quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Rousseau e a arte de observar e julgar os homens (Parte 3)


Claudio Araujo Reis

Universidade de Brasília / UnB - Departamento de Filosofia


Em vista, portanto, da necessidade de se chegar a uma conclusão correta, o (re)conhecimento da bondade natural do homem tem de vir acompanhada de sua contrapartida, sem o que essa conclusão seria necessariamente falsificada:

Que ele saiba que o homem é naturalmente bom (...); mas que ele veja como a sociedade deprava e perverte os homens, que ele encontre nos preconceitos deles a fonte de seus vícios; que ele seja levado a estimar cada indivíduo, mas que despreze a multidão, que veja que todos os homens vestem mais ou menos a mesma máscara, mas que saiba também que há rostos mais bonitos do que a máscara que os cobre. (OC IV, 525)

Um pouco antes, Rousseau já observava:

Para guiá-lo nesta busca, após tê-lo mostrado os homens a partir dos acidentes comuns à espécie, é preciso agora mostrá-los a ele a partir de suas diferenças. Aqui entra a medida da desigualdade natural e civil e o quadro de toda a ordem social. (OC IV, 524)

O problema de Émile, portanto, define-se assim: ele conhece o "coração humano" (que deve ser tomado aqui no seu alcance universal, como referindo-se à natureza humana e ao princípio da bondade natural) e sabe reconhecer em cada um a medida da humanidade — sabe reconhecer-se a si mesmo nos outros. Mas, na ordem moral, a experiência que tem de afrontar é a da diferença, da desigualdade. O aprendizado que lhe cabe, assim, é justamente o aprendizado da desigualdade — e, em especial, o de um subproduto dela, a dissimulação.

Tratando-se agora de ver por sob as máscaras, "conhecer o coração humano" ganha um sentido mais restrito. Não basta mais apenas conhecer a natureza humana para conhecer os homens. Da mesma forma, se a experiência que Émile tem de si mesmo basta para o primeiro conhecimento, o segundo está além de toda a experiência que já teve. Nesta medida, é preciso fornecer-lhe essa experiência, com o cuidado, no entanto, de administrar os efeitos que possa ter sobre seus sentimentos — em particular, sobre os sentimentos que o movem em direção aos outros e que vão determinar suas relações com eles. Rousseau diz:

Nesse intuito, importa tomar um caminho oposto ao que seguimos até aqui e instruir o jovem antes pela experiência dos outros do que por sua própria experiência. Se os homens o enganam, ele os odiará; mas se, respeitado por eles, ele os vê enganarem-se mutuamente, terá piedade deles. O espetáculo do mundo, dizia Pitágoras, assemelha-se ao dos jogos olímpicos. Uns têm ali um negócio e pensam apenas em seu lucro; outros empenham-se pessoalmente e buscam a glória; outros contentam-se em ver os jogos, e esses não são os piores. (OC IV, 525)

O que Rousseau propõe inicialmente é transformar Émile em um espectador. Para conhecer os homens, diz Rousseau, é preciso vê-los agir. É na ação (eventualmente em sua relação com o discurso) que os homens se descobrem. Mas Émile necessita de uma experiência atenuada, transformá-lo muito cedo em observador pode ser fatal. Além do mais, convém manter a distância e evitar o envolvimento, sobretudo através das paixões e do interesse, que podem provocar o desejo de participar da ação. Émile deve ser, por enquanto, um puro espectador. Eis aí, diz Rousseau, o momento da história (cf. OC IV, 526). Um pouco mais tarde será também o momento das fábulas, quando de espectador Émile tiver que passar gradualmente a ator (cf. OC IV, 540ss). Mais adiante, ainda teremos ocasião de retomar essas metáforas "espectatoriais" em conexão com o problema do teatro.

O exemplo da iniciação de Émile na arte de observar os homens estabelece, assim, um primeiro ponto, que diz respeito ao objeto propriamente que deve ocupar o observador dos homens: são as ações que se apresentam em primeiro lugar como objetos de observação. A razão para isso é que as ações podem ser mais reveladoras do "interior" do indivíduo do que, por exemplo, os discursos ou a fisionomia. O problema de Émile — ir além da aparência — é o mesmo já encontrado por "Rousseau". A consideração das ações permite ultrapassar a linha que separa "exterior" e "interior": a partir delas é possível chegar-se a motivos e intenções e, a partir da maneira como eles se estruturam e se combinam com as paixões e desejos, é possível enfim determinar o "verdadeiro caráter". E Rousseau faz aqui a mesma qualificação importante, já vista no método de "Rousseau", relativa ao tipo de ações mais significativas. As mais significativas devem ser, naturalmente, as que mais revelam o homem, ou seja, aquelas que não se detêm na superfície e que apontam, na sua origem, para os elementos mais profundos e marcantes do caráter. "É nas bagatelas que o natural se descobre", diz Rousseau (OC IV, 530).

