sábado, 13 de agosto de 2011

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Revoltas árabes ecoam Revolução Francesa, diz historiador

CLAUDIA ANTUNES

Historiador da Revolução Francesa, Robert Darnton anda emocionado com as imagens e informações que chegam do Oriente Médio. "É o tipo de coisa que faz o seu peito apertar, traz lágrimas aos olhos e faz você pensar que a humanidade pode se regenerar."

O professor de Harvard vê neste 2011 ecos de 1789 e outros períodos revolucionários --na rebelião contra a tirania e na reafirmação do que chama de "possibilismo", espécie de explosão utópica que faz populações acreditarem que são capazes de mudar regimes que antes pareciam inamovíveis.

Testemunha da queda do Muro de Berlim, em 1989, Darnton adverte porém que é cedo para chamar os eventos atuais de revoluções. "Vamos demorar a saber se haverá uma mudança fundamental."

Abaixo, a íntegra da entrevista.

FOLHA - Observando os acontecimentos no Oriente Médio, o sr. diria que o lema da Revolução Francesa liberdade, igualdade, fraternidade está vivo?
ROBERT DARNTON - Bem, não tenho tanta certeza sobre a fraternidade porque há mulheres envolvidas, e a palavra teria sentido diferente hoje do que tinha no século 18. Tivemos o movimento de liberação feminina, e está claro que esses protestos no Cairo e em outros lugares não foram feitos só por homens.
Mas certamente liberdade e igualdade estão presentes, em especial a liberdade. O interessante é que a maioria dos protestos no mundo árabe se dirige contra o que é visto como tirania ou despotismo. Claro que as pessoas querem empregos e melhores condições de vida, mas parecem protestar especialmente contra os abusos e a corrupção do poder.
Isso é fascinante porque acho que era o que ocorria também no século 18. Segundo a interpretação marxista, a Revolução Francesa foi uma luta de classes [da burguesia contra a aristocracia feudal]. Havia conflitos de classe, claro, mas não acho que isso explique aquela revolução. Do mesmo modo, não acredito que explique o que está acontecendo no mundo árabe, mesmo que a pobreza seja um fator crucial.
Muito da minha pesquisa sobre a Revolução Francesa é revisionista no sentido de que mostro que o despotismo era o fator fundamental nas primeiras fases e mesmo durante o período do Terror [de execução em massa dos considerados contrarrevolucionários]. Esse é um dos aspectos em que encontro ecos de 1789 em 2011.

Quando me refiro a fraternidade no caso, me refiro à humanidade, não só aos homens.
Acho que o seu entendimento é correto. A referência [no século 18] era às reivindicações universais de liberação. Nesse sentido, a fraternidade é ainda hoje relevante. Mas não acho que você encontrará pessoas usando essa palavra no mesmo sentido usado há 200 anos.

No livro "Ecos da Marselhesa", o historiador Eric Hobsbawm, que é marxista, diz que a Revolução Francesa plantou uma ideia mais ampla do que a luta de classes, a de que a ação dos povos pode mudar a história. O sr. concorda?
Completamente. Sou amigo de Hobsbawm e acho que ele está certo nisso. Mas a antiga fórmula marxista é que uma revolução é uma contradição entre as relações sociais de produção e as forças produtivas. E não vejo nada disso acontecendo hoje.
Temos em geral dois modelos que competem pela interpretação das revoluções: o marxista e o que vem de [o pensador francês Alexis de] Tocqueville, que tem muito apelo no Ocidente liberal. Sua ênfase é na centralização do poder em um só lugar, em geral a capital, na ideologia e na melhoria de condições econômicas como fator de aumento das expectativas, que então são frustradas.
Tenho procurado sinais desse modelo no Egito e em outros lugares. Não tenho a pretensão de ser um especialista na região, mas vejo lá três coisas que sobressaem.

E quais são elas?
A importância da comunicação e da opinião pública; o que chamo de possibilismo, que é do que fala Hobsbawm quando se refere à mobilização das massas; e por fim o poder dos símbolos.

O sr. comparou os "rumores públicos" da época da Revolução Francesa com as redes sociais virtuais de hoje...
Os analistas destacam o papel de Twitter, Facebook, câmeras digitais etc. Diria que é um pouco mais complicado. Além da existência crucial de novos meios, está o que chamo de força eletrizante de acontecimentos reais, que foram transmitidos e amplificados por eles, criando uma consciência, uma imaginação coletiva.
O movimento de 25 de Janeiro no Cairo foi isso. Não podemos simplesmente dizer que mídia moderna possibilitou a derrubada de regimes tirânicos. É o modo como a mídia é usada. O fato de esse rapaz, Wael Ghonim [diretor do Google], ter posto no Facebook a imagem dessa pobre vítima de violência policial [o jovem Khaled Said] é tão importante quanto a existência do Facebook. O que importa é a habilidade de encontrar símbolos que energizam a imaginação coletiva.

