quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Rousseau e a arte de observar e julgar os homens (Parte 2)


Claudio Araujo Reis

Universidade de Brasília / UnB - Departamento de Filosofia

Se não bastasse o próprio tom da segunda parte da obra, essa nota por si só já justificaria o silêncio que, conta Rousseau, foi o único fruto que recolheu de suas leituras públicas. O estremecimento de Mme d'Egmont, reportado por Rousseau no final das Confessions, aparece assim como a única resposta de fato possível nas circunstâncias. Mas isso representa, para Rousseau, o fracasso completo de sua intenção de estabelecer uma nova situação de comunicação com aqueles que, ele pensa, já pronunciaram sobre ele um juízo falso e irrecorrível.

Os Dialogues retomam de zero essa mesma intenção. Rousseau inicia seu texto referindo-se à situação em que pensava estar com relação ao juízo de seus contemporâneos:

Disse freqüentemente que se me dessem de um outro homem as idéias que foram dadas de mim aos meus contemporâneos, eu não me teria comportado com ele do modo como eles o fazem comigo. Essa afirmação deixou a todos bastante indiferentes sobre esse ponto, e não vi em ninguém a menor curiosidade de saber em que minha conduta teria sido diferente da dos outros e quais teriam sido minhas razões. (OC I, 661)

Um novo enfoque do problema do conhecimento de si e do outro, portanto, faz-se necessário, um que dê tanta ênfase ao objeto quanto à forma de proceder com relação a esse objeto. Daí um dos objetivos primários dos Dialogues ser justamente o de oferecer um modelo de conhecimento e julgamento dos homens que resulte em uma apreciação correta e imparcial. Aparecer despido "em toda verdade da natureza" não produziu nenhum efeito. Se não bastou mostrar-se como se é realmente, então deve ser preciso também dizer com que olhos deve-se ser visto: "era preciso necessariamente que eu dissesse com que olho, se eu fosse um outro, eu veria um homem tal como eu sou". (OC I, 665)

Há, portanto, nos Dialogues, um reajuste da perspectiva das Confessions, ao mesmo tempo em que se mantém parte de sua intenção primária. E esse reajuste, vale notar, repercute também no tipo de imagem que é finalmente oferecida ao leitor. A suspeita que envolve cada vez mais radicalmente o olhar do outro determina uma escolha pela nitidez da imagem, mesmo que isso resulte em um certo empobrecimento da análise de si mesmo. Rousseau refere-se constantemente às Confessions como a história de sua alma. A esse histórico, os Dialogues substituem um longo retrato de "Jean-Jacques"10 , composto de dois momentos complementares: o relato de "Rousseau", que retrata fielmente "Jean-Jacques" (OC I, 799 ss.) e uma generalização (funcionando como uma confirmação) desse retrato que o transforma em uma descrição geral do caráter do homem natural (id., 820 ss.). Com relação às Confessions, a representação que Rousseau dá de si mesmo nos Dialogues é significativamente mais fixa. Intencionalmente, o retrato de "Jean-Jacques" é feito para moldar-se ao tipo — ao caráter — do homem natural. Um responde simetricamente ao outro. É sem dúvida significativo que o mesmo homem que, nas Confessions, insistia na "sucessão de afecções", na "cadeia de sentimentos" que formavam essencialmente seu eu e explicavam sua singularidade, diga agora:

De todos os homens que conheci, aquele cujo caráter deriva mais diretamente apenas de seu temperamento é J.J. Ele é o que o fez a natureza: a educação modificou-o pouco. Se, desde seu nascimento, suas faculdades e suas forças estivessem de uma só vez desenvolvidas, desde então o teríamos aproximadamente tal como foi em sua maturidade, e hoje, após sessenta anos de penas e misérias, o tempo, a adversidade, os homens muito pouco o modificaram. (OC I, 799-800)

Nada mostra mais a distância entre a perspectiva das Confessions e essa dos Dialogues do que um contraste entre o trecho que acabamos de citar e a famosa passagem do fim do livro IV das Confessions, onde Rousseau diz:

