sábado, 17 de outubro de 2009

Vendo o passado: representação e escrita da história



Vendo o passado: representação e escrita da história


Manoel Luiz Salgado Guimarães

Professor Associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro / Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Largo de São Francisco 1, 2º andar, Centro, 20050-070, Rio de Janeiro – RJ, lecionando Teoria, Metodologia da História e Historiografia. Professor Adjunto da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, lecionando História Moderna. Pesquisador do CEO/PRONEX CNPq/FAPERJ. E-mail:

Pour savoir il faut simaginer
Georges Didi-Huberman

Notas sobre o presente do passado: vendo o passado como patrimônio

Tornou-se lugar comum a afirmação de que vivemos em um tempo marcado pela força das imagens – e da visão como um dos sentidos fundamentais para apreensão e decodificação do mundo que nos cerca; somos constituídos por uma cultura oculocêntrica, que, transformada a partir do Renascimento, adquiriu a centralidade em nossa contemporaneidade. A pergunta formulada por François Hartog1 em seu recente trabalho parece indicar o cerne da questão a ser investigada em nossa conjuntura historiográfica de final do século e começo de um novo. O que ver, quando parece que podemos tudo ver em virtude dos meios postos a serviço da escrita da história? Como refletir acerca dessa complexa relação entre o visível e o invisível, que está na raiz mesma do trabalho do historiador, quando os meios de visibilidade do passado parecem infinitamente alargados pela capacidade técnica de arquivamento do passado? Se, como afirma Didier-Huberman, o saber está intrinsecamente ligado à capacidade de imaginar-se, portanto, de criarem-se imagens que apelam ao sentido da visão, o saber a respeito do passado, na forma de um conhecimento acadêmico específico assim como nas diferenciadas formas de demanda das sociedades contemporâneas em torno deste conhecimento2, suporia igualmente uma relação importante com o mundo das imagens, com a capacidade de representar o passado através de figuras, com o olho associado à escrita. Estaríamos nos aproximando do sonho de uma escrita da história mais próxima de uma totalização, em virtude dessas infinitas e sofisticadas capacidades de produção do passado em arquivos?

É importante termos claro que, no caso do trabalho do historiador, essa relação entre o visível e o invisível parece revestir-se de uma peculiaridade, pois não se trata apenas de imaginar e visualizar o passado como algo irreal, fora da realidade presente à experiência sensorial, mas como algo anterior ao nosso tempo, o que configura, portanto, uma especificidade a este ausente a ser visualizado: o de ser anterior ao nosso tempo e que, por isso, mantém com ele certas relações3. Esta discussão implica necessariamente um cuidado, no sentido de precisar os termos com que operamos, que se torna evidente já na definição do que seria a visualização do passado, implicada tanto numa narrativa escrita sobre eventos pretéritos (que supõe do leitor uma imaginação do que está sendo narrado) como também num projeto de patrimonialização desse mesmo passado em instituições que dão suporte a esta visualização como, por exemplo, os museus.

Nesse sentido, as observações de Ulpiano Bezerra de Meneses4 constituem-se em indicações preciosas para este trabalho de precisão dos termos a serem operados. Visando a ir além de uma perspectiva apenas documentalista da imagem – largamente conhecida pelos historiadores de ofício e que, na realidade, tem no modelo da fonte escrita, definida segundo os cânones da disciplina no século XIX, sua fonte de inspiração –, Bezerra de Meneses nos adverte para a importância de diferenciar três ordens de questões ao enforcarmos o problema das imagens e seu tratamento pela história: a dimensão do visual, a do visível e a da visão, articuladas em feixe e procedimento enriquecedor para o tratamento dessa dimensão da experiência social. Aí também encontramos outra sugestão importante e complexificadora do trabalho do historiador com o universo das imagens, que deixaria de ser visto apenas como fonte para a história a ser narrada, e ganharia a dimensão de uma experiência social particular e, como tal, dotada de historicidade. Isso significa assumir que a imagem não pode ser tratada apenas a partir de sua dimensão documental, fonte de informações para a pesquisa. Assim como o texto literário, a imagem não se esgota como documentação, o que significaria tratá-la segundo os procedimentos que a crítica histórica definiu para as fontes escritas, perdendo, dessa forma, sua dimensão de criação que permite a experimentação, sob determinadas condições, de uma experiência do passado5. Ao tratar a dimensão do visual, segundo as indicações de Bezerra de Meneses, caberia um inventário das "condições técnicas, sociais e culturais de produção, circulação, consumo e ação dos recursos e produtos visuais"6, assim como das instituições que dão suporte aos sistemas visuais e que são também produtoras de narrativas sobre o passado a partir dessas imagens. O visível e o invisível, na proposta de Bezerra de Meneses, articulam-se a partir da dimensão do poder, daquilo que torna algo visível ou não; e, neste sentido, aproxima-se daquilo que, a partir de Certeau, poderíamos entender como constituinte de uma operação histórica. Uma operação que tornaria articulável uma certa visibilidade do passado, através de procedimentos de dar à visão, e que, no mesmo movimento, produziria o seu oposto: o invisível. Finalmente, a visão aponta na direção de um sujeito que vê; e das técnicas e modalidades do ver, supondo, portanto, uma ancoragem no tempo. Esse sujeito que vê é, ao mesmo tempo, produto da história e lugar a partir do qual certas práticas são articuladas.