Mas o exemplo de Émile é, afinal, limitado, da mesma forma como a história mostrou-se, no final das contas, limitada no que diz respeito às possibilidades de se conhecer os homens. Essa limitação foi imposta pela necessidade, que Rousseau, por sua vez, impôs a si mesmo, de considerar Émile exclusivamente como espectador. Era preciso, como vimos, mostrar os homens à distância, sem que Émile pudesse sentir-se ao alcance de um possível envolvimento pela ação. Émile deve ser puro espectador e Rousseau consegue manter essa qualidade em seu pupilo confrontando-o apenas com personagens históricos. Mas e quando é esse justamente o caso, ou seja, quando se trata de mover-se em uma situação de que o observador pode eventualmente participar — e, às vezes, deve participar? O próprio Rousseau reconhece a limitação da perspectiva exclusiva do espectador: para tornar Émile um observador dos homens completo, capaz de aproveitar realmente de suas observações, diz ele, é preciso torná-lo também ator:

Vós haveis também começado a torná-lo ator para torná-lo espectador, é preciso rematar: pois da platéia vêem-se os objetos tais como parecem, mas da cena vêem-se tais como são. Para abranger o todo é preciso pôr-se em perspectiva, é preciso aproximar-se para ver os detalhes. (OC IV, 542)

Mas para essa transformação de espectador em ator, Rousseau vai ainda recomendar, no caso de Émile, uma intermediação através das fábulas. Para avançarmos um pouco mais a respeito das qualidades do observador dos homens, é preciso buscar outros exemplos. Os exemplos de Saint-Preux e de Wolmar, na Nouvelle Héloïse, reparam a limitação do Émile e, pelo confronto dos tipos, jogam nova luz sobre a questão. É para eles que nos voltamos agora.

Quando chega em Paris, Saint-Preux não é um noviço na arte de observar os homens. Já tivera ocasião de exercitá-la, por exemplo, no seu relato da viagem ao Valais (carta XXIII da 1ª parte). No entanto, o que encontra na grande cidade é algo tão absolutamente novo, homens tão radicalmente outros que lhe parecem pertencer a outra espécie. Sua experiência desse novo meio e dessa (por assim dizer) nova humanidade segue duas etapas e desemboca, finalmente, em um fracasso. Vamos segui-la, antes de confrontá-la com o exemplo do judicioso Wolmar.

O que Saint-Preux experimenta em Paris é um dos efeitos mais perniciosos, segundo Rousseau, da desigualdade, um efeito que atinge as relações entre os homens e, a partir daí, afeta a própria integridade dos indivíduos: a dissimulação. A primeira reação de Saint-Preux em Paris é a de estranhamento, mais do que de desorientação. Não se trata apenas da experiência de um provinciano na capital, mas do conflito entre duas estruturas radicalmente opostas das disposições humanas — conflito sentido por Saint-Preux como tão radical que interrompe momentaneamente o circuito do reconhecimento, inibe sua capacidade de reconhecer o outro como seu semelhante. A primeira carta de Paris começa com a plena constatação desse estranhamento:

Entro com horror neste vasto deserto do mundo. Este caos oferece-me apenas uma solidão horrível, onde reina um morno silêncio. Minha alma apressadamente tenta expandir-se e encontra-se por todo lado limitada. Nunca estou menos só do que quando estou só, dizia um antigo; eu só estou sozinho na multidão, onde não posso ser nem teu nem dos outros. Meu coração gostaria de falar, ele sente que não é escutado. Gostaria de responder; nada é dito que pudesse chegar até ele. Não entendo a língua do país e ninguém aqui entende a minha. (OC II, 231)

Saint-Preux experimenta a pura exterioridade. Os indivíduos que observa não lhe aparecem como homens: às vezes confundem-se com suas vestes ("Quando um homem fala, é, por assim dizer, suas vestes e não ele que tem um sentimento", id., 233); são "máquinas que não pensam e que são movidas por molas" (id., 234); são como figuras em um "quadro vivo" (id., 235); são "larvas e fantasmas" ou máscaras que, talvez, não recubram nenhum rosto (id., 236). Daí a antítese inicial que Saint-Preux utiliza para expressar como sente sua posição no mundo: a companhia de máscaras, de fantasmas ou de máquinas não pode ser uma verdadeira sociedade18 . Formado por esses seres, o mundo não pode ser outra coisa senão um deserto.