Se eu me encarregasse do resultado e lhe dissesse: tal é o meu caráter, ele [ o leitor] poderia crer, senão que eu o engano, ao menos que eu me engano. Mas, detalhando para ele com simplicidade tudo o que me aconteceu, tudo o que fiz, tudo o que pensei, tudo o que senti, não posso induzi-lo em erro, a menos que eu queira, e ainda mesmo que o queira, não conseguiria dessa forma tão facilmente. Cabe a ele reunir esses elementos e determinar o ser que eles compõem; o resultado deve ser sua obra, e se ele se engana então, todo o erro será obra sua. (OC I, 175)

Eis a estratégia que falhou: o erro persistiu — e não adianta muito lançar a culpa sobre o outro. A decisão pela fixidez do caráter11 , nos Dialogues, contra a fluidez da história da alma12 , mostra a dimensão que ganharam os problemas do dar-se a conhecer para Rousseau.

O problema, então, desde as Confessions, é o de retificar uma opinião — que é um juízo — sobre si mesmo, juízo que era percebido como falso e, mais importante, como possuindo um sentido moral, ou um conteúdo valorativo fundamental. O que é acrescentado pelos Dialogues é uma reflexão justamente sobre o "viés", sobre a opinião distorcida, suas causas e motivações. Um dos temas em torno do qual se estruturam os Dialogues, como se sabe, é o tema do complô. Um contraste com a parcialidade do juízo do público pode ajudar-nos a entender o que está em jogo no modelo de juízo que vai ser proposto por "Rousseau" na obra.

"Rousseau" desenvolve seu método em direta oposição ao modo de proceder do "público" ou da "multidão". Seus princípios mais gerais afirmam sempre a necessidade da autonomia do juízo e a suficiência do juízo autônomo, desde que formulado da maneira correta. A primeira regra do método de "Rousseau" diz:

Nas coisas que posso julgar por mim mesmo não tomaria jamais os juízos do público como regra para os meus. (OC I, 682)

Naturalmente, essa oposição está na lógica mesma dos Dialogues — que, em boa medida, como já dissemos, são uma longa variação em torno do tema do complô. Desse ponto de vista, o que há exatamente de errado com o juízo do público?

O público, diz Rousseau, "vê apenas aquilo que se quer que ele veja" (OC I, 703). O primeiro problema com o público é sua passividade. Seu olhar precisa, de alguma forma, ser alimentado e o seu juízo vai depender do que lhe for apresentado. Uma das intenções dos Dialogues é justamente mostrar que o que o público "vê" e julga é uma imagem fantástica e quimérica, o "Jean-Jacques" dos Messieurs. Este não resultou de uma apreciação da pessoa e de suas ações, mas, sim, de uma intenção: foi construído, assim como foram deliberadamente distorcidos, segundo pensa Rousseau, os seus retratos pintados (OC I, 777-782). O que presidiu a essa intenção e o que mantém o público no erro?

Há duas frentes de combate aqui: primeiro, a "liga" composta de homens e mulheres capazes de formar a opinião; de outro, o público propriamente. Cada um desses grupos está no erro. Mas a razão do engano em cada caso é diferente. Rousseau identifica dois fatores do erro: os preconceitos e as paixões. O preconceito é o erro próprio do público, sempre tão ligeiro, sempre tão disposto a ver o que se quer que ele veja, sempre passivo e maleável:

O espírito humano, naturalmente preguiçoso, gosta de poupar-se trabalho seguindo o pensamento dos outros, sobretudo naquilo que adula suas próprias inclinações. (OC I, 880)

Perfeitamente adaptado à natureza plástica do público, o preconceito torna-se rapidamente um princípio universal de explicação: "explica-se tudo a partir do preconceito que se tem" (id. 742)13 . E isso, como não poderia deixar de ser, falseia necessariamente todo o julgamento:

Ver exatamente tal como ele é, um homem de quem se tem de início uma opinião decidida, seja para o bem, seja para o mal, é mais difícil do que vós pareceis acreditar (...). Cada um vê e admite tudo o que confirma seu juízo (...). Vê-se aquilo em que se acredita, não aquilo que se vê. (id., 741/742)

