextas-feiras, dia da Paixão de Cristo, Santa Verônica Giuliana (1660-1727) ingeria apenas cinco sementes de laranja, evocando as cinco chagas de Jesus.

Séculos depois, movida por motivação similar, uma escritora francesa também ficaria conhecida pela anorexia: Simone Weil (1909-1943). De uma culta e abastada família judaica, Weil muito cedo tornou-se militante esquerdista e foi trabalhar como operária numa fábrica: penosa experiência, que retratou em La condition ouvrière (A condição operária). Deixou o judaísmo e passou a praticar um cristianismo peculiar, místico. Seu ascetismo manifestava-se na recusa de alimentos, coisa que aliás vinha desde a infância: aos 5 anos negava-se a comer açúcar, porque o uso do produto era racionado entre soldados franceses que lutavam na Primeira Guerra. Durante a Segunda Guerra, exilada nos Estados Unidos, limitava-se a ingerir o equivalente das rações dadas aos seus concidadãos na França ocupada: sentia-se culpada por ter alimento quando tanta gente passava fome e por ser poupada da guerra enquanto tantos soldados morriam. Seguiu-se a desnutrição, agravando a tuberculose de que já sofria; e, por fim, faleceu em Londres, onde tentava participar da resistência contra os nazistas. Sua trágica existência, mostra, entre outras coisas, que o alimento pode ter um aspecto simbólico importante. Tão importante que às vezes é capaz de ceifar vidas.

Moacyr Scliar é médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.

Revista Mente e Cérebro

2 comentários:

Unknown disse...

É a mais pura verdade!

Lembro que minha avó falava que a mulher casada precisava ser um pouco gordinha, para mostrar ao mundo que o (cachorro) do marido a nutria bem.

Eu que sempre fora magérrima por natureza, embora me alimentasse satisfatóriamente, sofria com isso.

Tomava mil vitaminas e nada. Nunca ouvi falar em dieta e nos males da obesidade. Aceitava-se a pessoa gorda de forma natural.

Depois da mídia consagrar o esqueleto humano como forma de fama e beleza, vejo com tristeza jovens e adolescentes sofrerem de anorexia. Tem medo da comida.

Afirmo que já fui internada por falta de peso, não podia ser doadora por falta de peso. às vezes procuro um obeso, daqueles que se caracterizam como obesidade mórbida e não encontro.

Acredito que a mesma mídia deveria dosar informações para que as crianças em especial não sejam seletivas à favor nem da anorexia nem da obesidade.

Deve haver um ponto de equilíbrio
a ser divulgado!

Muito oprtuno esse post

Parabéns, Eduardo

Grande abraço

Mirse

Anônimo disse...

Oi, Edu, tua proposta de oferecer estes artigos de história é muito legal!

Eu acho que o artigo mostra que o ideário de beleza faz parte de mentalidades que se bifurcam no decorrer da história.

Às vezes a estética rompe os grilhões da beleza física e adentra nos limites da beleza psicológica, daquilo que é aceito como certo e errado.

Da mesma forma, o artigo também leva a uma reflexão. Até que ponto a religiosidade e uma crença individual pode ser julgada como correta. E até que ponto o sacrifício obsessivo deve ser considerada santidade.

Um grande abraço,
Prof_Michel