Historiador aponta viés etnocêntrico no
conjunto da obra do Visconde de Porto Seguro
conjunto da obra do Visconde de Porto Seguro
O interesse de Ribeiro pelo tema remonta à sua dissertação de mestrado, quando analisou o discurso de raça presente nos manuais escolares produzidos no final do século 19 e ao longo do século 20. Durante a investigação, ele deparou com a recorrência de temas quando os autores se dedicavam a pensar a história do Brasil. “Nas obras que tomei para análise, o período colonial sempre era apresentado, com maior ou menor destaque, como a semente da nação. Isso me levou a querer investigar, com a orientação do professor Paulo Miceli, como esse discurso, que normalmente é apresentado como algo natural, foi construído ao longo do tempo”, explica.
A pesquisa de Ribeiro concentrou-se na produção do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838 com o objetivo de “forjar uma memória para a nação brasileira”, que acabara de conquistar a sua independência. Ao analisar os temas, documentos e personagens vinculados ao instituto, o historiador elegeu como objeto principal de investigação a Revista do IHGB, que circula até hoje e cujo primeiro número foi editado em 1839. “Durante o trabalho de prospecção, percebemos que um personagem apresentava-se como emblemático em relação ao tema do nosso interesse, que vinha a ser Francisco Adolfo de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro”, relata.
Embora tenha nascido na região de Sorocaba, interior de São Paulo, em 1816, Varnhagen viveu durante muitos anos fora do Brasil, sobretudo em Portugal, Espanha e Áustria-Hungria. Ele somente teve reconhecida a sua nacionalidade brasileira na década de 40 daquele século por meio de um decreto imperial. “Depois que obteve a cidadania brasileira, Varnhagen foi incorporado à diplomacia nacional, servindo em Portugal e na Espanha. Além disso, por desenvolver pesquisas históricas, foi convidado a integrar o IHGB, onde deu início a uma série de trabalhos. Uma das missões assumidas por ele foi realizar um levantamento nos arquivos europeus sobre o Brasil Colonial, de modo a produzir uma memória nacional. O objetivo final era compilar, sistematizar, organizar, arquivar e, por último, publicar as informações obtidas, principalmente nas páginas da Revista do IHGB”, informa Ribeiro.
A partir da publicação de História Geral do Brasil, Varnhagen lançou-se no esforço para fazer com que a obra fosse aceita como uma produção oficial do IHGB. Para isso, recorreu até mesmo a Dom Pedro II, a quem pediu apoio. A despeito do seu empenho, o livro foi recebido com profundo silêncio pelos seus pares, e o instituto acabou por não acolhê-lo. “Tal recusa o deixou extremamente indignado e lhe valeu vários ataques por parte dos autores românticos e indigenistas que também integravam o IHGB”, diz Ribeiro. Mesmo não desfrutando do reconhecimento almejado entre seus pares, Varnhagen, que recebeu o título de nobreza somente no final da vida, foi alçado, após sua morte, como um historiador símbolo do instituto.
Essa nova condição, infere o autor da tese, certamente deve ter contribuído para que o Brasil “inventado” pelo Visconde de Porto Seguro ganhasse crédito e longevidade. Nesse processo de construção da memória nacional, reforça o pesquisador, Varnhagen trabalhou com enredos temáticos encadeados cronologicamente. Assim, nos seus escritos, as origens do Brasil remontam à época do Descobrimento. É como se a história do Brasil não existisse antes da chegada dos portugueses. Na sequência, o autor de História Geral do Brasil considera a formação do povo, por meio da integração entre negros, índios e brancos. Neste caso, a herança portuguesa se sobrepunha às demais. “No livro, Varnhagen também trabalha com um mito fundador, este relacionado à invasão holandesa. Na visão dele, a união das três raças para expulsar os elementos estrangeiros teria sido o primeiro sinal de nacionalidade”, esclarece o pesquisador.
A abordagem cronológica desemboca, enfim, no que o autor da tese de doutorado classificou de “elos de continuidade”, que teriam sido forjados, no entender de Varnhagen, na transição sem conflitos entre o período Colonial e o Imperial. “Esses enredos temáticos constituíram um modelo de cronologia que se tornou constante nos manuais e livros didáticos de História do Brasil elaborados a partir da segunda metade do século 19 e ao longo do século 20. Se consultarmos as obras de autores do naipe de João Ribeiro, João Pandiá Calógeras, Pedro Calmon, Vicente Tapajós, Boris Furtado, entre outros, será possível identificar a presença da grade cronológica temática esboçada por Varnhagen, ainda que inserida em abordagens teóricas, metodológicas e ideológicas distintas”.
Retornando à frase do professor Amaral Lapa, que abre este texto e que também está consignada na tese de Ribeiro, convém situar a produção de Varnhagen no espaço e no tempo, como adverte o pesquisador. Ele pontua que, como qualquer historiador, o Visconde de Porto Seguro identificava-se com questões da sua época. “Isso implica trazer o historiador-diplomata para o interior dos debates travados naquele período acerca do fazer histórico, como objetivos, procedimentos e compromissos”, detalha. Desse modo, entende Ribeiro, Varnhagen não pode ser considerado um mero reflexo de um projeto político, mas sim um participante deste, na medida em que elaborou suas leituras e interpretações do passado pelas vivências e limites do seu tempo. “Em outros termos, a narrativa da nação de Varnhagen está permeada pelos termos de seu lugar social e das práticas de seu ofício. E foi neste espaço que ele interagiu e elaborou sua obra”. E completa: “Não se pode querer, portanto, definir pretensiosamente por meio de Varnhagen como o Brasil oitocentista pensava o passado e o papel do historiador. Sua obra não é uma janela aberta para toda uma época, mas ela ajuda a compreender um dos possíveis ângulos do seu tempo”.
Jornal da Unicamp
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