O olhar submetido ao preconceito é necessariamente distorsivo. O preconceito é uma espécie de doença social, uma dessas "epidemias do espírito que se espalham de homem a homem, como uma espécie de contágio" (id., 880), uma espécie de "icterícia universal, fruto de uma bile acre e derramada, que não altera apenas o sentido da vista, mas corrompe os humores e mata enfim totalmente o homem moral, que permaneceria bem constituído sem ela" (id., 881). E não se pode esperar de olhares doentes mais do que imagens falsas, inconstantes, distorcidas: "O mesmo objeto visto em tempos diferentes com olhos diferentemente afetados causam-nos impressões muito diferentes." (id., 742)

É preciso acentuar, porém, o que é de fato o ponto importante para Rousseau nessa denúncia da passividade. A princípio, as flutuações da opinião não são em si mesmas um mal: o mal na verdade começa quando essas flutuações passam a ser dirigidas:

Dentre as singularidades que distinguem este século em que vivemos de todos os outros é o espírito metódico e conseqüente que, há vinte anos, dirige as opiniões públicas. Até aqui essas opiniões vagueavam sem seqüência e sem regra ao sabor das paixões dos homens e essas paixões, entrechocando-se sem cessar, faziam o público flutuar de uma a outra sem nenhuma direção constante. Hoje já não é mais a mesma coisa. Os próprios preconceitos têm seu caminho e suas regras e essas regras, às quais o público está submetido sem que suspeite, estabelecem-se unicamente a partir das intenções daqueles que o dirigem. (id., 964/965)14

Antes de se espalhar, o preconceito precisa ser cultivado: essa é a obra das ligas, das seitas, das cabalas, daqueles que Rousseau chama genericamente de les Messieurs, que não se deixam levar pela corrente dos preconceitos mas, ao contrário, são ativamente movidos por uma paixão. Os Messieurs, ao contrário do público, não são passivos, são inquietos (remuants), são eles próprios os agentes do contágio. Diz Rousseau:

Tudo isso seria verdadeiro se só tivéssemos o erro dos preconceitos a temer. O que aconteceria se se acrescentasse ainda o fascínio das paixões? (...) Faz-se um esforço para achar odioso aquilo que se odeia e se é verdade que o homem com prevenção vê aquilo em que acredita, é ainda mais verdade que o homem com paixão vê aquilo que deseja. (id., 742)

Não se trata mais de um erro baseado em uma crença errada, mas de um erro deliberadamente criado e sustentado como verdade — trata-se de uma mentira. O público enganou-se porque foi enganado, e sua própria natureza, por assim dizer, desculpa-o: "O público, que vê das coisas apenas a aparência, enganado por ela está desculpado" (id., 768). Mas a "liga" tem "interesse em disfarçar a verdade e em ver o que não era" (id., 775). Os Messieurs carregam a culpa da mentira, germe do preconceito.

Assim, a paixão, mais do que a "icterícia" do preconceito, turva o olhar e seduz o julgamento. "Sabe-se a que ponto o ódio fascina os olhos", diz Rousseau. Conhecer — ou seja, julgar — corretamente os homens implica, portanto, manter-se igualmente afastado dos preconceitos e das paixões relativas ao objeto do juízo. Isso define o ponto de partida do método proposto por "Rousseau".

Vamos procurar reconstruir o modelo de juízo proposto por "Rousseau" a partir de dois pontos: as qualidades próprias do "juiz eqüitativo", derivada diretamente da oposição entre o ponto de vista do juiz imparcial e o do público ou dos Messieurs; e os meios concretos para realizar um juízo adequado sobre alguém.

É no contraste com o público e os Messieurs, como já foi sugerido, que as qualidades próprias do juiz eqüitativo ressaltam-se. Ele é, antes de qualquer outra coisa, o homem imparcial. Ao contrário do público, ele vê com os seus próprios olhos e ao contrário dos Messieurs, não é um observador apaixonado. O que o caracteriza primariamente é sua atitude frente ao outro: sua "sinceridade de coração" (775), sua "franqueza" (785), sua "boa-fé" (698, 769), sua "disposição favorável à verdade" (763). Essa insistência na boa-fé, além de apontar para uma dificuldade própria do conhecimento de si e do outro, é uma conseqüência direta da intenção primária dos Dialogues de corrigir os juízos falsos sobre Jean-Jacques. O problema, posto genericamente, é como "ler no coração" de um outro? Como chegar ao que ele "é realmente" a partir do que ele nos parece ser? E como conhecê-lo — isto é, julgá-lo — se não atingirmos o que "realmente é"? O método de "Rousseau" é uma tentativa de solucionar esse problema.

