quinta-feira, 13 de setembro de 2012

De Minas para a morte



Dois profetas saídos das Gerais não conseguiram se livrar da execução, mesmo com previsões otimistas para Portugal

Adriana Romeiro


Lugar de riquezas minerais, Minas Gerais foi também um solo especialmente fértil para as profecias. Lá surgiram dois profetas que pagariam com a própria vida o preço de suas convicções religiosas nada comuns. O primeiro deles foi o padre Manuel Lopes de Carvalho, que nasceu na Bahia em 1682, mas acabou se transferindo para Minas em 1717, quando virou pároco da pequena Vila do Ouro Branco. O outro foi o português Pedro de Rates Henequim, que chegou às Gerais por volta de 1702 e lá permaneceu por quase vinte anos, vivendo em Sabará, Vila Rica e Itacambira.

Lopes de Carvalho percorreria um longo caminho até se transformar no profeta furioso que assombraria Lisboa. Durante anos ele frequentou o Colégio da Companhia de Jesus em Salvador, entrando em contato com os debates que agitavam os discípulos e adversários do padre Antônio Vieira. Enquanto muitos compartilhavam apaixonadamente das teses proféticas do célebre pregador, divulgando-as em obras manuscritas, outros contestavam a validade delas, acusando-o de interpretar livremente o sentido das Escrituras.  E não faltaram mesmo aqueles que se determinaram a escrever a própria obra profética, propondo novas interpretações.  Mas um episódio em particular o marcaria para o resto da vida: a aparição nos céus da Bahia, em fevereiro de 1698, de um “fatal cometa.” Seu professor, o jesuíta e astrônomo morávio Valentim Estancel (1621-1705), deu ao cometa a forma de uma baleia.

O evento levou Lopes de Carvalho a estudar Astronomia e a computação dos tempos, que o estimularam a realizar “várias experiências pelos mares, e pelas luas, consultando, no mesmo tempo, homens práticos marítimos”. Seus estudos levaram-no à conclusão de que a conta dos tempos estava errada, e que era preciso retornar à Igreja Primitiva. O retorno à Igreja Primitiva esteve durante séculos no centro dos movimentos religiosos que se opuseram à Igreja romana, considerada por seus seguidores uma distorção dos verdadeiros valores pregados por Cristo, que antecedera o Concílio Niceno, ocorrido no ano 325, cuja revogação permitiu a integração da Igreja oriental, do judaísmo e do cristianismo numa única religião. 

Mas foi nas Minas Gerais, em 1717, que suas tendências místico-proféticas ganharam força, estimuladas pelo contato com os círculos milenaristas locais.  Ao que tudo indica, ali viviam letrados especialmente interessados em profecias e vaticínios,  entre os quais estavam judeus familiarizados com a cabala e com as correntes messiânicas em voga na Europa.  Uma obra em especial teve um impacto profundo sobre ele: o pequeno tratado De Regno Christi in terris consummato, do jesuíta Mateus Faletti, sobre as ideias desenvolvidas por Vieira na Clavis Prophetarum. Convencido de que o final dos tempos se aproximava, o padre baiano foi para o Rio de Janeiro e embarcou para Lisboa, disposto a anunciar a todos a boa-nova sobre o advento do Quinto Império. Antes, porém, era preciso denunciar os erros da Igreja Católica, preparando o mundo para a chegada do Messias. Ele pretendia falar com o rei D. João V (1689-1750) e se encontrar com o papa.

A chegada à Corte de um padre determinado a emendar a conta dos tempos causou assombro. As profecias de Lopes de Carvalho atraíam um círculo de admiradores e letrados que incluía o cosmógrafo-mor Manuel Serrão Pimentel – o maior estudioso da geografia e da navegação da época. A Inquisição de Lisboa, que até então ignorara as denúncias, começou a se preocupar com a repercussão das ideias do visionário.

Para não ter que prender um padre nos cárceres do Santo Ofício, o que causaria escândalo e comoção, a Inquisição fez de tudo para obter a retratação de Lopes de Carvalho, apostando que ele abandonaria suas heresias em respeito à Igreja e ao rei. Teólogos e juízes foram chamados para convencê-lo dos seus erros, mas os dias iam se passando e nada parecia surtir efeito. De profeta ele passou a se apresentar como o Messias anunciado no Antigo Testamento, defendendo o judaísmo como a única e verdadeira religião. Sua missão era libertar o povo de Israel e destruir a Igreja Católica. Ao mesmo tempo, afirmava ser o filho de Nossa Senhora, e prometia a D. João V a realização de todas as promessas de Vieira, segundo as quais Portugal viveria glórias superiores às de Salomão, rei de Israel. Vencidos, os inquisidores o jogaram nos cárceres secretos do Santo Ofício.

