quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A verdadeira cidade de Platão (Parte 1)


Cláudio William Veloso
Professor de História da Filosofia Grega da Universidade Federal de Minas Gerais

Confesso que provo sempre um certo embaraço em tratar de Platão em público, e não só por ele não ser meu principal objeto de estudo. Como escrevi certa vez1 , já cheguei a achar impossível —pelo menos para mim— dizer algo de sensato e não óbvio acerca desse autor. O fato de voltar a falar dele indica que não penso mais assim, mas continuo convencido de que Platão é um “perverso”, como ouvi Luc Brisson dizer uma vez, e o que pretendo mostrar aqui o confirma. De todo modo, sinto-me no dever de justificar o presente trabalho. Ele nasceu casualmente. Ao estudar as “figuras da linguagem” em Aristóteles, quis reler o livro III da República e, procurando contextualizar a abordagem da narração e da imitação, que se insere na da educação voltada para a seleção dos guerreiros2 , acabei enfrentando a questão da necessidade dessa classe e, em última instância, da guerra. Ela é conseqüência da expansão territorial e esta, por sua vez, é conseqüência do fato de os homens de cidades vizinhas se lançarem em uma aquisição ilimitada de riquezas, superando o limite do necessário (cf. II 373c). Mas uma cidade onde isso acontece é uma cidade que deseja ser luxuosa (trúphosa), e não mais uma cidade verdadeira (cf. 372e). Parecia-me inevitável concluir que a segunda cidade construída “em discurso” na República seria uma cidade, por assim dizer, falsa. Ao mesmo tempo que fazia tais reflexões, eu participava dos encontros do grupo de leitura Anágnosis (NEAM-UFMG), que então estava traduzindo o livro I das Leis. Tive oportunidade, assim, de discutir com algumas pessoas —que inclusive estudam Platão bem mais do que eu— sobre a interpretação acima mencionada. E todos estavam de acordo em rejeitá-la. No entanto, seus argumentos não só não me convenciam, mas reforçavam minha convicção contrária.

Minha questão é simples. Como considerar a primeira cidade que aparece no livro II da República e que Sócrates chama de ‘cidade verdadeira’ (alethinè pólis)? Devemos tomá-la seriamente ou não? Ao contrário do que sustenta, por exemplo, Annas3 , para quem a cidade verdadeira teria apenas a função de introduzir o que ela chama de ‘princípio de especialização’ (p. 77-9) —como se isso não fosse razão suficiente para tomá-la seriamente—, eu creio que esta seja a verdadeira cidade platônica.

Os comentadores costumam justificar as próprias reservas em relação à cidade verdadeira notando a ausência nela de duas dimensões decisivas: a política e a filosofia4 . No melhor dos casos, a cidade verdadeira apresenta as condições necessárias para a existência e sobrevivência de uma comunidade, tendo, assim, um alcance prevalentemente econômico5 . A cidade verdadeira é uma cidade onde há sim vários ofícios, ou seja, uma divisão do trabalho, mas não propriamente classes, bem entendido, classes funcionais6 , não conhecendo ainda, pelo menos à primeira vista, a tripartição em produtores, auxiliares e guardiães, que se traduzirá, no indivíduo, nas três partes da alma: desiderativa, impetuosa e racional (IV, 441c-444b)7 . Ora, se a justiça maior da cidade corresponde à justiça menor do homem, devemos concluir que o homem verdadeiro, exatamente como a cidade verdadeira, não conhece a tripartição da alma? Não necessariamente, mas num certo sentido talvez sim.

Em todo caso, sustentar a ausência da política na cidade verdadeira parece-me pelo menos embaraçoso, na medida em que esta é chamada de pólis. E mais. De alethinè pólis. Com efeito, há que perguntar-se, antes de tudo, por que Sócrates chama de ‘verdadeira’ a cidade que Gláucon e ele acabaram de relatar ou percorrer, diérkhomai.

O adjetivo ‘verdadeiro’ não é um qualificativo qualquer em Platão. Dizer que x é o x verdadeiro equivale a dizer que só ele é realmente aquilo, ou seja, x, enquanto todas as outras coisas —por mais semelhantes que a ele possam ser— não são aquilo, não são x. No Sofista, por exemplo, verdadeiro é aquilo de que o simulacro (eídolon) é tal: como sugere Teeteto, o simulacro seria aquilo que, embora feito semelhante ao verdadeiro, é diverso (Soph. 240a 8). Na própria República aparece a curiosa distinção entre o que é “verdadeiramente falsidade” (alethôs pseûdos), ou seja, a ignorância na alma, e a falsidade que é “uma certa imitação do que acontece na alma” (mímemá ti toû tê(i) psukhê(i) … pathématos), que é justamente “um simulacro surgido posteriormente”, e não uma “falsidade completamente sem mistura” (Resp. II 382a-c).