Vivemos, igualmente, um tempo em que a força dos investimentos sociais nas tarefas de memória ganharam grande visibilidade em nossas sociedades contemporâneas: quer pensemos nas tarefas de patrimonialização e musealização do passado, objeto de políticas públicas do Estado e mesmo de organizações internacionais como a Unesco, quer consideremos, também, aquelas voltadas para a sua visualização através dos meios de comunicação de massa. Revistas de larga tiragem, vendidas em bancas de jornal, e séries televisivas disponibilizam aos consumidores de imagem de nosso tempo uma gama de passados desejados por um presente que se apresenta cada vez mais com maior força. Na esteira daquilo que se convencionou chamar de "dever de memória" – e como parte dos desdobramentos de experiências traumáticas como a do holocausto –, entramos num tempo em que nossa relação com o passado vem se alterando de maneira significativa. É preciso, no entanto, estarmos atentos para o fato de que mais lembrança, como parte das demandas de nossa contemporaneidade, não implica necessariamente em mais conhecimento do passado e, muito menos, em uma compreensão crítica dessas experiências pretéritas. É preciso ter claro que lembrança e esquecimento caminham juntos, como processos ativos e necessários à vida social, e que a escrita pode ser a forma mais rápida para o fácil esquecimento7. Vivemos aquilo que Andreas Huyssen8, de maneira tão aguda, denomina a sedução pela memória, um tempo em que nossas sociedades vivem uma verdadeira "inflação de memória", acompanhada por uma monumentalização das formas de relação com o passado. A sedução, que na formulação conceitual freudiana vincula-se à recordação de cenas vividas ou imaginadas, supõe, portanto, uma centralidade da lembrança e seus mecanismos de constituição de sujeitos. No caso da sugestão de Andreas Huyssen, é como se vivêssemos sob o imperativo da recordação, prisioneiros da necessidade de sempre e de tudo lembrar. Este imperativo nos leva à compulsão por arquivos e tarefas de arquivamento, esquecendo-nos, como aliás bem nos lembra Elisabeth Roudinesco9, de que se tudo está arquivado, anotado, controlado e vigiado, a história como criação não é mais possível, transformando-se o passado em espelho do próprio arquivo, transmutado em lugar da verdade, reificado e de-historicizado. O arquivo perde sua dimensão de escritura e, portanto, sua forma simbólica e necessariamente histórica de significação das experiências humanas. Perdendo-a – a dimensão de escritura –, perde com isso sua condição de permitir o acesso à imaginação do passado como forma de evocar experiências vividas por outras sociedades em outros tempos; em outras palavras, tornar o invisível, visível para os homens de outros tempos e outros lugares.

Vivemos uma conjuntura paradoxal: um significativo aumento na capacidade técnica de arquivamento e armazenamento do passado e a experimentação de uma velocidade do tempo que parece limitar esse mesmo arquivamento dos eventos e experiências vividas. Se o próprio presente quer fazer-se passado, sobretudo pela escrita com imagens, como construir sobre ele um conhecimento que se fundou exatamente no pressuposto de que passado e presente se constituiriam em duas ordens temporais radicalmente diversas e distintas, demandando o tempo como condição necessária de transformação de eventos e experiências em passado. Caberia igualmente interrogarmo-nos acerca dessa ordem particular do tempo, que nos impõe a necessidade de produção de múltiplas e diversificadas narrativas do passado, abrindo um enorme espaço para sua produção através das inúmeras possibilidades imagéticas: a produção midiática que, a cada vez, parece tornar o passado consumível pelos meios de comunicação, intenso processo de patrimonialização, que tem tornado a preocupação com a preservação dos bens do passado uma política não apenas de Estado mas também de organismos como a Unesco.