Da mesma forma, sendo pura exterioridade, esses indivíduos não possuem propriamente um caráter. A marca que distingue eventualmente um indivíduo de outro não é função de seu caráter, mas de sua pertença a um ou outro grupo. A marca própria de seu caráter é substituída pela filiação a um interesse:

Não é necessário conhecer o caráter das pessoas, mas somente seus interesses, para adivinhar mais ou menos o que dirão sobre cada coisa. (id., 233)

Tem-se apenas que se informar sobre suas sociedades, suas associações, sobre seus amigos, sobre as mulheres que vêem, sobre os autores que conhecem: a partir disso pode-se estabelecer seus sentimentos futuros sobre um livro prestes a ser lançado e que eles não leram, sobre uma peça prestes a ser encenada e que eles não viram, sobre tal ou qual autor que eles não conhecem, sobre tal ou qual sistema de que não fazem nenhuma idéia. (id., 234)

Essa redução à pura exterioridade, mais o fato de que não possuem um caráter próprio, um princípio interior de unidade que garanta a sua coerência, resulta em que "cada um põe-se sem cessar em contradição consigo mesmo" (id., 234). A desarticulação (Saint-Preux usou a palavra "caos") entre o que se pensa e o que se diz, entre o que se diz e o que se faz é a regra. Saint-Preux conclui:

Assim, os homens com quem falamos não são aqueles com quem conversamos; seus sentimentos não partem de seus corações, suas luzes estão em seus espíritos, seus discursos não representam seus pensamentos, percebe-se deles apenas a figura (...). (id., 235)

Saint-Preux, no entanto, não desespera completamente: talvez seja ainda possível superar a situação de estranhamento e, enfim, encontrar rostos humanos. Ele diz:

Tal é a idéia que me formei sobre a grande sociedade que vi em Paris. Essa idéia é talvez mais relativa à minha situação particular do que ao verdadeiro estado de coisas e será revista sem dúvida sob novas luzes. (id., 235)

A segunda etapa da experiência de Saint-Preux em Paris é justamente a busca de um modo próprio para conhecer esses homens cujo ser parece estar totalmente na aparência. De início, pareceria bastar aplicar o princípio, já exposto no primeiro preâmbulo das Confessions, de separar o adquirido do natural. Esse princípio é de fato reafirmado por Saint-Preux:

O primeiro inconveniente das grandes cidades é que os homens tornam-se ali outros do que são, e que a sociedade lhes dá, por assim dizer, um ser diferente do que é o seu. Isso é verdadeiro sobretudo em Paris e sobretudo das mulheres que tiram dos olhares dos outros a única existência com que se preocupam. (...) Ora (...) em geral não há o que ganhar com o que se substitui à natureza. Mas nós nunca a apagamos inteiramente; ela escapa sempre por algum lugar e a arte de observar consiste em uma certa habilidade em captá-la. (OC II, 273)

Mas o problema é mais complexo. É possível que a natureza esteja tão radicalmente negada que se torne, nas circunstâncias em que se põe o observador, irreconhecível. Sob a crítica de Julie, Saint-Preux tenta reformular o alcance de seu projeto: não se trata de conhecer os franceses, isto é, de determinar seu caráter nacional, mas de algo mais amplo:

Meu objetivo é conhecer os homens e meu método é estudá-lo em suas diversas relações. Não o vi até agora senão em pequenas sociedades, esparsas sobre a terra. Vou agora considerá-lo amontoado em multidões nos mesmos lugares e começarei a julgar a partir disso os verdadeiros efeitos da sociedade; pois se é constante que ela torne os homens melhores, quanto mais numerosa e próxima for, mais eles devem valer, e os costumes, por exemplo, serão muito mais puros em Paris do que no Valais; se encontramos o contrário, é preciso tirar a conseqüência oposta. (id., 242)19