E o que o sr. quer dizer com possibilismo?
Me refiro à liberação de uma espécie de energia utópica com manifestações massivas. O poder da rua, do contato humano, a transmissão oral de mensagens _afinal quando a internet foi cortada a palavra foi transmitida boca a boca. É isso que os franceses queriam dizer quando falavam de "emoções populares" para se referir a tumultos, revoltas.
Há uma dimensão passional que torna as pessoas convencidas de que elas podem mudar coisas que antes pareciam inamovíveis, obter coisas que antes pareciam fora de suas possibilidades. Creio que esse sentido de energia utópica, ou possibilismo, foi liberado nas grandes manifestações no Oriente Médio e norte da África.

E o sr. identificaria os símbolos que potencializam esse sentimento?
É o meu terceiro ponto, o poder simbólico, que é um poder real, capaz de derrubar regimes. Ele envolve ações coletivas como tomar uma praça central, como a Tahrir, e outras praças na região. É como tomar a Bastilha, que se tornou um símbolo do despotismo, apesar de só haver sete pessoas lá no 14 de Julho de 1789.
Passei meses lendo os arquivos da Bastilha e vi que não era um centro de tortura. Mas era um símbolo do abuso de poder. O que acontece é que os manifestantes se unem em torno de um símbolo e particularmente de um inimigo comum, que foi o que [o ex-ditador egípcio Hosni] Mubarak se tornou. Você via esses retratos de Mubarak que as pessoas levavam para os protestos, com orelhas de burro, chifres. Elas estavam dessacrando um símbolo, e acho que isso tem um poder imenso para energizar pessoas que estavam apavoradas com o poder arbitrário que ele representava.

O sr. fez uma comparação entre o papel do revolucionário francês Camille Desmoulins [que chamou à tomada da Bastilha] e o de Ghonim, que deu novo impulso aos manifestantes egípcios ao chorar na TV após sua libertação da prisão.
O interessante é que a maneira como essa entrevista eletrizou os egípcios tem a ver com o ceticismo das pessoas em relação à TV, até então controlada pelo governo. De repente elas estão assistindo e ele [Ghonim] desaba ao saber que manifestantes haviam sido mortos e deixa o estúdio. Havia tanta autenticidade em sua reação que ela rompeu a artificialidade das transmissões habituais.
Na Polônia [comunista], quando a TV anunciou que o sindicato livre Solidariedade havia sido reconhecido pelo regime, ninguém acreditou. É uma situação parecida. A mídia é tão manipulada nesses regimes autocráticos que as pessoas param de acreditar, e algo como esse incidente com Ghonim desafio esse ceticismo. Há esse elemento de autenticidade que pode ser a pólvora que desencadeia as emoções populares.

O sr. diz que a libertação da tirania é a reivindicação mestra nas rebeliões atuais. Um dado interessante é que mesmo os governantes que não eram herdeiros de dinastias monárquicas, como Mubarak ou o líbio Muammar Gaddafi, pretendiam transferir o poder aos filhos. Há um elemento de republicanismo também comum a 1789, não?
Certamente. Dinastias estavam sendo criadas por pessoas que no passado se disseram revolucionárias, mas ficaram no poder por tempo demais. Nesse sentido podemos dizer que as revoltas têm caráter republicano, palavra que tem conotações importantes. Fala-se em republicanismo cívico para evocar o ideal de comunidade e participação cidadã na vida coletiva de uma entidade política. Algo assim está acontecendo e aconteceu na Revolução Francesa, uma emoção republicana, um surto de consciência coletiva dirigido contra o alvo visto como tirânico.

Podemos identificar uma revolução no momento em que ela acontece ou temos que esperar? No Oriente Médio, não está claro que tipos de regime surgirão.
A palavra revolução é usada para tudo e perde sua força. Fala-se em revolução nas técnicas do futebol, na moda. Mas se por revolução nos referimos à transformação de um sistema político pela violência, por rebeliões populares, temos que esperar. Vamos demorar a saber se haverá uma mudança fundamental ou não. Nos sentimos muito tocados pela bravura do povo egípcio, por exemplo, por sua audácia, e queremos chamar o que está acontecendo de revolução. Mas temos que esperar a poeira assentar e examinar todos os elementos que entraram na crise, na explosão e na reconstrução antes de poder determinar a profundidade desses eventos.

No caso da Revolução Francesa, as pessoas que a estavam vivendo a chamavam já desse modo, não?
Sim. Passei algum tempo pesquisando o significado da palavra em francês, e ela está ligada ao verbo girar, um movimento de volta a um ponto inicial. Mas quando as pessoas falavam que estavam fazendo uma revolução estavam dando um novo significado à palavra. Mas ouso dizer que em alguns casos há pessoas que se denominam revolucionárias que na verdade promovem apenas um tumulto que se esgota e não muda nada.