Dados recentes dessa organização indicam este esforço: a 29ª Sessão do Comitê do Patrimônio Mundial, reunida em Durban, na África do Sul, em julho de 2005, inscreveu na lista mundial de bens patrimoniáveis trinta novos bens, somando, até o momento, um total de 812 bens preservados em 137 países. O patrimônio como política tornou-se também uma preocupação globalizada. Para os que acompanham a política do Ministério da Cultura10, é perceptível um investimento nesse mesmo esforço de patrimonialização, através não só da criação de novos museus como também da definição de uma política para o patrimônio imaterial.

Enfim, o que importa apreender nesses diferentes movimentos é o sentido de temporalidade que está implícito nesse trabalho com o passado, que parece apontar para aquilo que Hartog11 tão agudamente indica como a força do presentismo como forma peculiar de uma ordem do tempo própria às sociedades contemporâneas. Uma ordem em que o presente é onipresente e massivo em sua força; e único horizonte disponível para as sociedades contemporâneas. Mas é, igualmente, um presente atormentado pela busca de suas raízes e pelas exigências de uma memória, reformulando constantemente seu projeto de lembrança/esquecimento dos grandes traumas do século XX: do Holocausto, passando pela guerra fria e pelas experiência do terrorismo de Estado em experiências políticas latino-americanas. À confiança no futuro, que marcara o projeto das sociedades oitocentistas, agrega-se agora um cuidado especial com a salvaguarda e a preservação12.

Em sua formulação, um regime de historicidade pode ser compreendido como a forma como uma sociedade trata seu passado e, igualmente, como uma maneira peculiar de definir uma consciência de si de uma comunidade humana. A política de patrimônio, portanto, não apenas indicaria o cuidado e a atenção com uma herança, com um legado que se acredita valioso o suficiente para ser conservado, com a posse de bens que seriam propriedade de uma sociedade, mas, sobretudo, apontaria na direção de uma relação com o tempo, mais especificamente com o passado, e um passado "cuja forma de visibilidade importaria para o presente"13. E, segundo ainda as sugestões de François Hartog, essa forma de visibilidade estaria ligada à capacidade de tornar visíveis os objetos de uma maneira distinta daquela própria ao momento de sua criação. Ao olharmos, portanto, para um objeto do passado – sejam aqueles colocados em exposição para o olhar nos museus, sejam aqueles monumentalizados no espaço de nossas cidades – é a partir de uma outra gramática que o vemos, articulado como objeto histórico; como patrimônio histórico. Perdem o sentido para o qual foram criados e adquirem um novo, conferido pela qualidade de histórico, estabelecendo, por esse procedimento, uma relação entre o visível do tempo presente e o invisível do passado.

É ao refletir sobre o tempo e sua centralidade para o trabalho do historiador que Hartog nos sugere uma entrada para o seu exame, através de uma cidade que, nas suas palavras, seria "uma cidade para historiadores"14: a Berlim de uma Alemanha reunificada, novamente capital de um país, cidade no centro da Europa, elo de ligação entre Oriente e Ocidente e cenário das experiências mais traumáticas da história recente: nazismo e holocausto, reconstrução e divisão pelo muro construído em 1961, capital que se quer memória e lembrança, considerando seus inúmeros projetos de investimento na história; mas, também, projeto e laboratório para o futuro. Para ficarmos com apenas alguns desses investimentos sociais em uma política do passado, basta lembrarmo-nos do novo projeto de um Museu de História Nacional, ocupando as antigas dependências do Museu com a mesma finalidade existente na Berlim antiga capital da República Democrática Alemã. Igualmente os projetos vinculados à lembrança coletiva do Holocausto (materializados no Museu Judaico e no monumento a céu aberto, para recordação do massacre de judeus) apontam para essa preocupação em relação a um passado que não pode passar15. Uma cidade onde o passado parece adquirir uma centralidade ímpar, e, igualmente, uma que investe em ser a referência urbana do século XXI, tendo em vista seus projetos arquitetônicos para ocupar os vazios deixados por uma experiência histórica que espalhou suas marcas na geografia da cidade. Neste sentido, busca preencher os vazios, apagar as ausências e lacunas, elas mesmas tão expressivas de uma história que se fazia presente pelo que deixava não preenchido.