Mas a dificuldade não se resolve totalmente ampliando-se o alcance da observação. O homem "amontoado em multidões" continua sendo um objeto fugidio. Saint-Preux lamenta-se a Julie:

Como tudo é apenas aparência vã e tudo muda a cada instante, não tenho tempo para emocionar-me [ d'être ému] com nada, nem o tempo de examinar nada. (id., 245)

Saint-Preux enuncia aqui uma limitação séria. Há mais do que uma dificuldade de comunicação, há uma barreira quase intransponível entre o observador e seu objeto de observação. O observador, incapaz de "ser tocado" (d'être ému) por seu objeto, é também incapaz de conhecê-lo plenamente, isto é, de superar o estranhamento e reconhecer nele algum traço de comunidade. Ora, dissemos que o ponto de partida de todo juízo sobre os homens é a experiência que o indivíduo tem de si mesmo — mas essa aplicação da experiência própria ao outro tem naturalmente como condição o estabelecimento (ou o reconhecimento) de uma espécie de identidade: o outro precisa de algum modo ser percebido como semelhante. A esse problema sobrepõe-se ainda um outro, de perspectiva:

Assim começo a ver as dificuldades do estudo do mundo, e não sei nem mesmo que lugar é preciso ocupar para bem conhecê-lo. O filósofo está muito afastado dele, o homem do mundo, próximo demais. Um vê demais para poder refletir, o outro pouco demais para poder julgar o quadro total. Cada objeto que afeta o filósofo é por ele considerado à parte, e, não podendo discernir nem as ligações nem as relações com outros objetos que estão fora de seu alcance, ele não o vê nunca em seu lugar e não percebe nem sua razão nem seus verdadeiros efeitos. O homem do mundo vê tudo e não tem tempo para pensar em nada. A mobilidade dos objetos permite-lhe apenas percebê-los, não os observar; eles se anulam mutuamente com rapidez e só lhe restam impressões confusas que se assemelham ao caos. (id., 245-246)

Entre a perspectiva do filósofo, que seria naturalmente a sua, e a do homem do mundo, que, até por razões sociais, está-lhe vedada, Saint-Preux precisa encontrar sua via. Seu último recurso para resolver seus impasses é recorrer à ação. "É loucura querer estudar o mundo como simples espectador", diz ele. "Não se vê os outros agirem a não ser na medida em que se aja" (id., 246). Mas a distância entre o jovem plebeu provinciano sem experiência e os homens e mulheres ultra-refinados da grande sociedade parisiense faz-se sentir agora e não lhe deixa maiores possibilidades reais de ação. Resta-lhe plenamente aberto apenas o caminho da atuação, da representação:

Exercito-me tanto quanto me é possível em tornar-me polido sem falsidade, complacente sem baixeza e em tomar aquilo que há de bom na sociedade de modo que posso ser aceito nela sem adotar seus vícios. (id. 246)

Isso, no entanto, está fadado ao fracasso. Este processo mimético reproduz o funcionamento do monde. Como para o ator, não basta manter-se distanciado dos vícios do personagem que representa: é a própria arte de representar, diz Rousseau na Lettre à d'Alembert, que está comprometida essencialmente com o vício — é o vício por excelência. Mas, do ponto de vista do objetivo de Saint-Preux de estudar os homens, também falha. Engajar-se nesse processo mimético é finalmente reduzir a si mesmo à espessura da máscara e, no limite, renunciar a qualquer esperança de encontrar rostos humanos. Representando no meio de marionetes, Saint-Preux não vai mais uma vez conseguir enxergar além do véu de uniformidade que recobre a ação no mundo:

Todo mundo faz a mesma coisa na mesma circunstância: tudo segue um tempo, como os movimentos de um regimento em batalha: diríeis que são marionetes pregadas sobre a mesma tábua ou movidas pelo mesmo fio.