Por conseguinte, a cidade verdadeira seria aquilo de que a cidade luxuosa, ou seja, a cidade que se delinea sucessivamente, não é outra coisa senão imitação ou simulacro. A cidade verdadeira é a própria cidade, enquanto a cidade luxuosa é uma não cidade, mesmo conservando semelhanças com a cidade. Nesse sentido, a da cidade verdadeira não só seria política, mas seria a única política verdadeira.

Mas vejamos de perto o texto da República.

Após uma primeira investigação sobre a justiça de um homem, Sócrates propõe recorrer a algo maior, a saber, uma cidade, a fim de aí enxergar melhor a justiça (368d). Ele sugere assistir, no discurso, ao nascimento de uma cidade, a fim de ver também nascerem a justiça e a injustiça desta, objeto de sua busca (369a).

Uma cidade, diz Sócrates, nasce ou é tal (gígnetai) porque se dá o caso de cada um de nós ser não auto-suficiente, mas carente de muitas coisas (369b). Deu-se o nome de cidade a essa convivência (sunoikía) de muitos carentes. Daí resulta que na cidade haja diversas ocupações e que cada um, por assim dizer, se especialize em uma delas. É o que Annas chama de princípio de especialização8 . Esse princípio, no entanto, não se acrescenta à “definição” de cidade, mas se deduz dela mesma. Com efeito, se cada um se ocupasse de todos os ofícios, cada um seria auto-suficiente, o que contradiz a própria “definição” de cidade.

Inicialmente, a cidade parece constituída por poucos ofícios, mas logo se entende que devem ser muitos. O agricultor, por exemplo, não pode produzir os instrumentos de que necessita para cultivar a terra. E sendo quase impossível que a cidade não precise importar coisa alguma, fazem-se necessários mercadores também (tanto os varejistas quanto os viajantes), bem como marinheiros, assalariados etc. Chega-se, assim, a uma cidade acabada ou perfeita (371e 10: televa). E Sócrates sugere investigar como viveriam os seus cidadãos.

“Em primeiro lugar, investiguemos, então, de que modo viverão (diaitésontai) os assim organizados (paraskeusménoi). De que outro modo senão produzindo pão (sîton), vinho, roupas e calçados? E, tendo construído casas, trabalharão no verão no mais das vezes nus e descalços, enquanto no inverno suficientemente agasalhados e calçados. Nutrir-se-ão preparando, a partir da cevada, farinha de cevada, a partir do trigo, farinha de trigo, ora cozinhando-as ora amassando-as, servindo roscas de qualidade e broas (ártous) sobre caniço ou folhas limpas. Deitados sobre jazigos cobertos de teixo e mirtos, banquetear-se-ão, eles e os filhos, bebendo vinho, usando grinaldas e cantando hinos aos deuses, reunindo-se com prazer uns com os outros, não gerando filhos acima das próprias substâncias, receando pobreza e guerra” (Resp. II 372a 5-c 1).

Nesse ponto intervém Gláucon, observando que Sócrates os faz banquetear-se sem ópson, a saber: “tempero”, “o que acompanha o pão”, “prato forte”9 . A tal intervenção de Gláucon Sócrates responde dizendo:

“Tu falas com verdade, disse eu. Eu havia esquecido que terão ópson também: sal, é claro, azeitonas, queijo, e cozerão cebolas e verduras, como as sopas [que se comem] no campo. Também serviremos a eles —não é?— docinhos de figos, grão-de-bico e favas, e fazendo na brasa mirtos e glandes, sorvendo (hupopínontes) com moderação; e transcorrendo a vida desse modo, como é de se esperar, em paz e saúde, e morrendo velhos, transmitirão tal modo geral de vida aos descendentes” (372c 4-d 3).

Esse regime lembra sem dúvida a diaíte palaía dos justos evocada pelo coro de camponeses da Paz de Aristófanes (Pax 556 s.; 1127 s.). Mas francamente não vejo como se possa comparar essa vida com a dos homens da “idade do ouro”, como sugere, por exemplo, Annas (p. 76 s.)10 . Há certamente uma referência a esse gênero de tradição mítica mas Platão refere-se a ela fazendo o contraponto. Com efeito, Hesíodo assim descreve a vida dessa primeira geração humana:

“Viviam como deuses, tendo coração descuidado, longe das fadigas e das tristezas. Nem se abatia alguma velhice, mas sempre, flóridos nos pés e nas mãos, alegravam-se em festas (en thalíesi), afastados de todos os males. Morriam como que domados pelo sono. Tinham todos os bens. A terra fecunda dava espontaneamente frutos, muitos e sem parcimônia. Benévolos e sossegados, tomavam conta das próprias coisas, com muitos bens, <;ricos de rebanhos e caros aos deuses bem-aventurados>” (Op. 112-120).

