Luana Dandara (Portal Fiocruz)
Dados do Instituto Oswaldo Cruz mostram que, naquele ano, uma epidemia de varíola atingiu a capital. O Rio de Janeiro, aliás, sofria com várias outras doenças (como peste bubônica, tuberculose e febre amarela) e era conhecido no exterior pelo nada elogioso apelido de “túmulo dos estrangeiros”. Só em 1904, cerca de 3.500 pessoas morreram na cidade vítimas da varíola, e chegava a 1.800 o número de internações pela enfermidade apenas em um dos hospitais cariocas, o Hospital São Sebastião.
Contexto histórico: República, abolição e reforma
A vacina antivariólica já havia sido desenvolvida em 1796, pelo médico Edward Jenner, na Inglaterra. No Rio de Janeiro, a vacinação da doença era obrigatória para crianças desde 1837 e para adultos desde 1846, conforme o Código de Posturas do Município. No entanto, a regra não era cumprida porque a produção de vacinas era pequena, tendo alcançado escala comercial apenas em 1884. O imunizante também não era bem aceito pelo povo, ainda desacostumado com a própria ideia da vacinação, e diferentes boatos corriam na época, como o de quem se vacinava ganhava feições bovinas.
Porém, havia muitos outros fatores que criavam um cenário de tensão na cidade, como explica o historiador e pesquisador Carlos Fidelis da Ponte, do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). O país tinha abolido a escravidão e adotado o regime republicano há menos de quinze anos. Havia grupos descontentes com os rumos políticos e sociais do governo. “Entre eles os monarquistas que perderam seus títulos, parte do Exército formado por positivistas que não aprovavam a república oligárquica levada por civis, e ex-escravos que sofriam com a falta de políticas sociais e não conseguiam empregos, vivendo amontoados nos insalubres cortiços da capital”, conta.
“O projeto de urbanização do governo começou a alargar as ruas da cidade, a exemplo do que tinha feito sido em Paris. Boa parte dos cortiços da região Central foram destruídos e a população pobre foi removida de suas moradias, dando início ao projeto de favelização. Além disso, foi lançado um código de posturas municipais que proibiu cães vadios e vacas leiteiras nas ruas, a venda de miúdos e carnes nas bancas da cidade, o costume de andar descalço pelo Centro, assim como passar com porco e gado. Isso tudo foi criando uma insatisfação enorme na população”, detalha o historiador.
A revolta
"A população não aceitava ter a casa invadida para ser vacinado e havia uma forte discussão sobre o direito de o Estado mandar no corpo dos cidadãos. A mesma questão que voltou à tona recentemente, com vacinação contra a covid-19”, lembra Fidelis da Ponte. “Não foi apenas uma questão de ignorância da população, motivada pelos boatos. Figuras como Ruy Barbosa, um intelectual, fizeram discursos inflamados contra a obrigatoriedade da vacina. É importante entender a novidade que a vacinação representava e os muitos fatores relacionados à revolta”, completa.
Depois de a poeira abaixar
Embora os protestos tenham começado pela vacinação, logo se dirigiu aos serviços públicos em geral e ao governo. A Revolta da Vacina durou cinco dias, e nas ruas da capital, bondes foram atacados, virados e queimados. Os manifestantes também romperam fiações elétricas, levantaram barricadas, derrubaram árvores e apedrejaram carros.
A lei que determinava a obrigatoriedade da imunização foi revogada em 16 de novembro, quando também foi decretado o estado de sítio no Rio de Janeiro. Por outro lado, de acordo com o historiador da Casa de Oswaldo Cruz, chegaram a ser presas diversas pessoas que não tinham relação com a revolta, como malandros e cafetões, dando seguimento ao projeto de construção da “Paris tropical”.
Para Fidelis da Ponte, a estratégia usada contra a varíola, por meio da vacinação obrigatória, errou, principalmente, no aspecto da comunicação. “Oswaldo Cruz escrevia tratados, artigos de jornal, textos de cunho acadêmico e científico que detalhavam como a vacina funcionava e os seus efeitos positivos. Mas a grande maioria da população era analfabeta ou semianalfabeta. Os críticos do médico se aproveitavam disso e utilizavam charges publicadas nos jornais,
marchinhas e mesmo os boatos para ironizarem a iniciativa. Eram armas poderosíssimas que convenciam o povo”, salienta o historiador.
“A vacina é, certamente, o melhor instrumento de saúde pública já inventado. Na ausência dos imunizantes, teríamos tido muito mais mortes por um grande número de doenças e teríamos vivido muito mais pandemias. Infelizmente, a vacina voltou a ser questionada recentemente e precisamos defendê-la. A vacina é segura e funciona. A revolta deixa como importante ensinamento que a vacinação não é só uma questão médica, como também sociológica, cultural, antropológica e histórica. Para uma campanha de imunização ser bem-sucedida, é necessário o envolvimento de profissionais de diferentes áreas”, finaliza o historiador Carlos Fidelis da Ponte.