Suspeitar das aparências implica uma separação forte entre duas esferas da existência individual, uma superficial, aparente, "exterior" e outra profunda, essencial, "interior". Um dos princípios fundamentais do método que "Rousseau" emprega para conhecer "Jean-Jacques" é justamente a atenção a tudo o que pode manifestar a seus olhos o seu interior (cf. OC I, 792). É seu "interior" finalmente que precisa ser conhecido — é seu coração que precisa ser lido —, se queremos de fato conhecê-lo. De todo modo, no entanto, é sempre seu "exterior" que nos é primeiramente acessível. Não é por acaso que "Rousseau" começa sua análise de "Jean-Jacques" pela fisionomia (cf. 777 ss), logo antes de fazer uma análise de seus retratos pintados ou gravados. O caminho em direção ao que o outro é realmente começa inevitavelmente na superfície a que temos acesso. Mas mesmo aqui é preciso distinguir. Às oposições exterior/interior e ser/aparência sobrepõe-se uma terceira entre "signos passageiros" ou "signos equívocos e rápidos" (cf. 783) e a "constante maneira de ser" (cf. 784, 792, 795). E é essa maneira constante de ser que finalmente "revela infalivelmente um caráter" (792).

Quase sempre é mais fácil determinar o que o outro não é do que o que ele é realmente. O que o indivíduo não é realmente é determinado, antes de mais nada, por alguns elementos socialmente impostos: o interesse, como observa Saint-Preux a respeito da sociedade parisiense, substitui o caráter como princípio explicativo da coerência, da constância das ações; o amor-próprio limita a imaginação, a espontaneidade, a originalidade e impõe o conformismo e a homogeneidade. Mas o homem também não é aquilo que é deliberadamente manipulado pela vontade com a única intenção de criar para os outros uma imagem fictícia de si mesmo. "Rousseau" afirma sua desconfiança das ações brilhantes, feitas como que em um palco com a intenção de ofuscar e desviar a atenção (cf. 783). Essas duas observações levam "Rousseau" a enunciar outro princípio fundamental de seu método:

(...) a ocasião mais rara e mais segura para conhecer bem um homem (...) é a de estudá-lo à vontade em sua vida privada, vivendo, por assim dizer, consigo mesmo. (OC I, 785)

Tendo minhas primeiras investigações me envolvido nos detalhes de sua vida, apeguei-me particularmente a isso, persuadido de que tiraria para meu objetivo esclarecimentos mais seguros daí do que de tudo que ele poderia ter dito ou feito em público e que, de resto, eu não vi por mim mesmo. É na familiaridade de um comércio íntimo, na continuidade da vida privada, que um homem a longo prazo deixa-se ver tal como é; é quando a força da atenção sobre si mesmo relaxa que, esquecendo-se do resto do mundo, a gente se livra ao impulso do momento. (id., 794)

Essa escolha pela vida privada revela um ponto importante. O que "Rousseau" quer é buscar a perspectiva que mais se aproxima daquela que cada um pode ter sobre si mesmo. Sua finalidade é a de "penetrar, se possível, dentro dele [ "Jean-Jacques"] mesmo" (OC I, 783) — e vale lembrar que intus et in cute era a epígrafe das Confessions, a expressão que Rousseau escolheu para resumir toda sua intenção. Todo o esforço de Rousseau nos Dialogues vai justamente no sentido de encontrar uma tal perspectiva, uma que alie a exterioridade da terceira pessoa ao alcance privilegiado da primeira pessoa.

