quarta-feira, 27 de maio de 2009

A memória afetiva da escravidão

Senhor e seus escravos(Militao de Azevedo)

Fotografias de Militão de Azevedo revelam a trajetória da relação ambígua entre as amas-de-leite e as crianças de seus senhores
Rafaela de Andrade Deiab

A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. (...) Quanto a mim, absorvi-a no leite preto que me amamentou; ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância (...).” A frase de Joaquim Nabuco (1850-1910) mostra como a escravidão deixou marcas profundas naqueles que cresceram durante o período em que ela era vigente no Brasil, cerca de três séculos (até 1888). Em sua autobiografia, Minha formação, Nabuco revela o quanto sua experiência infantil no engenho pernambucano de Massangana, convivendo com os escravos, foi determinante para seu futuro como defensor da causa abolicionista.

No entanto, foram inúmeras as gerações que se formaram embaladas no colo das escravas domésticas, amas-de-leite, mães pretas. Essa relação social criada no cenário da escravidão imortalizou-se em inúmeros retratos por todo o Brasil. O fotógrafo Militão Augusto de Azevedo (1837-1905) fez muitas dessas imagens em seu estúdio em São Paulo. Ainda jovem, começou sua carreira de retratista como aprendiz no ateliê Carneiro & Gaspar, o qual veio a comprar em 1875, alterando-lhe o nome para Photographia Americana. Por esses dois ateliês passaram por volta de 12 mil pessoas, entre 1862 e 1885, cujos retratos ainda se preservam em seis álbuns, que funcionavam como catálogo dos negativos de Militão. Essa indústria de retratos, que se estabiliza no país na segunda metade do século XIX, trouxe certos padrões que se repetiam nas variadas fotografias, fosse em seus formatos (como no clássico carte de visite, com imagens colocadas em suporte rígido de cartão), nos paramentos (fundo, móveis, tapetes) e também nas posições dos clientes. No entanto, alguns desses esquemas que chegam junto com a técnica fotográfica, supostamente neutra, são relidos em diferentes contextos; e isso fica evidente nas imagens de amas com crianças.

A mãe segurando a criança junto ao rosto, apoiando-lhe a cabeça, ou mesmo as costas, com as mãos, era um padrão internacional da época para fotografias com bebês. Isso porque, em função da baixa sensibilidade do negativo, o tempo de exposição era muito longo (por volta de um minuto), sendo complicado manter as crianças imóveis. Aproximar as crianças junto ao rosto e segurá-las pelo dorso era a maneira de obter, portanto, uma postura estática. Mas esse modelo de pose, trazido da Europa juntamente com a fotografia e fotógrafos, foi absorvido segundo a cultura local, de modo que, em muitas imagens (como as apresentadas neste artigo), uma negra posa com a criança branca. Ou seja, em poses internacionalmente indicadas para unir nas fotos mães e filhos, na São Paulo de meados do século XIX, surgem mães pretas acompanhadas de filhos brancos, termos próprios de um contexto marcado pela escravidão doméstica, que promoveu múltiplas relações entre senhores e escravos.



Nos dois primeiros retratos aqui reproduzidos, a ama e o bebê estão no centro e no mesmo plano: ambos eram o foco da imagem. A negra responsável pela amamentação e pelos cuidados com a criança era sua companhia natural nessas fotos de 1870 e 1876. Estando mais habituados com elas, diminuía-se o risco de que os bebês ficassem inquietos durante a feitura do retrato. Além disso, essas fotografias, provavelmente encomendadas por famílias senhoriais, propagandeavam seu status social apresentando sua escravaria em trajes finos da moda. Muitas vezes as negras apresentavam uma estética próxima à das senhoras brancas: cabelos repartidos, brincos, colares e vestido com colarinho alto em renda, o que pode ser observado na imagem de Militão.

