sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Rapidinhas da História... Utopia



o que podemos entender como utopia? 

Carlos Eduardo Berriel
 – Atualmente existe uma discussão bastante avançada sobre o sentido histórico e literário da utopia, e tivemos inclusive um grande congresso internacional, aqui na Unicamp, visando avançar neste sentido.
Indubitavelmente, a utopia é um gênero literário, de composição mista, pois engloba os campos de reflexão da política, da ética, da religião, etc. Ao contrário da crença comum, a utopia não é, dominantemente, uma visão ficcional do futuro, e sim uma reflexão sobre o presente, considerado este como o complexo de graves problemas sociais e políticos que alarmam o ambiente cultural do utopista. A Utopia de Morus, por exemplo, é uma reflexão satírica sobre os graves problemas que a Inglaterra vivia com a dissolução da comunidade feudal e o surgimento da sociedade capitalista.
A série das obras utópicas, que principia com Thomas Morus, surge quando da substituição da comunidade feudal pela sociedade moderna. De forma muito breve, podemos dizer que a comunidade é uma forma de vida coletiva em que seus membros possuem um lugar pelo simples nascimento em seu âmbito. Pobres ou privilegiados, há lugar para todos. Ao contrário, na sociedade moderna, este lugar deverá ser obtido por um processo de concorrência e eliminação dos derrotados. Na comunidade prevalece o costume e as normas da tradição, na sociedade prevalece o interesse econômico. Nas utopias clássicas não há propriedade privada e, consequentemente, nem ricos nem pobres. Este fato, entretanto, não deve ser visto como um prenúncio do socialismo, embora este movimento, muitas vezes, o considere uma forma de ancestralidade. Já na República de Platão há o comunismo de bens, e mesmo o cristianismo primitivo é fortemente considerado pelos autores utópicos.
A utopia nasce, no começo do século XVI, interessada em sopesar os efeitos desta nova forma de vida associada, com a qual nascia o Estado e a sociedade burguesa. As utopias, então, experimentam virtualmente, através de uma composição de traços satíricos e metafóricos, formas possíveis de Estado que possam conviver com a comunidade dos homens. Este desenho imaginário assume a forma de um ideal político, de uma sociedade onde todos estarão bem.
Muitas são as indagações implícitas às utopias clássicas, dos séculos XVI e XVII: como será o Estado que nasce da traumática superação do mundo feudal? Que características terá, se incorporar o máximo da racionalidade cientíbfica em processo de criação? Diante de um Estado alargado ao limite, como viverá o indivíduo? Mantida a religião na nova sociedade, qual será a sua feição? Absorvida e confundida com o Estado, que então terá uma face sagrada? Será possível ao indivíduo construído pelo Humanismo subsistir diante de um Estado absoluto, sustentado pelo racionalismo burguês?
Estas e muitas outras questões, postas pela realidade, são respondidas pelas utopias – e basta isso para dizer que este gênero se alimenta da realidade mais concreta, e não por devaneios sociais, como afirmam seus detratores.
O peso da herança platônica e de outros autores, como Aristóteles, Luciano de Samósata e Santo Agostinho, é enorme. Comumente uma obra utópica traz em si, de forma criptografada, toda a biblioteca de seu autor. Embora lamentem a perda histórica da comunidade, as utopias iniciais costumam ser otimistas com o Estado moderno, vendo neles um instrumento de superação da miséria material e dos vícios societários, como a preguiça, a exploração e a injustiça. Este é apenas um dos paradoxos típicos da utopia. Há nisso uma junção imaginária entre a justiça da comunidade e as conquistas científicas. A utopia nasce também daquele otimismo sobre as possibilidades humanas de escrever seu próprio destino, individual e coletivo, que é a face mais marcante do Humanismo da Renascença.

O homem atual é capaz de produzir utopias? 

Berriel 
– Historicamente, e dentro de seu estatuto literário, as utopias sempre puderam ajudar a compreensão dos quadros culturais, sociais e políticos que as geraram. Se a utopia tiver uma função social hoje, será a mesma de sempre: criar uma imagem do mundo a partir das opções históricas postas pela realidade. Acredito que atualmente – e há mais de um século – a utopia “típica” não é mais escrita. Em seu lugar existe sua irmã gêmea, a distopia, que é a obra que mostra uma sociedade perfeita em sua malignidade. Desta série podemos citar as obras de George Orwell, 1984 e Fazenda de Animais, e a de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo. Toda a consciência crítica do século XX dependeu, decisivamente, destas distopias. Uma outra forma da distopia pode ser a ficção científica, um galho da árvore utópica, e que se caracteriza pela dilatação ao extremo dos efeitos que a tecnologia desprovida de controle ético tem sobre a sociedade.

Até que ponto o individualismo atrapalha ou inibe a formação de utopias coletivas na sociedade contemporânea? 

Berriel 
– Curiosamente, a noção de indivíduo, que nasce na Antiguidade grega, teve um grande desenvolvimento no Renascimento e, inclusive, na obra dos pensadores que foram centrais para a utopia, como Pico della Mirandola e Erasmo de Rotterdam. Entretanto, o indivíduo que eles conceberam não era anti-social, e viam a polis (isto é, o ambiente de civilidade em que viviam) como substrato irrenunciável à sua própria existência individual. Se o indivíduo da Renascença considerava possível considerar sua vida como auto-construção autônoma – o homem como autor de si mesmo – estava a um passo de considerar a vida coletiva como passível de ser fruto de uma deliberação racional e livre. É esta mentalidade que tornou possível a utopia, isto é, a ideia de uma polis construída a partir da livre razão de seus cidadãos. O individualismo, que é contemporâneo, aparece como uma supressão da individualidade da Renascença justamente por sua negação congênita do interesse social.

Uma utopia é ou deve ser algo realizável? 
Berriel 
– Sou da opinião de que as utopias, pelo menos nos seus primeiros dois séculos, existem como obras de ficção política, não sendo diretamente propostas de realização efetiva. Possivelmente, nos entornos da Revolução Francesa, elas poderão ter assumido este caráter de propositura, somado à reflexão ético-política. Mas estou certo de que as utopias mais arquetípicas não oferecem um roteiro estrito para ser seguido por engenheiros sociais – que, aliás, surgem apenas após a Revolução Industrial. As utopias são essencialmente ficções nutridas pela filosofia política.


Uma utopia é ou deve ser algo realizável? 
Berriel 
– Sou da opinião de que as utopias, pelo menos nos seus primeiros dois séculos, existem como obras de ficção política, não sendo diretamente propostas de realização efetiva. Possivelmente, nos entornos da Revolução Francesa, elas poderão ter assumido este caráter de propositura, somado à reflexão ético-política. Mas estou certo de que as utopias mais arquetípicas não oferecem um roteiro estrito para ser seguido por engenheiros sociais – que, aliás, surgem apenas após a Revolução Industrial. As utopias são essencialmente ficções nutridas pela filosofia política.
Jornal da Unicamp

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