O sr. fala de revoluções de expectativas crescentes, segundo a tese de Tocqueville, e nos casos de Tunísia e Egito isso fez parte do diagnóstico: uma população jovem, com maior nível de educação que seus pais e avós, mas que não via meios de progresso num sistema autoritário.
Acho que esse foi o caso. E envolveu também intelectuais alijados. Está claro que muitos manifestantes nesses dois países eram jovens universitários que se uniram também a trabalhadores. Eram desempregados qualificados que sentiam que sua vida estava sendo desperdiçada, que não havia lugar para eles no velho regime. O fato de essas pessoas serem tão jovens e tão educadas é para mim crucial e isso se encaixa no modelo geral de Tocqueville para revoluções.

Uma outra comparação possível é com as revoluções de 1989 no Leste Europeu. Lá, como no Oriente Médio, não havia uma vanguarda política clara como os jacobinos na França ou os bolcheviques na Rússia. Após o fim do comunismo, ex-comunistas assumiram o poder em muitos países. Isso pode acontecer também no Oriente Médio?
Acho que é um ponto válido, e não sei a resposta. No caso dos clubes dos jacobinos, ele não existiam antes de 1789, se desenvolveram naquele ano e nos seguintes. Alguns historiadores argumentam que eles tinham precursores nas chamadas "sociedades de pensamento", grupos de intelectuais, mas não acho que isso seja verdade. No caso da Revolução Russa, havia um partido leninista altamente organizado. Não vejo nada parecido no Egito, Tunísia ou Iêmen.
As pessoas mencionariam os grupos islamistas, como a Irmandade Muçulmana no Egito. Pode ser que ela se torne o ingrediente jacobino, mas não sei. Minha impressão é que há uma noção muito variada e desorganizada do "povo" indo às ruas, como havia na França em 1789. Mas não vejo nenhum tipo de estrutura preexistente em torno da qual o poder pode se concentrar para empurrar a revolução para o próximo estágio. Pode ser que esteja lá e não a descobrimos ainda.

Por que as revoluções são tão raras e tão difíceis de prever?
Não sei. Ninguém previu esta explosão agora. E eu estava em Berlim em 1989 quando o Muro caiu, no Instituto de Estudos Avançados, com especialistas de todo tipo, e ninguém tinha a mínima noção de que estava para acontecer o momento que poria fim à Guerra Fria.
Na verdade não entendemos as forças profundas da história. Eles entram em erupção subitamente e nos fazem repensar nossas categorias de entendimento. Por isso falo em "possibilismo". Nós historiadores que apenas medimos o preço dos grãos fracassamos em levar isso em consideração.

Por que a influência global da Revolução Francesa é maior do que a da Americana [1776], se houve influência mútua entre ambas e esta aconteceu antes?
É difícil medir influência. No entanto é irrefutável que a Revolução Francesa teve tremenda influência nos séculos 19 e 20. A apropriada pelos marxistas, se tornou um ingrediente da Guerra Fria. Foi vista como a mãe de todas as revoluções, e tenho que admitir que essa é a minha visão. Mesmo Leon Trotsky [1879-1940] na Rússia estava tão convencido do modelo francês que começou a ver sintomas de uma reação termidoriana [referência à condenação à morte de Maximilien Robespierre e ao fim do comando jacobino da revolução, em 1794].
A Revolução Americana jamais foi tratada dessa forma. Mas foi um evento revolucionário e importante de outras maneiras, em particular na noção de uma colônia derrubar o país-mãe e criar uma nova sociedade com seu próprio sistema constitucional. Me parece que esse exemplo também teve ressonância. Há diferentes tipos de revolução, mas acho que a dimensão, o drama e a violência da Francesa foram muitos maiores do que os da Americana.

Há algo mais que o sr. gostaria de acrescentar?
Só que eu acho que [os acontecimentos no Oriente Médio] são comoventes demais, e inspiradores. É o tipo de coisa que faz o seu coração apertar, traz lágrimas aos olhos e faz você pensar que a humanidade pode se regenerar. Há essa enorme população de pessoas vivendo na pobreza, submetidas à tirania e à tortura, e elas tiveram a coragem de ir às ruas e derrubar regimes que monopolizavam o poder. É de tirar o fôlego. Eu só espero que isso não degenere em guerra civil e no restabelecimento de sistemas de interesses escusos e corrupção.

RAIO-X

NOME: Nome: Robert Darnton, 71, nascido em Nova York
CARGOS: Professor do Departamento de História de Harvard, é diretor das bibliotecas da universidade
ESPECIALIDADES: História cultural da Revolução Francesa e história do livro e da imprensa. Acha que o futuro é digital, mas que o livro, impresso ou eletrônico, "está muito vivo"
LIVROS: "O Grande Massacre dos Gatos" (Graal), "O Iluminismo como Negócio", "Boemia Literária e Revolução", O Beijo de Lamourette: Mídia, Cultura e Revolução" (os três últimos da Companhia das Letras), entre outros
Folha de São Paulo

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