Ora, como não é possível que toda essa gente que faz exatamente a mesma coisa esteja afetada da mesma maneira, é claro que é preciso penetrá-los por outros meios para conhecê-los; é claro que todo esse jargão é apenas um vão formulário e serve menos para julgar sobre os costumes do que sobre o tom que reina em Paris. (id., 250/251)

Quais são esses meios, Saint-Preux deixará Paris sem descobri-lo20 . Sua experiência termina na suspensão do julgamento:

Assim, seja de que modo encaremos as coisas, tudo aqui é apenas tagarelice, jargão, conversas sem conseqüência. No palco, como no mundo, pode-se muito bem escutar o que se diz, nada se aprende sobre o que se faz, e o que se tem necessidade de aprender? tão logo um homem tenha falado, está-se informado sobre sua conduta, não fez ele tudo, não está julgado? o homem de bem [ l'honnête homme] daqui não é aquele que faz boas ações, mas aquele que diz belas coisas, e um único dito inconsiderado, solto sem reflexão, pode trazer àquele que o fez um mal irreparável que não seria apagado por quarenta anos de integridade. Em uma palavra, ainda que as obras dos homens não se assemelhem a seus discursos, vejo que não se os pinta a não ser por seus discursos, sem atenção às suas obras; vejo também que em uma grande cidade a sociedade parece mais doce, mais fácil, mais segura mesmo do que entre gente menos estudada; mas os homens lá são de fato mais humanos, mais moderados, mais justos? Não sei. São apenas aparências, e sob esses exteriores tão abertos e tão agradáveis os corações são talvez mais escondidos, mais enterrados do que os nossos. Estrangeiro, isolado, sem negócios, sem ligações, sem prazeres e querendo depender apenas de mim, como julgar? (id. 254/255)

Será preciso, então, acolher a lição de que o verdadeiro sábio aceita as aparências como realidade e que "a mais sublime sabedoria consiste em viver como os loucos" (id., 255)? Saint-Preux acha-se impotente diante da "evidência" com que se prova essa afirmação — o que aponta para um fracasso mais profundo, mais perigoso da sua experiência: perigosamente, ele é afetado por ela intimamente, começa a partir dela a transformar-se em sua essência:

No entanto começo a sentir a embriaguez em que essa vida agitada e tumultuada mergulha aqueles que a levam e caio em um atordoamento semelhante àquele de um homem diante de cujos olhos faz-se passar rapidamente uma multidão de objetos. Nenhum dos que me afetam interessa meu coração, mas todos juntos o perturbam e suspendem seus afetos, a ponto de esquecer por alguns instantes o que sou e a quem pertenço. Cada dia ao sair de casa fecho meus sentimentos à chave para usar outros que se prestem aos frívolos objetos que me esperam. Insensivelmente julgo e raciocino como ouço todo mundo julgar e raciocinar. (id. 255)

Longe de consolidar seu conhecimento do homem através do conhecimento dos homens do mundo, o que Saint-Preux experimenta é a própria degradação da natureza humana nesse homem "amontoado em multidões":

Forçado a mudar assim a ordem de minhas afecções morais; forçado a dar um preço a quimeras e a impor silêncio à natureza e à razão, vejo assim desfigurar este divino modelo21 que trago dentro de mim e que servia ao mesmo tempo de objeto para meus desejos e de regra para minhas ações, flutuo de capricho em capricho e por estarem meus gostos sujeitos à opinião, não posso estar um único dia seguro sobre o que amarei no dia seguinte.

Confuso, humilhado, consternado por sentir degradar em mim a natureza do homem e de ver-me assim tão rebaixado daquela grandeza interior em que nossos corações elevavam-se reciprocamente, volto à noite penetrado por uma secreta tristeza, oprimido por um desgosto mortal, o coração vazio e inchado como um balão cheio de ar. (id., 255/256)22

O fracasso de Saint-Preux está finalmente ligado menos às suas origens sociais do que ao fato de que representa o homem sensível por excelência. Sua capacidade de conhecer e julgar os homens está, em certa medida, em relação direta com a possibilidade de estender (répandre) sua alma, como diz no início da carta XIV (p. 231). Mas talvez o verdadeiro observador dos homens, aquele capaz de "ler no coração" de qualquer outro, seja aquele que pode reconhecer a humanidade mesmo no ponto mais baixo de corrupção. No Émile, Rousseau já observava:

O que será preciso para bem observar os homens? Um grande interesse em conhecê-los, uma grande imparcialidade para julgá-los. Um coração suficientemente sensível para conceber todas as paixões humanas e suficientemente calmo para não as experimentar. (OC IV, 536)

Essa descrição parece feita sob medida para M. de Wolmar, que Julie apresenta assim:

O maior gosto de M. de Wolmar é o de observar. Ele ama julgar os caracteres dos homens e das ações que ele vê. Ele os julga com uma profunda sabedoria e a mais perfeita imparcialidade. (OC II, 370)

Dois traços caracterizam recorrentemente o personagem de Wolmar: seu gosto pela observação e sua frieza. Wolmar define a si mesmo (e é definido pelos demais) sempre como um homem sem paixões — no que é o perfeito oposto, portanto, do apaixonado Saint-Preux. De que maneira essa ausência de paixões determina a forma como conhece os homens? Esse é o problema que nos põe a figura de Wolmar.

