quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Rousseau e a arte de observar e julgar os homens (Parte 1)


Claudio Araujo Reis
Universidade de Brasília / UnB - Departamento de Filosofia


O objetivo deste artigo é apresentar algumas reflexões sobre o que em geral está envolvido, segundo Rousseau, em um tipo de juízo sobre si mesmo e sobre os outros, implicado pelo conhecimento de si mesmo e dos outros, a partir, sobretudo, da análise de elementos presentes em seu projeto autobiográfico. Faremos isso principalmente através do exame das figuras de alguns "juízes" mais ou menos bem sucedidos em seu esforço de observar e conhecer os homens. Entendendo seu sucesso ou seu fracasso estaremos em condições de avaliar melhor o tipo de juízo de que se ocupam. Começaremos com algumas observações gerais sobre a filosofia de Rousseau e sobre o sentido e o lugar de seu projeto autobiográfico na obra como um todo. Em seguida, faremos uma breve análise da figura do juiz imparcial na obra Rousseau juge de Jean-Jacques: Dialogues1 , figura representada ali pelo personagem "Rousseau". Por fim, antes de concluirmos, examinaremos três outras figuras de observadores e juízes dos homens: Émile adolescente, Saint-Preux em Paris e o "judicioso" Wolmar.

Rousseau é freqüentemente percebido por seus leitores como um autor desconcertante. Músico, filósofo, romancista, autobiógrafo, suas obras freqüentemente apresentam essa mistura de gêneros. O Émile, como muitas vezes já se notou, começa como tratado filosófico e termina como romance. E toda sua produção, tanto a filosófica quanto a artística, é atravessada por sua personalidade singular e por sua constante reflexão sobre si mesmo. Não raro, as obras autobiográficas fornecem elementos mais ricos para entendermos a posição filosófica geral de Rousseau do que as obras que seus leitores estariam mais prontamente a reconhecer como propriamente "filosóficas".

A filosofia de Rousseau, não seria demais afirmar, é toda ela um apelo ao autoconhecimento. Há, nesse apelo, na medida em que se dirige ao universal — o homem —, uma parte de reverência pela verdade: trata-se de constituir uma ciência do homem, conhecer sua natureza; é o sentido da referência à inscrição délfica no início do Discours sur l'origine de l'inégalité. Mas há também uma parte importante de consolatio: conhecer a si mesmo é reconhecer o que o próprio Rousseau chama de princípio fundamental da moral, isto é, que o homem é naturalmente bom. Conhecer a si mesmo parece conduzir a amar a si mesmo — amor que, a partir daí, pode ambiguamente ter como referente a natureza humana em geral, reconhecida, por exemplo, em sua dignidade, ou aquele centro afetivo que chamamos eu. O problema da philautia está desde o início entranhado na tentativa rousseauniana de constituir uma ciência do homem.

O projeto de Rousseau é o resultado de um entrelaçamento de diferentes focos ou perspectivas sob os quais o homem pode ser olhado. Em particular, o que o caracteriza mais propriamente é uma inflexão da perspectiva mais universal em direção à mais singular2 . Rousseau começa contando a história do homem (lembremos a exclamação do preâmbulo do segundo Discours: "Ó Homem... eis aqui tua história...") e termina "recitando" Jean-Jacques nas Rêveries. No entanto, é preciso entender que, da forma como ele as articula, não há uma verdadeira descontinuidade entre as duas dimensões: ao contrário, a passagem pelo nível mais singular tem, no final das contas, como que um papel de justificação ou, mesmo, de fundamentação. Sua "conversão" no caminho de Vincennes mostrou-lhe a direção: como para Agostinho, para Rousseau a verdade habita o interior do homem3 . Vê-la, portanto, já implica o dobrar-se sobre si mesmo. O apelo a entrar em si mesmo é um apelo lançado a cada indivíduo em nome dessa verdade e é em torno dele que a filosofia de Rousseau vai ser construída4 . Esse caminho para dentro de si e de volta à natureza está aberto para todos. Mas Rousseau está perfeitamente consciente das dificuldades que ergue essa volta sobre si mesmo em busca de uma retomada de contato com a fonte da natureza. Sua obra, do Discours sur l'origine de l'inégalité às Rêveries du promeneur solitaire, poderia toda ela ser lida nestes dois registros: no registro da "ciência do homem" que propõe; no registro pessoal da auto-expressão5 .