Especialmente em relação ao projeto urbanístico de ocupação da área antes tomada pelo muro no antigo centro da capital berlinense da República de Weimar, é clara a intenção de preencher o enorme vazio que dividia a cidade, um vazio cheio de significados, ocupado por militares e torres de controle que vigiavam o espaço. O muro, que por quase quatro décadas dividira a cidade, transforma-se, com a reunificação, em peça de museu aberto, exposto à visitação pública, sendo agora objeto de uma assepsia que o afasta das inúmeras experiências dramáticas a que esteve ligado. Submetido a uma nova sintaxe, o muro pode transformar-se, assim, em objeto de museu, vestígio de um passado controlado pelas exigências da lembrança que se quer ter no presente, e que se deseja projetar para o futuro. Curiosa transformação a que se desenrola no espaço da cidade, lugar onde a história se escreve com outros sinais e materiais, operando a partir do ato de lembrar-se. Ocupam-se os vazios com a lembrança possível de um passado que se quer superado, mas, também, com investimentos para um recordar-se num futuro.

Essa consciência da necessidade imperiosa de lembrar um passado expressava-se já de maneira bastante clara nas palavras do prefeito da cidade, por ocasião das comemorações dos 750 anos de Berlim, em 1987. Na introdução ao catálogo da exposição que pretendia visualizar o passado da cidade, desde a fundação à contemporaneidade, escrevendo com imagens e objetos uma narrativa para uma cidade que se via dividida e parecia buscar no passado a possibilidade de sua unidade perdida, Eberhard Diepgen afirmava:

Raramente uma cidade, num espaço de tempo tão curto, moldou e experimentou a história como Berlim. Berlim provoca não apenas uma reflexão acerca de formas de lidar com a história como sobretudo acerca da história contemporânea. Sua posição no centro da Europa coloca inapelavelmente a questão em torno de como serão suas relações com o continente europeu16.

Uma política para o passado é, necessariamente, uma demanda da política do presente, e Berlim parece constituir-se no locus ideal para a investigação dos investimentos contemporâneos numa política de memória e lembrança assim como numa preocupação com relação à visualização e exposição do passado17. Ao final de 2004, preparando-se para a lembrança dos 60 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, o Museu Histórico Alemã, na capital berlinense, inaugura uma exposição – Mitos das Nações. Arena das Lembranças. Partindo do pressuposto que a lembrança da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto são elementos fundamentais da nova identidade européia em gestação, a exposição visava a trazer ao público as diversas visões, produzidas em diferentes sociedades que viveram a Guerra, acerca do fim dos conflitos em maio de 1945. Segundo a concepção da curadoria, as sociedades saídas do confronto bélico não recordavam o morticínio que a guerra significou, mas construíram o mito da luta de resistência. Uma lembrança necessária às tarefas de reconstrução nacional no pós-45. Mitificação e repressão aliaram-se para a produção de um passado suportável, diante das tarefas de reconstruir sociedades material e simbolicamente esgarçadas. No entanto, como o título da exposição sugere, este é um terreno de disputas, uma arena de lembranças18.

Assim, nossa relação contemporânea com o tempo, marcada pelo regime de historicidade definido por François Hartog como presentista, supõe não apenas refletir sobre a escrita da história no seu sentido acadêmico, como produção do conhecimento, mas igualmente refletir sobre os usos do passado em nossa contemporaneidade. Implica, ainda, em formas peculiares de visibilidade para esse passado, entendendo-a como parte de uma estratégia social e política, se quisermos essa visibilidade como parte dos usos possíveis e necessários do passado.

Refletir sobre o patrimônio, segundo entendo, como uma das formas possíveis de produção dessa visualização, impõe-nos uma reflexão em torno de uma forma específica das sociedades modernas e contemporâneas lidarem com a experiência do transcurso do tempo e seu resultado para o conjunto das realizações humanas. Significa, então, operar a partir de um duplo incontornável: a ausência e o sentimento que ela provoca, especialmente num tempo marcado pela sensação de velocidade e fugacidade. Essas mesmas experiências passadas só podem ser significáveis através dos traços/restos/indícios que nos chegam. Traços que poderão, assim, ressignificar as construções materiais das sociedades passadas, fazendo com que seus objetos possam ser vistos como algo diferente daquilo que o foram quando criados. Reinscritos e lidos sob nova chave, viabilizam formas peculiares de visualidade para o passado, aquela necessária ao nosso presente.

