quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Charlotte Corday

O Assassinato de Marat - Paul Jacques Aime Badry, 1860
Musée des Beaux-Arts, Nantes
Image from Art Renewal Center
O Anjo do Assassinato

Francisco Murari Pires
No sábado, 13 de julho de 1793, véspera do quarto aniversário da Tomada da Bastilha, pouco mais de 7:00h da noite, uma bela jovem, quase vinte e cinco anos, bateu à porta do número 30 da rue des Cordeliers (atualmente 22 rue de l’École de Médicine), residência do cidadão Jean-Paul Marat, deputado da Convenção. Já lá estivera por duas vezes naquele dia, solicitando ver o mentor revolucionário. Pedido, todavia, sempre firmemente recusado: o estado de saúde de Marat não lhe permitia receber qualquer visita. Há tempos já sofria de uma doença de pele, cujos ardores terríveis só se aliviavam por prolongados banhos de imersão, de efeitos também calmantes de nervos e espírito, pelo que alí permanecia quase todo seu tempo. O célebre quadro de David projetou a imagem desse cenário do banho de Marat: banheira algo precariamente improvisada como escrivaninha ..... a banheira em que ficava (pudor recoberto por lençol, prancheta de anotações apoiada contra as bordas, grande lenço ensopado em vinagre sobre a testa latejante). Assim prosseguia seu labor de publicista.

O assassinato de Marat - David
Image from Cgfa


A reforçar as induções de seu aceite, a jovem chegara a enviar-lhe um bilhete, por que aludia a razões bem especiais para aquela entrevista: “Venho de Caen. Vosso amor pela pátria vos fará desejar inteirar-se dos complôs que lá se meditam. Aguardo vossa resposta”.[1]

Assim, agora retornava. Trazia consigo um novo bilhete, com que intentaria reiterar o pedido em teores ainda mais dramáticos de modo a melhor sensibilizar a anuência de Marat: “Vos escrevi esta manhã, Marat, recebestes minha carta? Posso contar com alguns minutos de uma audiência? Se a recebestes, espero que vós não me a recusareis, ao ver todo o interesse envolvido. Basta meu infortúnio para ter direito a vossa proteção ...” (Defrance, p. 127).

Novas recusas e outras tantas insistências em discussão a altas vozes à porta da casa, a da jovem reclamando a entrada contra a de Simone Evrard, a companheira de Marat, a impedindo resoluta. O vozerio alcançou os ouvidos de Marat, que então se dispôs a recebê-la, lá mesmo, no banho.

Deixada a sós com ele, sentada ao lado junto à banheira, revelou os nomes dos girondinos que, acastelados en Caen após as proscrições do 2 de junho que liquidaram o poder político da Gironda, então supostamente conspiravam contra a Revolução. Marat teve tempo apenas de os anotar em sua prancheta e, ao que posteriormente alegou a própria jovem, anunciar já o destino negro que lhes aguardava sob a lâmina da guilhotina[2]. Retirando de sob o corpete um punhal, a jovem desferiu golpe certeiro: sob a clavícula direita, fundo da extensão de um dedo indicador, pulmão perfurado e carótida rompida a sangrar profusamente[3]. Logo expirou!

Assim, por tal feito, Charlotte Corday[4], “l’Ange de l’assassinat” na ambivalente apreciação histórica de Lamartine, calou para sempre a voz do Amigo do Povo. Detida lá mesmo, foi depois transferida para a prisão, primeiro na Abbaye, depois na Conciergerie. Posta a julgamento quatro dias depois, a 17 de junho, foi levada á guilhotina nesse mesmo dia, já tarde da noite, trajando o simbólico manto vermelho destinado aos assassinos. Terminou, pois, aos cuidados do célebre Sanson na Place de la Révolution!

Dentre as alegações por que ela justificava seu feito, declarou, logo no primeiro interrogatório a que foi submetida, justo após o assassinato, ainda na casa de Marat, pelo comissário de polícia da seção do Théâtre Français da Guarda Nacional, Jacques-Philibert Guellard[5]: “...vendo que a guerra civil estava a ponto de incendiar a França inteira, e convencida de que Marat era o principal autor desse desastre, preferira sacrificar sua própria vida para salvar o país”.

Proclamação de orgulhoso feito heróico, que conforma seus teores à similitude dos das memórias históricas que diziam as gestas libertárias daqueles antigos romanos, que também sacrificavam suas vidas pela salvação da República, de que se dizia ameaçada de sossobrar pela crueza de suas lutas intestinas.

Transferida, na manhã de 16 de julho da prisão da Abbaie para o cárcere da Cociergerie, foi aqui submetida a novo interrogatório, agora por Jacques-Bernard-Marie Montané, Presidente do Tribunal criminal extraordinário. Interpelada quanto ao propósito de sua viagem a Paris, admitiu não ter outra intenção que a de matar Marat, em razão de todos os crimes de que ele era o responsável: ”...fora ele que instigara os massacres do mês de setembro, ele que alimentava o fogo da guerra civil para se fazer nomear Ditador ou outro posto, e fora ele ainda que atentara contra a soberania do Povo ao fazer deter e aprisionar os Deputados da Convenção em 30 de maio último”. Mais adiante, agora pressionada a que revelasse os que com ela se acumpliciavam naquele terrível cometimento, respondeu que “não revelara seus projetos a ninguém”, acrescentando seu juízo de que “não estava a matar um homem, mas uma besta feroz que devorava todos os franceses”.[6]

Por fim, nas respostas dadas no curso do julgamento a que foi levada a 17 de julho diante do Tribunal Revolucionário, presidido por Montané e tendo como acusador público o famigerado Fouquier-Tinville, agora questionada quanto aos móbiles que a levaram a ver em Marat um “anarquista”, respondeu que “... estava ciente de que ele pervertia a França. Matei um homem para assim salvar cem mil”.[7]

Nas declarações de Charlotte Corday ressoam assim múltiplos ecos do ideário histórico da Antiguidade Clássica, mais outras tantas lembranças de seu imaginário mítico, por que o herói livra o país do monstro cruento que o devasta, imagens com que ela então projetava em Marat os desígnios ditatoriais de um César montagnard, agora apunhalado por avatar girondin de um Brutus tiranicida, que viera por fim a seus desmandos.