Assim, desde o início, ao propósito de fundar uma ciência do homem baseada no conhecimento da natureza humana, começa a sobrepor-se a perspectiva singular da primeira pessoa. Essa perspectiva ganha ainda um segundo reforço. O esforço que Rousseau pede que seu leitor faça é, por um lado, quase como que um esforço de rememoração. É preciso lembrar que o que hoje parece representar um monstro já foi antes a estátua de um deus. Não é por acaso que as duas primeiras obras de Rousseau — os dois Discours — têm a forma de uma história. Mais um pouco e a "história da alma" de um indivíduo excepcional vai aparecer como uma verdadeira alternativa filosófica. Por outro lado, o leitor ideal de suas obras é aquele que, como o "Rousseau" dos Dialogues, reconhece-se nela como em um espelho (cf. OC I, 728).

O projeto de Rousseau surge da confluência dessas duas perspectivas. Antes de mais nada, sua grande ambição é fazer avançar aquilo que chama "o mais útil e o menos avançado de todos os conhecimentos humanos" (OC III, 122) — a ciência do homem. Conhecer o homem, não se pode esquecer, é conhecer sua natureza — ou seja, no sentido em que Rousseau entende isso, vê-lo "tal como o formou a Natureza". Mas, justamente, onde está essa natureza? Certamente, não mais no atual estado de coisas. E como se não bastasse essa distância que esconde de nós o objeto que mais nos interessaria conhecer, há ainda um outro ponto mais grave. O mais cruel, diz Rousseau, é que nada parece transformar mais o homem do que o conhecimento, de tal maneira que parecemos nos afastar cada vez mais da natureza à medida em que mais fazemos avançar nossa ciência: "é que, em algum sentido", diz ele, "à força de estudar o homem, tornamo-nos incapazes de conhecê-lo" (OC III, 122/123).

A busca dessa natureza escondida, portanto, ergue uma dupla exigência: em primeiro lugar, é preciso saber onde procurá-la; é a natureza do homem que nos interessa, mas qual homem? Em que homem ela é ainda visível? Em segundo lugar, há um problema de acesso: como (re)conhecer algo que escapa à observação direta, algo que parece não existir mais ou que se encontra desfigurada no comportamento atual dos homens que temos sob a vista? Em uma passagem particularmente importante do terceiro Dialogue, Rousseau oferece as chaves para entendermos as várias faces de suas obras e como elas se encaixam para formar e dar unidade a seu projeto:

De onde o pintor e apologista da natureza hoje em dia tão desfigurada e caluniada pode ter tirado seu modelo senão de seu próprio coração? Ele a descreveu como se sentia a si mesmo. Os preconceitos a que não estava submetido, as paixões factícias de que não era presa não ofuscavam a seus olhos, como aos olhos dos outros, estes primeiros traços tão geralmente esquecidos ou desconhecidos. Estes traços tão novos para nós e tão verdadeiros, uma vez traçados, encontravam ainda no fundo dos corações a atestação de sua justeza, mas jamais se teriam feito notar por si mesmos se o historiador da natureza não tivesse começado por retirar a ferrugem que os escondia. Apenas uma vida retirada e solitária, um gosto vivo pelo devaneio e pela contemplação, o hábito de entrar em si mesmo e de lá procurar, na calma das paixões, estes primeiros traços desaparecidos na multidão poderiam fazê-lo reencontrá-los. Em uma palavra, era preciso que um homem pintasse a si mesmo para mostrar-nos assim o homem primitivo e se o Autor não fosse tão singular quanto seus livros, jamais ele os teria escrito. (OC I, 936)