Da forma como o método de "Rousseau" está exposto no segundo diálogo, segui-lo é quase impraticável fora do caso particular a que se aplica e da situação fictícia que constitui seu pano de fundo. O próprio "Rousseau" é o primeiro a notá-lo:

Este método é seguro, mas longo e penoso: exige paciência e uma assiduidade que só o verdadeiro zelo pela justiça e pela verdade pode sustentar e que se dispensa facilmente, substituindo as observações lentas, mas sólidas, que um exame igual e seguido permite por qualquer observação fortuita e rápida. (OC I, 794)

Nesse sentido, é o terceiro e último diálogo que (no que concerne, antes de mais nada — mas não só — o caso específico de Jean-Jacques, que é, afinal, o objeto primário do livro) dá a chave de toda a obra. Rousseau está convencido de que vai sobreviver por suas obras. Seu nome e seus livros, ele está certo, já adquiriram uma vida própria, independente da sua vida individual. Mas essa certeza é apenas fonte de mais angústia: Rousseau estava atormentado pela idéia de que a posteridade tivesse dele uma imagem tão falsa e distorcida quanto a que seus contemporâneos, segundo ele pensava, tinham. Mas onde mais poderia a posteridade encontrar o verdadeiro Jean-Jacques senão nas suas próprias obras? Essa é a conclusão a que aponta o terceiro diálogo. Com efeito, a conversão do "Francês" dá-se decisivamente pela leitura das obras e não pela freqüentação de "Jean-Jacques"15 . Diante do convite de "Rousseau" de, como ele, fazer uma visita a "Jean-Jacques", o "Francês" responde:

Vós pretendeis que eu deva ir ver J.J para verificar com meus olhos o que vós me haveis dito e o que eu próprio inferi da leitura de seus escritos. Essa confirmação é supérflua e sem recorrer a ela sei desde já o que pensar sobre esse ponto. (OC I, 939)

Não, Senhor, não tenho necessidade de ver J.J para saber o que pensar sobre ele. (id., 942)

O exemplo da "conversão" do "Francês" no terceiro diálogo dá-nos uma nova pista de como ver a direção a que aponta a obra como um todo — tanto os Dialogues quanto a própria obra de Rousseau em geral. R. Ellrich já havia notado que Rousseau está constantemente à espera de um leitor ideal16 . Ora, é justamente em torno do tema da leitura que está estruturado o terceiro diálogo. Se relermos agora o segundo diálogo retrospectivamente, é possível ver também ali o tema da leitura dando sustentação ao texto. Já fizemos referência ao uso freqüente por Rousseau da expressão "ler os corações". Uma outra noção importante que surge em conexão com o tema da leitura é, justamente, a noção de caráter, a que já fizemos referência acima. E tudo isso remete àquilo que Rousseau sempre considerou como o grande objetivo de toda sua obra: permitir, através dela (mas também através de seu exemplo pessoal), que os homens "leiam" em seu próprio coração, conheçam a si mesmos e, através disso, conheçam a verdadeira natureza humana, ouvindo a voz da consciência (que é a voz da natureza). E a voz da consciência repete sempre: o homem é naturalmente bom.

Como, então, segundo os Dialogues, devemos fazer para garantir um juízo correto sobre alguém? Devemos, antes de mais nada, pensar por nós mesmos, evitando assim o erro típico do "público". Devemos também esforçarmo-nos para evitar a todo custo a prevenção provocada pelas paixões e pelo amor-próprio, o que era o erro (erro agora mais grave, porque fruto de uma intenção de fazer mal) dos Messieurs. Devemos ainda separar o que é aparente do que é real, o que é superficial do que é profundo, o que é passageiro e contingente do que é permanente e constante. Sobretudo, o que é, em certo sentido, condição para todo o resto, devemos ser capazes de pôr-nos "na pele" do outro em algum sentido.

Mas isso ainda é pouco para entendermos o que está envolvido no juízo sobre o valor moral de uma pessoa. Como freqüentemente em Rousseau, a compreensão desse ponto passa pela compreensão do lugar e do papel da sensibilidade. Para tentar esclarecer o que está em jogo nesse movimento em direção ao conhecimento e ao julgamento adequado dos outros, vamos, antes de concluir, examinar mais três figuras de observadores e julgadores de homens que encontramos na obra de Rousseau: o Emílio adolescente, entrando na cena do mundo; Saint-Preux em Paris; e Wolmar.