Os cidadãos da cidade verdadeira —doravante, os cidadãos verdadeiros— veneram sim os deuses, mas não parecem levar uma vida de deuses, nem ter com estes aquela intimidade que aparece em Homero. Ainda que longevos, os cidadãos verdadeiros envelhecem. Ademais, eles trabalham, isto é, conhecem a fadiga. E não se banqueteiam o tempo todo, mas, supõe-se, apenas nos momentos de repouso. Se é verdade que são apresentados com grinaldas e a beber vinho, eles não vivem em um perpétuo estado de embriaguez, como, no dizer do próprio Sócrates, os poetas relatariam acerca dos prêmios dispensados aos justos (cf. Resp. II 363c-d). Aliás, os cidadãos verdadeiros tampouco se encaixam na descrição hesiódica dos justos, os quais, aliás, não praticam a navegação (Op. 236-7).

Do mesmo modo, a cidade verdadeira nada tem a ver com a ilha dos Bem-Aventurados, mencionada por Hesíodo para a quarta geração humana, isto é, a dos heróis semi-deuses, os quais, depois da morte, aí habitam “tendo coração descuidado” e “aos quais três vezes ao ano a terra fecunda, benévola, dá frutos doces como mel” (Op. 170-3)11 . Curiosamente, como observa Figueiredo Lage (p. 59), a ilha dos Bem-Aventurados é evocada no livro VII da República, a propósito dos que passam a vida a aprender: eles acham que habitam ainda vivos em tal ilha, razão pela qual não seriam capazes de administrar bem uma cidade (519c). Entretanto, sempre no livro VII, Sócrates sustenta que os guardiães, ao fim da vida, hão de habitá-la, sendo eles considerados divindades (daímones) ou bem-aventurados e divinos (540b-c).

Enfim, a cidade verdadeira não é o mundo mítico do ócio e da abundância12 . Tanto é que os cidadãos verdadeiros têm a preocupação de não gerar mais filhos do que os próprios recursos consentem, a fim de evitar pobreza e guerra —o que denota, aliás, temperança sexual. Há que observar ainda que, enquanto Hesíodo, a propósito dos justos, fala de “filhos gerados parecidos com os pais” (Op. 235)13 , Sócrates fala de “modo de vida transmitido aos filhos”.

A cidade verdadeira difere igualmente de uma realidade política “primitiva”, como a pós-diluviana descrita no livro III das Leis (678e 9 s.). Em primeiro lugar, o conhecimento técnico desta —onde há abundância de comida— parece bem inferior ao da cidade verdadeira. Em segundo lugar, sendo pastores e caçadores, os pós-diluvianos parecem alimentar-se principalmente de leite e carne (Leg. III 679a), enquanto os cidadãos verdadeiros são agricultores e provavelmente vegetarianos, já que o consumo de carne só aparece na cidade luxuosa (Resp. II 373c 6-7). A criação de animais está presente na cidade verdadeira apenas em função da agricultura e de outros ofícios (370d 9-e 3)14 . Em todo caso, é só na cidade luxuosa também que os caçadores são introduzidos (Resp. II 373b 1)15 . Em suma, a cidade luxuosa seria bem mais “primitiva” que a cidade verdadeira!

Por tudo isso, a cidade verdadeira tampouco pode ser assimilada ao que é contado no Político sobre a vida dos homens no tempo de Cronos16 . Estes não constituem cidades, sendo, antes, governados por uma divindade (Pol. 271e 4-272a). Se é verdade que, como os cidadãos verdadeiros, são provavelmente vegetarianos, entre os dois há uma outra diferença fundamental: a agricultura17 . Os homens do tempo de Cronos não precisam desta (Pol. 272a 4), limitando-se a criar outros animais (271e 7) —note-se, aliás, a pouca importância dos pastores na cidade verdadeira (Resp. II 370d 9-e 3). Ademais, esses homens criados pelo deus andam nus (Pol. 272a 5), enquanto os cidadãos verdadeiros têm vestidos e calçados (Resp. II 372a 7). Nenhum dos dois dorme em cama (Pol. 272a 5: ástrotoi), mas os homens do tempo de Cronos dormem ao ar livre sobre ninhos (eunás) de relva macia crescida da terra (Pol. 272a 7-b), enquanto os cidadãos verdadeiros dormem deitados em cima de jazigos cobertos de folhas de teixo e mirtos (Resp. II 372b 5-6: kataklinéntes epì stibádon estroménon mílakí te kaì murrhínais).

Por conseguinte, o questionamento, por parte do Estrangeiro, da felicidade dos homens do tempo de Cronos, por não saber se eles se dedicavam ou não à filosofia, não cabe no caso da cidade verdadeira (Pol. 272b 8-d 5). Embora não se faça menção explícita da filosofia, nada deixa supor que nenhum cidadão verdadeiro a ela se dedique. Ao contrário. A frugalidade e a moderação com que vivem, a determinação com que respeitam a norma da especialização e a racionalidade com que organizam a própria cidade fazem pensar, antes, que na cidade verdadeira todos sejam filósofos. E, por isso, eles podem ficar juntos com prazer (cf. Resp. II 372b: sunóntes allélois), verossimilmente conversando (cf. Symp. 172a 7; 172c 1; 173a 4; Prot. 347d)18 .

Kriterion: Revista de Filosofia

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