Fica explícito aqui o entrelaçamento da perspectiva mais universal com a dimensão mais singular. A natureza, desaparecida de toda parte, está no entanto ainda escondida no fundo do coração. Descobrir a verdade sobre a natureza humana, assim, implica retomar contato com a dimensão mais íntima do indivíduo. Mais ainda, implica que o indivíduo tenha ele próprio qualidades bem determinadas — gosto pela solidão, pela rêverie e pela contemplação, o hábito de entrar em si mesmo, em suma, a capacidade de uma apreensão profunda de si mesmo. Tão afastados estamos da natureza que só esse mergulho de um indivíduo em sua própria singularidade é capaz de recuperar para todos a natureza humana em sua universalidade.

Mas, ainda assim, pode não parecer totalmente legítima a passagem da preocupação com o universal que é a natureza humana para o estritamente singular que é a história da vida de um indivíduo. Duas outras idéias ajudam a completar essa passagem e acrescentam um terceiro propósito ou uma terceira direção ao projeto de Rousseau. Por um lado, as Confessions, em boa parte, apresentam-se como uma justificativa da singularidade que, para Rousseau, representa sua principal credencial para falar em nome da natureza. Contar sua história parece-lhe a única maneira de fundamentar sua pretensão à absoluta singularidade que, por sua vez, permite-lhe o acesso ao universal da natureza. Mas as Confessions introduzem uma nova nuança no sentido do conhecimento do homem. Ao escrever suas confissões, a motivação imediata de Rousseau era a de corrigir a representação que seus contemporâneos tinham dele próprio. E essa correção importava tanto mais quanto implicava, na verdade, um erro de estimação: o que estava em jogo não era simplesmente um erro de representação, mas um erro de avaliação. Era o verdadeiro valor de Jean-Jacques que não recebia o reconhecimento devido. Assim, um terceiro conjunto de problemas vem associar-se aos outros: o que significa conhecer um homem? E entenda-se por isso: não mais apenas conhecer a natureza humana, não mais apenas conhecer a si mesmo, mas: como conhecer, de modo a poder avaliá-lo e apreciá-lo, um outro que não seja eu mesmo ou que não seja o homem em geral?

O problema do conhecimento do homem para Rousseau delimita-se, assim, por três pontos: de início, no vértice, está a versão mais geral do problema, conhecer a natureza humana, o homem em geral. Mas isso pede a volta sobre si mesmo, a leitura atenta do seu próprio coração, o que inclui, como as Confessions vão mostrar, debruçar-se também sobre as memórias, a infância, a juventude. O terceiro ponto, que se opõe e, ao mesmo tempo, completa os dois outros é o conhecimento dos homens6 , ou seja, o conhecimento (que inclui um elemento de estimação) dos outros que não eu mesmo. Esse triângulo vai, como não poderia deixar de ser, ser fundamental para o desenvolvimento do projeto autobiográfico de Rousseau — para não dizer de toda sua obra.

Em 1770, Rousseau termina de contar a história de sua alma em suas Confessions. Este não era um livro qualquer: era com ele à mão, diz Rousseau, que contava apresentar-se diante do soberano juiz no momento do juízo final. Essa referência apocalíptica parecia dar às Confessions o aspecto de uma última declaração reveladora de toda a verdade antes do silêncio definitivo. No entanto, pouco menos de dois anos depois, Rousseau inicia a redação de seus Dialogues. Que tipo de motivos, afinal, levaram-no a tentar uma nova revelação de si mesmo7 ? Será que a tentativa das Confessions ainda ficou aquém do que prometia o seu autor? Será que o ato de auto-apreensão que está em sua origem foi ainda imperfeito?