Cada exemplo põe um problema específico e, deste modo, completam-se uns aos outros. Tomemos, inicialmente, o exemplo de Émile. No ponto em que nos interessa, Émile começa a "sentir seu ser moral" e o problema que se põe a ele, em conseqüência, é o de "estudar-se em suas relações com os homens" (OC IV, 493). Mas para isso, diz Rousseau mais adiante, é preciso cumprir antes um requisito: "é preciso começar por conhecer o coração humano" (id., p. 525). Ora, Émile, como se sabe, é uma das figuras do homem natural — ou seja, seu contato com a natureza é, podemos dizer, imediato, confunde-se com a experiência que tem de si mesmo. Émile, olhando dentro de seu próprio coração, vê intacta a natureza humana e a partir dela tira seu padrão:

Que ele saiba que o homem é naturalmente bom, que ele o sinta, que julgue seu próximo a partir de si mesmo. (OC IV, 525)

Émile está a salvo do que Rousseau chama em outro lugar de a "dupla ilusão do amor-próprio" — mesmo porque, por definição, ainda está, a esta altura de sua formação, livre dos aspectos negativos do amor-próprio. Tendo em seu coração a medida do humano em sua pureza original, pode, a princípio, julgar sem erro os outros a partir de si mesmo. Mas se para ele não se põe o problema da "dupla ilusão", é justamente aí que surge um outro, oposto, mas curiosamente semelhante. No primeiro preâmbulo das Confessions, Rousseau denunciava aquele que se faz a regra de tudo e vê apenas a si mesmo em toda parte. Ora, não é exatamente o que acontece agora com Émile? Certamente, ao contrário da vítima dos poderes de ilusionista do amor-próprio, Émile parte de uma experiência de si mesmo que não se distingue da experiência do universal. Ao tirar de si mesmo a regra, a escala para medir o humano, Émile age legitimamente. Mas aqui surge seu problema específico, o aprendizado que lhe cabe agora. A "ordem moral" em que está entrando agora é uma hierarquia de posições e de lugares, uma ordem de preferências cujo primeira característica — ou, mesmo, cujo princípio constitutivo — é a desigualdade17 . Émile logo vai-se dar conta de que há uma disparidade entre o que sente em si mesmo sobre o homem e os comportamentos que observa entre os homens. A conclusão que vai tirar dessa distância, a maneira como vai interpretá-la, é um destes pontos críticos em que toda a sua vida moral e toda a sua felicidade, segundo Rousseau, é posta em jogo: uma falsa conclusão e a negatividade do amor-próprio instala-se soberanamente, com toda a sua corte de vícios. Há mais de um tipo possível de conclusão, cada uma delas produzindo um efeito diferente sobre o indivíduo e determinando diferentemente sua relação com os demais — assim como há mais de um tipo de observadores dos homens, diz Rousseau:

Não são os filósofos os que melhor conhecem os homens; eles enxergam apenas através dos preconceitos da filosofia, e não conheço nenhum outro estado em que se têm tantos preconceitos. Um selvagem julga-nos mais retamente do que o faz um filósofo. Esse sente seus vícios, indigna-se com os nossos e diz para si mesmo: somos todos maus; o outro nos olha sem emocionar-se e diz: vós sois loucos. Ele tem razão, pois ninguém faz o mal pelo mal. Meu aluno é esse selvagem, com esta diferença: Emílio, tendo refletido mais, comparado mais idéias, visto nossos erros de mais perto, mantém-se em guarda contra si mesmo e julga apenas sobre o que conhece. (OC IV, 535)

Émile é o "selvagem feito para habitar as cidades". Rousseau espera que, como aquele outro selvagem, seu julgamento sobre os homens seja um diagnóstico da loucura deles. Jean-Jacques ele próprio já tinha chegado ao mesmo diagnóstico, o que o lançou em seu longo projeto terapêutico. Émile não foi educado para tornar-se um filósofo, mas sua percepção da loucura humana tem também um efeito sobre ele: muito mais do que o desprezo ou o ódio, será movido em direção aos homens pela piedade.

Kriterion: Revista de Filosofia

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