O processo contra Lopes começou a se arrastar, mas diante da inabalável obstinação do réu, a Inquisição decidiu condená-lo à morte pelo fogo. Finalmente, em 1726, Lisboa se preparou para assistir ao auto de fé mais concorrido de todos os tempos, protagonizado por um padre judaizante. No último instante, quando já saía em procissão, o rei em pessoa dignou-se a visitá-lo, numa tentativa desesperada de evitar o escândalo. Ofereceu proteção e uma pensão em troca de sua abjuração. Convicto, o padre recusou tudo. Mas o pior ainda estava por vir. De passagem por Lisboa, o naturalista francês Charles de Merveilleux assistiu àquele fatídico auto de fé. 

De acordo com seu relato, o réu foi torturado antes de morrer, tendo a pele dos dedos arrancada, em castigo por tocar com eles a Bíblia. Do alto da fogueira, cheio de ódio, amaldiçoou Portugal, exclamando: “É uma grande infâmia e uma enorme vergonha tratar deste modo a um homem que morre por afirmar que há um Deus verdadeiro. Deus vos castigará, desgraçados, por de tal maneira o ofenderdes.”
Não tardaria para que outro profeta saído das Minas percorresse uma trajetória muito parecida com a do profeta baiano. Homem de origens modestas, mas alfabetizado, Pedro de Rates Henequim se dedicou totalmente à mineração e ao estudo das Sagradas Escrituras. Os longos anos de estudo e o contato, nas Minas, com a erudição da cultura hebraica transformariam Henequim num visionário e cabalista sofisticado, absorvido por um projeto ambicioso: a redação de um tratado, que versaria sobre a iminência do Quinto Império, a localização do Paraíso Terrestre e as teses milenaristas do padre Antônio Vieira. 

Em 1722, depois de concluir o tratado intitulado Paraíso Restaurado, Lenho da vida descoberto, ele regressou a Portugal para divulgar suas profecias sobre o final dos tempos. Durante anos perambulou pelas ruas de Lisboa, espalhando suas ideias entre homens analfabetos e letrados, todos fascinados com a eloquência com que expunha sua visão de mundo. Com o crescimento do número de curiosos que o seguiam por todos os lugares, a Inquisição farejou em suas profecias a marca da heresia e da apostasia, isto é,  a renúncia à fé católica. Acabou ficando quase quatro anos preso nos cárceres do Santo Ofício, submetido a interrogatórios constantes. No fim, recebeu a sentença de morte na fogueira, acusado de ser um novo criador de heresias. Na última hora, porém, retratou-se de parte de suas crenças, e a pena foi “atenuada”. Em 21 de junho de 1744, Henequim foi estrangulado em praça pública, teve o corpo queimado e os restos jogados no Rio Tejo.

Mais perturbadora do que o seu destino trágico é a visão de mundo que Henequim elaborou a partir de múltiplas referências eruditas e populares. Influenciado pela obra do padre Vieira, profetizou que o Quinto Império teria como palco não Portugal, mas o interior do Brasil, onde, junto a umas serranias, estaria localizado o Paraíso Terrestre. Retomando os antigos mitos edênicos, dizia que Adão havia sido criado no Brasil, e que os índios americanos, vermelhos como ele, eram seus descendentes. Afirmava ainda que a árvore da vida e a árvore da ciência – mencionadas no livro do Gênesis – eram, na verdade, bananeiras, em cujas folhas Adão havia escrito mensagens aos homens. Quanto aos rios do Paraíso, ele os identificava como os rios São Francisco e Amazonas. 

As profecias de Henequim também anunciavam um longo período de prosperidade para os lusitanos que viviam na América. O ano de 1734 inauguraria os novos tempos, quando, segundo ele, as tribos perdidas de Israel, que andavam espalhadas por toda a América, se reencontrariam. Para ocupar o trono do último Império de Cristo, Henequim escolheu o infante D. Manuel (1697-1766), irmão mais novo de D. João V, a quem tentou convencer a vir para o Brasil, onde seria aclamado imperador da América Meridional.

A trajetória desses dois homens teve um final trágico, mas põe em evidência o deslocamento, para Minas Gerais, do vasto acervo de articulações milenaristas que prometiam a Portugal um Quinto Império de glória e sucesso, quando se realizariam os velhos vaticínios que impregnavam a cultura ibérica. Para muitos, a descoberta do ouro, no final do século XVII, assinalava o início de um novo tempo para os portugueses.  Nas Minas, esse acervo de tradições profético-milenaristas conheceria uma releitura radicalmente nova,  transformando homens comuns como Manuel Lopes de Carvalho e Pedro de Rates Henequim em verdadeiros profetas.

Adriana Romeiro é professora da Universidade Federal de Minas Gerais e autora de Um visionário na corte de D. João V – revolta e milenarismo nas Minas Gerais (UFMG, 2001).

Saiba Mais - Bibliografia

CANTEL, Raymond.  Prophétisme et messianisme dans l’oeuvre d’Antônio Vieira.  Paris:  Hispano-Americanas, 1960.
GOMES, Plínio Freire. Um herege vai ao paraíso – cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

Revista de História da Biblioteca Nacional

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