Tanto a definição do Émile quanto a descrição de Julie chamam a atenção para um mesmo ponto: a imparcialidade. A definição do observador dos homens no Émile, em particular, afirma a necessidade de conciliar o interesse em conhecer com a imparcialidade em julgar. É essa aliança justamente que Wolmar vai ilustrar: seu gosto pela observação é acompanhado, por um lado, pela vasta experiência e, por outro, pela ausência de paixões, o que lhe garante satisfazer a dupla exigência de conhecê-las sem senti-las. Essa é a raiz de sua imparcialidade — bem como, diga-se de passagem, de sua peculiar autoridade.

Saint-Preux queixava-se, como vimos, de que a mobilidade dos objetos e das situações a que estava exposto no mundo não lhe dava tempo de "ser tocado" (être ému) por eles. "Ser tocado" pelo objeto é então uma condição para conhecê-lo?23 Esse é um ponto que mereceria ser mais desenvolvido. Por enquanto, notemos apenas que Saint-Preux sofre de uma espécie de miopia típica das "almas sensíveis". É o que Claire diz a Julie:

Eis o que deve acontecer a todas as almas de uma certa têmpera; elas transformam por assim dizer os outros em si mesmas; elas têm uma esfera de atividade na qual nada lhes resiste: não se pode conhecê-las sem querer imitá-las e de sua sublime elevação elas atraem para si tudo o que as circundam. É por isso, minha cara, que nem tu nem teu amigo conhecereis jamais os homens; pois vós os vereis antes como vós os fareis ser do que como eles mesmos são. Vós dareis o tom a todos os que viverem convosco; eles evitar-vos-ão ou tornar-se-ão vossos semelhantes e tudo o que vós tereis visto não terá talvez nada de parecido no resto do mundo. (OC II, 204)24

Wolmar, homem sem paixões, está como que isento disso que Rousseau chama de sensibilidade moral, poder que age tanto atrativa quanto repulsivamente25 . A melhor descrição de seu temperamento em relação ao seu gosto pela observação é feita pelo próprio Wolmar:

Tenho naturalmente a alma tranqüila e o coração frio. Sou desses homens que se crê insultar ao dizer que não sentem nada; quer dizer, que eles não têm paixão que os desvie de seguir o verdadeiro guia do homem. Pouco sensível ao prazer e à dor, experimento apenas fracamente mesmo aquele sentimento de interesse e de humanidade que nos apropria os afetos de outro. Se sofro ao ver sofrer as pessoas de bem, a piedade não contribui com nada para isso, pois não sofro ao ver sofrer os maus. Meu único princípio ativo é o gosto natural da ordem e o concurso bem combinado do jogo da fortuna e das ações dos homens agrada-me exatamente como uma bela simetria em um quadro ou como uma peça bem dirigida no teatro. Se tenho alguma paixão dominante é a da observação: amo ler nos corações dos homens; como o meu me engana pouco, como observo com sangue frio e sem interesse e como uma longa experiência deu-me sagacidade, não me engano em meus juízos (...). (OC II, 490/491)