Uma semana antes do assassinato, nos dias 6 e 7 de julho de 1793, as vozes dos girondinos expurgados em Caen, soavam as proclamas desse mesmo ideário herdado das histórias dos heróis antigos, por elas intentando arregimentar um exército federalista que combatesse o monstro sanguinário sediado em Paris, a todos chamando para la guerre de Marat. Num dos cartazes espalhados pelos muros da cidade, dizia-se: “Que caia a cabeça de Marat e a República será salva... Purifiquemos a França deste homem ávido de sangue ... Marat considera a saúde pública somente num rio de sangue; pois bem, agora é o seu que deve correr: que role sua cabeça para que duas mil sejam salvas”.

Michelet conta, em sua Histoire de la Révolution Française, que na sexta-feira, 12 de julho, pela manhã, Charlotte dirigira-se à casa de Duperret (um dos poucos girondinos ainda restantes na Convenção) para lhe encaminhar a carta de recomendação que Barbaroux (um dos girondinos refugiados em Caen) lhe dera, a fim de buscar uma solução para o caso de sua amiga (Madame de Forbin) que tivera suspenso o pagamento da pensão que lhe era devida na qualidade de conezia do chapitre de Troyes, pretexto que ensejara aquela sua viagem a Paris. Não o tendo encontrado, pois se achava na Convenção, retornou para o hotel. Havia trazido consigo as Vidas Paralelas de Plutarco, o único livro que guardara para si, tendo presenteado os demais aos amigos pouco antes de sua partida. Passou então aquela tarde, véspera do assassinato, a ler as histórias celebradas naquele livro, a ‘Bíblia dos fortes’, no dizer de Michelet.[8]

Lamartine, por sua vez, conta, em sua Histoire des Girondins (p. 63), que Madame Bretteville, a tia de Charlotte com quem ela morava então em Caen, lembrou-se mais tarde (posteriormente ao assassinato) de, em entrando certo dia no quarto da sobrinha para acordá-la, ter visto sobre a cama uma velha Bíblia, aberta justo no Livro de Judite, em que se podia ler, sublinhado a lápis, este versículo: ‘Judite sai da cidade enfeitada por maravilhosa beleza, de que lhe fizera dom o Senhor para libertar Israel’.

Por todas essas memórias históricas, de julho de 1793, de que datam os documentos originais respeitantes a Charlotte Corday, a 1847-48, de que data a Histoire des Girondins de Lamartine, e 1847-53, de que data a Histoire de la Révolution Française de Michelet, todos os sentidos com que relata ou narra o acontecimento, supõem um modo de compreensão histórica delineado nos enquadramentos de inteligibilidade dispostos pela concepção da historia magistra vitae: as lições do passado orientam os atos do presente, as figuras daquele tempo se reiteram e revivem neste.

Charlotte Corday, o assassinato de Marat - Jean Joseph Weertz
Image from Art Renewal Center

[1] Outra versão do bilhete: “Cidadão, venho de Caen; vosso amor pelo país me leva a crer que gostaríeis de saber os acontecimentos preocupantes que se passam naquela parte da República. Estarei em vossa casa por volta das sete horas; peço a gentileza de receber-me e concerder-me uma rápida entrevista. Disponho de elementos que vos permitirão prestar enorme serviço ao país”

[2] Quando de seu primeiro interrogatório, mais imediato ao crime, a jovem declarou estes termos que teriam sido ditos por Marat: “Ils ne tarderont pas à être guillotinés”; noutro posterior, a formulação vem já algo mais enviesada - “Je les ferai bientôt tous guillotiner à Paris” -, por apropriada retórica acusatória por que o justificava.

[3] Os dados constam do relatório do cirurgião-dentista que primeiro examinou o cadáver: “le coup de couteau porté au dit Marat a pénetré sous la clavicule du coté droit, entre la première et la seconde côte, et cela si profondément que l’index a pu pénétrer de toute sa longueur à travers le poumon blessé, et que d’après la position des organes, il est possible que le tronc des carotides ait été ouvert” (Guillaumou 1989: 27).

[4] “A répondu se nommer Marie-Anne-Charlotte de Corday, ci-devant d’Armont, native de la paroisse Saint-Saturnin-des-Ligneries, diocèse de Sées, âgée de vingt-cinq ans moins quinze jours, vivant de ses revenues et demeurant ordinairement à Caen, lieu de sa résidence et présentement logée à Paris, rue des Vieux-Augustins, Hôtel de la Providence” (Guillaumou 1989: 28), pelo que ela mesma declarou quando de seu primeiro interrogatório, ainda na casa de Marat, feito perante o cidadão Martin Cuisinier. Pelo lado paterno (Jacques-Francois de Corday d’Armont) ela descendia de Marie Corneille, irmã de Pierre Corneille, o célebre dramaturgo clássico do século XVII.

[5] (Guillaume 1989: 28).

[6] Defrance, p. 298).

[7] Defrance, p. 351.

[8] Guillamou 1989: 131.

Heros - USP

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