quarta-feira, 18 de agosto de 2010

A História como Tragédia e como Farsa

Karl Marx

Figura Alegórica da República - Antoine Jean Gros (1771-1835)
Musée National du Château et des Trianons, Versailles
Image from Joconde
© Réunion des musées nationaux
© Direction des Musées de France, 1986

O Dezoito Brumário
A História como Tragédia e como Farsa

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes.
E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière por Danton, Louis Blanc por Robespierre, a Montanha de 1848-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E a mesma caricatura ocorre nas circunstâncias que acompanham a segunda edição do Dezoito Brumário!

Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob as circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.
E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu aauxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar a nova cena da história do mundo nesse disfarce tradicional e nessa linguagem emprestada.
Assim Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a revolução de 1789-1814 vestiu-se alternadamente como a república romana e como o império romano,

O Juramento dos Horácios - Jacques-Louis David, 1784
Musée du Louvre, Paris
Image from Cgfa

e a revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793-1795.

Les Horaces de l'Élysée - Honoré Daumier
Image from Umt

De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempres as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela.

O exame dessas conjurações de mortos da história do mundo revela de pronto uma diferença marcante.
Camile Desmoulins, Danton, Robespierre, Saint-Just, Napoleão, os heróis, os partidos e as massas da velha Revolução Francesa, desempenharam a tarefa de sua época, a tarefa de libertar e de instaurar a moderna sociedade burguesa, em trajes romanos e com frases romanas. Os primeiros reduziram a pedaços a base feudal e deceparam as cabeças feudais que sobre ela haviam crescido. Napoleão, por seu lado, criou na França as condições sem as quais não seria possível desenvolver a livre concorrência, explorar a propriedade territorial dividida e utilizar as forças produtivas industriais da nação que tinham sido libertadas; além das fronteiras da França ele varreu por toda a parte as instituições feudais, na medida em que isto era necessário para dar à sociedade burguesa da França um ambiente adequado e atual no continente europeu.
Uma vez estabelecida a nova formação social, os colossos antediluvianos desapareceram, e com eles a Roma ressurrecta - os Brutus, os Gracos, os Publícolas, os tribunos, os senadores e o próprio César. A sociedade birguesa, com seu sóbrio realismo, havia gerado seus verdadeiros intérpretes e porta-vozes nos Says, Cousins, Royer-Collards, Benjamin Constants e Guizots; seus verdadeiros chefes militares sentavam-se atrás das mesas de trabalho e o cérebro de toucinho de Luís XVIII era a sua cabeça política. Inteiramente absorta na produção de riqueza e na concorrência pacífica, a sociedade burguesa não mais se apercebia de que fantasmas dos tempos de Roma haviam velado seu berço.
Mas, por mesos heróica que se mostre hoje esta sociedade, foi não obstante necessário heroísmo, sacrifício, terror, guerra civil e batalhas de povos para torná-la realidade. E nas tradições classicamente austeras da república romana, seus gladiadores encontraram os ideais e as formas de arte, as ilusões de que necessitavam para esconderem de si próprios as limitações burguesas do conteúdo de suas lutas e manterem seu entusiasmo no alto nível da grande tragédia histórica.
Do mesmo modo, em outro estágio de desenvolvimento, um século antes, Cromwel e o povo inglês haviam tomado emprestado a linguagem, as paixões e as ilusões do Velho Testamento para sua revolução burguesa. Uma vez alcançado o objetivo real, uma vez realizada a transformação burguesa da sociedade inglesa, Locke suplantou Habacuc.
A ressureição dos mortos nessas revoluções tinha, portanto, a finalidade de glorificar as novas lutas e não a de parodiar as passadas; de engrandecer na imaginação a tarefa a cumprir, e não de fugir de sua solução na realidade; de encontrar novamente o espírito da revolução e não de fazer o seu espectro caminhar outra vez.

De 1848 a 1851 o fantasma da velha revolução anda em todos os cantos: desde Marrast, o républicain en gants jaunes, que se disfarça no velho Bailly, até o aventureiro de aspecto vulgar e repulsivo que se oculta sob a férrea máscara mortuária de Napoleão.
Todo um povo que pensava ter comunicado a si próprio um forte impulso para diante, por meio da revolução, se encontra de repente transladado a uma época morta, e para que não possa haver sombra de dúvida quanto ao retrocesso, surgem novamente as velhas datas, o velho calendário, os velhos nomes, os velhos éditos que já haviam se tornado assunto de erudição de antiquário, e os velhos esbirros da lei que há muito pareciam desfeitos na poeira dos tempos.
A nação se sente como aquele inglês louco de Bedlam, que imagina estar vivendo na época dos antigos faraós e lamenta-se diariamente do trabalho pesado que deve executar como garimpeiro nas minas de ouro da Etiópia, emparedado na prisão subterrânea, uma lâmpada de luz mortiça presa à testa, o feitor dos escravos atrás dele com um longo chicote, e nas saídas a massa connfusa de mercenários bárbaros, que não compreendem nem aos forçados das minas e nem se entendem entre si, pois não falam uma língua comum. "E me impuseram tudo isto - suspira o louco - a mim, um cidadão inglês livre, para que produza ouro para os faraós!". "Para que pague as dívidas da família Bonaparte" - suspira a nação francesa.

Luís Filipe "Gargantua" - Honoré Daumier
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O inglês, enquanto esteve em seu juízo perfeito, não podia livrar-se da idéia fixa de conseguir ouro. Os franceses, enquanto estiveram empenhados em uma revolução, não podiam livrar-se da memória de Napoleão, como provaram as eleições de 10 de dezembro.


Napoleon et Madame France - Honoré Daumier
Political Cartoons and Cartoonists, edited by Jim Zwick.
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Diante dos perigos da revolução, ansiavam por voltar à abundância do Egito; e o 2 de dezembro de 1851 foi a resposta. Não só fizeram a caricatura do velho Napoleão, como geraram o próprio velho Napoleão caricaturado, tal como deve aparecer necessariamente em meados do século XIX


Napoleon le Petit - Vernier
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A revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro. Não pode iniciar sua tarefa enquanto não se despojar de toda veneração supesticiosa do passado. As revoluções anteriores tiveram que lançar mão de recordações da história antiga para se iludirem quanto ao próprio conteúdo. A fim de alcançar seu próprio conteúdo, a revolução do século XIX deve deixar que os mortos enterrem seus mortos. Antes a frase ia além do conteúdo; agora é o conteúdo que vai além da frase.

Karl Marx, O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte. Tradução revista por Leandro Konder, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974. p. 17-21

Heros USP

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