Embora esse discurso de Wolmar dê margem a uma série de possíveis comentários, queremos aqui destacar apenas três pontos. O primeiro diz respeito à caracterização da insensibilidade de Wolmar. Qualquer leitor do segundo Discours e do Émile não poderia deixar passar sem reflexão a referência de Wolmar à piedade. Wolmar diz que não é movido pela piedade (após afirmar, como antecedente, sua pouca sensibilidade ao prazer e à dor) e isso significa, na maneira como ele próprio se expressa, que é incapaz de apropriar-se das afecções dos outros. O elemento de empatia, que no exemplo de Saint-Preux aparecia como uma condição da possibilidade de "ler o coração" do outro — e, ao mesmo tempo, na medida em que a situação em que se encontrava reduzia os efeitos dessa empatia, como um obstáculo à compreensão do homem do mundo — desaparece aqui. Daí, o que é nosso segundo ponto, que para Wolmar a maneira como vê e julga os homens é em todos os pontos semelhante ao que experimenta em um teatro. Wolmar é em todos os sentidos um ser excepcional. Para ele — e só para ele — a analogia entre juízo moral e situação teatral funciona sem qualificações. Se todos fôssemos "Wolmares", não haveria necessidade de uma denúncia do poder do teatro, como a tentada na Lettre à d'Alembert. Por fim, devemos destacar a conclusão de seu discurso. Três elementos concorrem na sua correta apreensão dos homens: em primeiro lugar, seu coração "engana-o pouco"; também Wolmar, como Rousseau no primeiro preâmbulo das Confessions, não é vítima da "dupla ilusão" do amor-próprio; seu acesso a si mesmo é límpido, perfeito. Em segundo lugar, ele "observa de sangue-frio e sem interesse"; seu interesse no conhecimento dos homens é fruto de um gosto quase estético, é uma espécie de interesse "desinteressado"; não há uma motivação egoísta, de interesse próprio, o que combina perfeitamente com a exigência de imparcialidade. Por fim, Wolmar acentua sua "longa experiência" — mais uma vez, tal como Rousseau no primeiro preâmbulo.

De todos os personagens peculiares que compõem a galeria de tipos não pouco estranhos de Rousseau, Wolmar é talvez o mais singular. A excepcionalidade de sua quase insensibilidade deveria fazer de seu exemplo também uma exceção. Sua perfeita imparcialidade e a justeza de seus juízos estão afinal ancorados, fundamentados nessa excepcionalidade. Mas isso mesmo também ajuda a esclarecer o que está implicado pelo juízo de valor que fazemos uns sobre os outros. Para concluir, vamos procurar sistematizar os elementos sugeridos em cada exemplo examinado, de modo a ter um quadro geral do que está envolvido no tipo de juízo moral que nos interessou aqui.

Conhecer e julgar os outros pede que o observador ponha-se no lugar e na distância adequados. Pede que seja imparcial. Agora, como entender essa imparcialidade? O exemplo de "Rousseau" nos Dialogues estabelece que ser imparcial envolve, por um lado, pensar por si mesmo (ou seja, envolve eliminar os preconceitos, os "ídolos do foro"); por outro, envolve eliminar o efeito pernicioso das paixões e, particularmente, das formas negativas do amor-próprio. A eliminação dos preconceitos é, dos dois pontos, o menos problemático: trata-se de uma correção necessária da forma como as coisas (no caso, os outros) são percebidos. O segundo ponto, por sua vez, levanta as questões mais interessantes. De fato, os exemplos de Saint-Preux e Wolmar chamam atenção, de formas diferentes, para o papel da sensibilidade no tipo de juízo de valor que vem nos interessando aqui. Vimos como Saint-Preux, o homem sensível por excelência, como sugerimos, confrontado com a situação extrema de Paris, vê frustrada sua intenção de conhecer adequadamente os homens nessa situação (e, portanto, também de apreciá-los ou julgá-los adequadamente). E essa frustração foi provocada, em última análise, por sua incapacidade de ser "tocado" pelo objeto de suas observações: o circuito de reconhecimento e apreciação é interrompido pelo excesso de sensibilidade negativa encontrada por Saint-Preux em Paris. Wolmar, por sua vez, é, ao contrário, o homem insensível: conhece e aprecia corretamente os homens sem, no entanto, a necessidade de ser "tocado" por eles. Mas tanto Saint-Preux como Wolmar são extremos: Saint-preux pela situação em que se encontra, Wolmar por sua própria natureza.