A proximidade entre a negra e a criança branca, ainda que justificada em parte pelas limitações da técnica fotográfica, evidencia de modo explícito o vínculo afetivo selado entre essas figuras. Esse é o sentido ordinariamente dado a tais imagens: um registro dessa forte relação sentimental, cultivada por muito tempo desde a mais tenra infância pelo cuidado zeloso da escrava, que atende aos filhos de seu senhor como se fossem seus. E assim, ao tornar-se literalmente a “mãe de criação” dessas crianças, a ama era incorporada à família senhorial como uma escrava de outro quilate, sendo, muitas vezes, alforriada. Retratos do mesmo tipo dos apresentados aqui foram repetidamente, na historiografia brasileira, utilizados para qualificar uma escravidão brasileira mais “amena”, em que nem tudo era arbítrio e exploração, havendo um lugar genuíno para o estabelecimento de verdadeiros laços afetivos entre posições hierarquicamente tão distintas.

Nos anúncios de compra e venda de escravos em jornais, a habilidade no trato com as crianças é elemento de destaque na propaganda das escravas, mostrando que esse cuidado extremado era esperado e desejado pelas famílias: “Mulatinha. Nesta tipografia se dirá quem vende uma mulatinha com sete para oito anos de idade, com princípios de costura e muito jeitosa para carregar crianças (Correio Paulistano, 22/02/1865)”; “Aluga-se uma crioula, sadia, muito própria para tratar de crianças, por ser muito carinhosa. Já sabe costurar, e engomar alguma cousa, sem vício nenhum (Correio Paulistano, 06/01/1865)”.


Gilberto Freyre, em seu livro Casa-grande & senzala, deu muito destaque ao papel das amas-de-leite, mucamas, negras velhas ou, ainda, mães pretas produtoras de laços sentimentais com seus filhos brancos, e toda a família de seus senhores. Segundo o autor pernambucano, elas teriam sido, até mesmo, grandes contribuintes para a formação da cultura mestiça brasileira, uma vez que adocicavam ou amolengavam a cultura portuguesa, então transmitida por elas às crianças. Assim, as histórias lusitanas que contavam nos serões eram adaptadas, tinham seus personagens mudados, e os cenários passavam a conter uma cor local, tornando-se mais compreensivos para os infantes do que as distantes paisagens européias. Além disso, elas ainda davam outro ritmo às mesmas canções de ninar da tradição portuguesa que embalaram gerações. Tinham cuidados com os pequenos que iam da higiene do corpo ao resguardo espiritual, por meio de simpatias, benzeduras e mezinhas; preparavam-lhes comidas especiais, os ensinavam a rezar, além de nutri-los com seu próprio leite.

Mas essa relação entre mãe preta e filho branco não se constituía apenas de modo idílico. Para ter condições de aleitar um filho branco, era necessário que a escrava tivesse engravidado recentemente, tendo, portanto, também um filho natural. Este último era, muitas vezes, preterido diante do filho branco, quando não vendido ou levado para doação nas rodas dos conventos. Além disso, as amas escravas eram obrigadas a amamentar por longos períodos, sendo levadas em ocasiões não raras a um profundo esgotamento físico. Esse mercado do dito “leite mercenário” também aparece nos anúncios dos jornais: “Escrava e filho. Quem quiser comprar uma mulata muito moça, sem vícios, sabendo cozinhar, lavar e engomar e estando com um filho de dois meses e abundante leite, nesta tipografia se dirá quem vende (Correio Paulistano, 05/02/1865)”; “Ama-de-leite. Precisa-se de uma que seja sadia: prefere-se cativa, sem filho (A Província de São Paulo, 14/09/1880)”.

Esse segundo anúncio, além de revelar a cruel preferência por uma escrava recém-parida, com leite, mas sem filhos, indica ainda um contexto já um tanto modificado, em que há clara preferência por negras cativas. Ou seja: nesse momento há amas no mercado que não são mais escravas. Esses novos termos são sinais de grandes modificações de referências culturais já sentidas nos anos 1880, marcados pela progressiva derrocada do sistema escravista e início da imigração para o estado de São Paulo. A incorporação da mão-de-obra imigrante e branca trazia naquele momento transformações no mercado das amas, articuladas a alterações na incorporação de negros e escravos na sociedade como um todo.