Jean Starobinski, analisando os problemas da autobiografia em Rousseau, lembra que o conhecimento de si mesmo, para o filósofo genebrino, jamais é um problema, é um dado8 . O conhecimento de si é intuitivo, o ato de apreender a si mesmo é um "ato de sentimento". Mas esse ato é "indefinidamente renovável". Isso explicaria, pensa Starobinski, por que o empreendimento autobiográfico precisa estar sempre recomeçando, como se partisse a cada vez do nada. Cada auto-apreensão do eu possui como que um novo conteúdo: o eu não se banha duas vezes na mesma corrente de sua vida interior.

Essa hipótese tem o mérito de conseguir conciliar, de um lado, a certeza de Rousseau na sua transparência a si mesmo e na sua capacidade de apreender-se completamente, sem sombras, e, de outro, sua fina percepção das continuidades e descontinuidades do eu. Mas, de certa maneira, ela também mascara as relações que unem e ao mesmo tempo singularizam cada um dos momentos da obra autobiográfica. A multiplicidade dessa obra parece responder a outras necessidades que não apenas a de exprimir outra vez uma nova verdade sobre o eu resultante de um novo ato de sentimento em que o eu apreende-se sob uma luz mais clara (ou, de todo modo, diferente).

De fato, é necessário concordar com a afirmação de que o autoconhecimento jamais aparece a Rousseau como um problema insolúvel. Ainda que tome pouco a pouco consciência das dificuldades implicadas pelo processo de conhecer a si mesmo, não chega nunca ao ponto de desesperar totalmente e concluir que aquilo que ele "é realmente" está irremediavelmente escondido em alguma "profundeza opaca" inacessível e inescrutável. Seu problema está na outra face da moeda: como fazer o outro ver a mim mesmo como eu me vejo? Como transmitir ao outro o conhecimento tão evidente que tenho de mim mesmo? Desde o início, o problema fundamental de Rousseau é um problema de comunicação — que se agrava consideravelmente após as Confessions. Vejamos como o problema se põe entre as Confessions e os Dialogues. Desde o início, um dos objetivos de Rousseau ao escrever suas Confessions era o de corrigir um erro:

Cada um imaginava-me segundo sua fantasia, sem temer que o original viesse desmenti-lo. Havia um Rousseau no grand monde e um outro, no recolhimento, que não se parecia em nada com ele. (OC I, 1151)

Nada era mais diferente de mim do que essa pintura: eu não era melhor, se se quiser, mas era outro. (id., 1152)

Nas Confessions, sua resposta a isso, como se sabe, é mostrar-se "em toda verdade da natureza". Mas o erro persistiu — mais ainda, agravou-se. O conhecimento de si e do outro, como sugerimos acima, comporta um elemento de juízo valorativo: não se trata apenas de representar a si ou ao outro corretamente, mas julgá-lo corretamente, avaliar justamente o seu valor. Rousseau é particularmente sensível a isso, e essa sensibilidade é ainda agravada com o fato, segundo sua interpretação, de que nos falsos juízos de que se julga o objeto o que está em jogo não são os seus atos, mas, sim, sua pessoa. Não se trata de dizer que seus atos são culpados ou errados, mas de dizer que Jean-Jacques é mau9 . É esse elemento que pouco a pouco predomina na preocupação de Rousseau com o desconhecimento de que se sente vítima. A falha das Confessions pode ser entendida então com relação a esse ponto. Lembremos a nota, de tom bastante agressivo, que Rousseau acrescentou ao final de suas leituras públicas das Confessions:

Eu disse a verdade. Se alguém sabe coisas contrárias ao que acabei de expor, mesmo que fossem mil vezes provadas, o que sabe são mentiras e imposturas, e se se recusa a apurá-las e esclarecê-las junto a mim enquanto estou vivo, não ama nem a justiça nem a verdade. De minha parte, declaro em voz alta e sem medo: quem quer que, mesmo sem ter lido meus escritos, examine por seus próprios olhos meu natural, meu caráter, meus costumes, minhas inclinações, meus prazeres, meus hábitos, e possa crer-me um homem desonesto, é, ele próprio, um homem que merecia ser destruído [ un homme à étouffer] . (OC I, 656)

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