Mas terá Wolmar falhado tal como falhou Saint-Preux? Que tenha falhado parece claro pelo final do romance (embora sua falha mais grave tenha sido como "terapeuta", não exatamente como observador; mas, afinal, no caso de Wolmar, uma coisa está ligada à outra). E, se falhou, sua falha está, em alguma medida, ligada à sua insensibilidade. Temos, assim, portanto, Saint-Preux falhando por sua sensibilidade, Wolmar falhando por sua insensibilidade. Seja como for, Rousseau está sugerindo que a correta apreciação do outro passa por um determinado estado (uma determinada afinação) da sensibilidade. O que faltou igualmente nos casos opostos de Saint-Preux e Wolmar foi o movimento de expansão que, em última instância, liga um indivíduo ao outro - e, finalmente, permite uma apreciação adequada dele. O "Rousseau" dos Dialogues ilustra bem isso: é o meio termo entre os dois extremos de Saint-Preux e Wolmar - e, portanto, mais do que Wolmar, encarna a figura do juiz imparcial - porque é capaz de reconhecer em "Jean-Jacques" um semelhante (ao contrário de Saint-Preux em Paris, que se vê diante de uma forma humana que é incapaz de reconhecer como tendo algo em comum com qualquer coisa que já tenha experimentado) e isso pelo efeito que as idéias de "Jean-Jacques" provocam (ao contrário de Wolmar, cuja insensibilidade, de alguma forma, torna-o incapaz de entender plenamente aquela linguagem do "mundo ideal", compreendida apenas por aqueles cujos corações foram feitos para isso).

A imparcialidade necessária para o correto juízo sobre o outro (um juízo sobre o seu valor), assim, não envolve distanciamento: ao contrário, exige aquele misto de reconhecimento e identificação que Rousseau resumiu em sua idéia de "expansão". Daí o sentido de sua crítica ao teatro. O que a representação teatral põe em jogo são as próprias potências morais de julgamento, que envolvem, em seu funcionamento, as forças que compõem mais essencialmente o indivíduo — forças como a imaginação, por exemplo. O teatro, de certa maneira banalizando os mecanismos envolvidos no juízo moral, acabam por ameaçar a integridade moral do indivíduo em sua raiz. Não se trata apenas do perigo de ter os sentidos despertados pela imaginação nem da tentação eventual de imitar o vício que se dá em espetáculo (nem de tomá-lo pela virtude): o perigo é mais profundo. Freqüentemente esquecemos que Rousseau, em sua crítica impiedosa, leva o teatro muito mais a sério do que todos aqueles autores que leram sua carta a d'Alembert apenas no registro da polêmica e arvoraram-se em defensores dos espetáculos. "Quanto mais reflito", diz Rousseau, "mais eu acho que tudo o que se representa no teatro não é aproximado, é afastado de nós". Na situação teatral interrompe-se, entre espectador e personagem, o circuito do reconhecimento, como ocorreu com Saint-Preux no grande palco de Paris. No teatro, a única possibilidade aberta ao espectador é, em última análise, a de identificar-se ou reconhecer-se no personagem, com o risco de ele próprio vir a tornar-se uma espécie de personagem, o que significa, para Rousseau, uma corrupção radical de sua sensibilidade. O que não funciona na situação teatral é o mecanismo da expansão: o espectador é levado para fora de si mesmo pela imaginação; mas a expansão da sensibilidade, que estabelece propriamente um laço entre os indivíduos, isso está ausente. A ilusão teatral, por mais completa e eficaz, mantém sempre presente uma distância entre espectador e personagem.

Rousseau lança-se em seu empreendimento autobiográfico em parte porque está convencido de que seus contemporâneos não o vêem como ele realmente é (não o apreciam segundo seu real valor). Isso não é, diga-se de passagem, senão outra maneira de dirigir contra a sociedade da época as mesmas acusações que desde o primeiro Discurso Rousseau vinha acumulando contra ela - especialmente a denúncia dos efeitos mais perniciosos do amor-próprio em seus sentidos mais negativos (amor-próprio que é a encarnação mesma da parcialidade). De nada adiantou, como vimos rapidamente: o desnudamento das Confessions, longe de reverter a opinião dos outros, resultou no silêncio. A tentativa, nos Dialogues, de mostrar a perspectiva do juiz eqüitativo e o que ela implica também resulta em silêncio e incompreensão, se lembrarmos agora os tristes eventos que se seguiram à conclusão da obra. Nas Rêveries, finalmente, Rousseau parece abandonar a esperança de fazer-se ouvir e entender. Diante do fracasso da tentativa de fixar a perspectiva imparcial do juiz eqüitativo, nos termos sugeridos nas obras anteriores, ao eu, só sobre a terra, incapaz de encontrar aquele que seria capaz de expandir-se a ponto de pôr-se também em seu lugar, resta apenas a fruição de si mesmo.


Kriterion: Revista de Filosofia

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