Novamente, os anúncios de jornais apresentam sintomas desse processo: “Ama-de-leite. Precisa-se de uma que seja sadia, preferindo-se a cor branca (A Província de São Paulo, 11/01/1883)”; “Ama. Precisa-se de uma preferindo estrangeira (A Província de São Paulo, 03/03/1883)”. A predileção por brancas e estrangeiras sinaliza uma mudança na compreensão sobre o aleitamento ininfantil. Antes, temia-se o enfraquecimento da mãe e a deterioração de sua saúde pela amamentação, daí recorrer-se às amas escravas. Mas, na década de 1880, um novo discurso médico sobre o tema se torna aceite: o leite materno passa a ser entendido como veículo transmissor das qualidades naturais da mãe para o filho, de modo que as características naturais das mães ou amas brancas e estrangeiras eram preferíveis àquelas das amas negras. Esse é também o momento de voga das teorias higienistas e racistas que, supostamente científicas, subsidiavam o estabelecimento de uma diferença natural – e fictícia – entre brancos e negros. O momento era de muitas indefinições sociais advindas do desarranjo do sistema escravista e da maciça imigração no país.

Com a modernização acelerada e com a disseminação dessas teorias, a escravidão começa a ser malvista no Brasil, e o elemento negro torna-se sinal daquele passado retrógrado que não convém ser mais mostrado nos retratos com os bebês. Dessa maneira, as amas negras passam a existir nas fotografias como rastros: uma mão, um punho, até serem completamente banidas das imagens. Os avanços da técnica fotográfica ajudam essa eliminação, ao possibilitar um tempo de exposição consideravelmente menor para a tomada do retrato, o que permitia às crianças serem fotografadas sozinhas.

Nesse sentido, a série de fotografias de Militão de Azevedo deixa evidente o movimento de representação da escravidão: inicialmente (de 1860 até cerca de 1870), valorizadas e naturalizadas pela sociedade, as negras eram expostas junto aos bebês de seu senhor, representando até mesmo, pela sofisticação de sua aparência, o status da casa da qual era propriedade. Já no fim do período escravista, passa a não ser mais de “bom-tom”, tampouco adequado, associar os filhos da elite branca a negras escravas. Isso porque, nesse momento, a escravidão passa a ser sinônimo de uma instituição retrógrada que não se encaixa nas novas ambições de um Brasil civilizado, moderno e branco.


Essa série de retratos das amas expressa, dessa maneira, uma bela metáfora do que fora a escravidão no Brasil: a princípio mostrada com orgulho, de rosto inteiro, depois escondida, em segundo plano, desfocada e retocada, até ser completamente retirada do quadro nacional. No entanto, mesmo encoberta, ela persistia nos hábitos consolidados durante três séculos. Hábitos esses cultivados pela experiência da relação íntima entre amas e crianças, que transmitiu uma memória de histórias, músicas, receitas e cuidados com o corpo e o espírito que reverberam até os dias de hoje.

É muito ambígua, portanto, essa relação social entre mãe preta e filho branco, expressa no laço afetivo entre pessoas pertencentes a diferentes status e hierarquias. Essas barreiras sociais foram, no entanto, transpostas no cotidiano do espaço privado do lar quando a negra e escrava passa a ter poder sobre o filho branco de seu senhor e, até mesmo, autoridade dentro da casa senhorial. A tensão se revela também na assimilação da escrava na família, nesse parentesco afetivo, mas sempre qualificado como uma incorporação de segunda ordem. Tal experiência contraditória com as amas, que escasseou no tempo, foi, talvez, uma das únicas a permitir um verdadeiro reconhecimento do “outro” escravo, um “outro” negro.


Rafaela de Andrade Deiab é mestranda do programa de pós-graduação em antropologia social da universidade de são paulo (USP)

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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