Como forma peculiar de visualização própria ao nosso presente, os esforços em torno do trabalho do patrimônio e sua preservação indicam, portanto, uma das possíveis formas de sintomatização de nosso tempo – indício valioso para percebermos nossa peculiar relação com sua passagem – e os sentidos que a ela podem ser atribuídos. Outras formas de visualização do passado, por sua vez, podem significar igualmente um caminho fecundo para a compreensão das experiências sociais ao logo do tempo, tarefa por excelência do ofício de historiador.



Historicizando um problema: a relação entre o escrito e a imagem

As tensões implicadas na relação entre o escrito e a imagem podem remontar à tradição judaica e à implantação das religiões monoteístas como religiões baseadas na escrita e na lei, definindo-se como assentadas na crença, e não, no culto. Como religiões de crença, fundamentam sua prática a partir da noção de uma revelação que não é dada à percepção e à sensibilidade humanas e, por isso, só pode ser inteligível pela crença. Por este caminho, define-se igualmente uma opção que valoriza o escrito em detrimento das imagens, que passam a ser associadas aos cultos pagãos, ao erro e à incapacidade de atingir o verdadeiro Deus. Importa, contudo, lembrarmo-nos de que a escrita se realiza através de um conjunto de sinais, e que estes guardam evidentemente uma dimensão visual19. São significativas as conseqüências, assim como tortuosos os caminhos, que farão possível a incorporação das imagens à tradição monoteísta cristã. Em um instigante trabalho, Jan Assmann20, relendo o clássico de Freud Moisés e o Monoteísmo, denomina de "decisão mosaica" a constituição de duas esferas culturais demarcadas a partir de distintas heranças religiosas. Para o autor, o que importa ressaltar é o fato de ser o espaço cultural – criado por esta diferenciação entre falso e verdadeiro no campo da religião – o espaço do monoteísmo, espaço cultural e espiritual habitado pelos europeus há pelo menos dois mil anos. O espaço produzido por esta diferenciação apresenta-se como algo totalmente novo se comparado com a experiência das religiões antigas, politeístas, uma vez que estas operavam como traduções culturais, pondo culturas distintas em contato. Essa nova religião e o espaço cultural produzido pela experiência do monoteísmo impediram a tradução cultural, uma vez que, ao estabelecer um deus verdadeiro e outros deuses como não verdadeiros, impossibilitou que se pudesse formular a tradução de um deus considerado não verdadeiro, um contra-senso para esse universo cultural forjado pela experiência do monoteísmo. As conseqüências deste espaço cultural aberto pela experiência da "decisão mosaica" apontavam para uma tensão específica: de um lado, a verdade como única e baseada na força do texto, abrindo espaço para a eliminação daquilo considerado falso e mentiroso e, por isso, ameaçador da verdade da lei; por outro, um caminho aberto a uma maior racionalização do mundo e à fundamentação das ações humanas – uma ética da ação – a partir de constrangimentos de ordem moral e jurídica. Segundo Assmann, a "decisão mosaica" introduz um novo tipo de verdade, "absoluta, revelada, metafísica, ou verdade da crença"21.

Uma vez estabelecida a diferenciação cultural, entre o falso e o verdadeiro, entre o monoteísmo e o politeísmo, é importante o trabalho de lembrança para que os espaços culturalmente divididos possam ser não apenas lembrados como também possam ganhar em extensão temporal. Dessa forma a lembrança tende a tomar a forma de uma narrativa grandiosa, de um mito fundador que, no caso da mosaische Unterscheidung (decisão mosaica), é a narrativa do êxodo, que igualmente separa judeus de egípcios, associando a este povo a idéia de pagãos e condenando uma das práticas recorrentes dessa cultura – o culto às imagens –, que se torna, portanto, o pior dos pecados, que passa a estar associado à mentira: a idolatria. Desta forma os quadros/imagens são considerados como outros deuses, uma vez que o verdadeiro deus não se deixa representar pela imagem.

Importante de se sublinhar é o fato de que a lembrança, o ato da recordação, torna-se duplamente importante na definição dos espaços culturalmente definidos pela "decisão mosaica". Por um lado, Assmann adverte-nos para o próprio fato de que Moisés é, em si, uma figura da lembrança, uma vez que carecem evidências históricas de sua existência; por outro lado a lembrança é que assegura o caráter instituinte de uma diferença entre o falso e o verdadeiro, entre o deus verdadeiro e os falsos. Mas lembranças não implicam também na capacidade de produção de imagens? Ao sublinhar a centralidade da cultura da lembrança como parte do universo cultural forjado pelo monoteísmo, Assmann começa por apontar um curioso paradoxo: aquele existente entre um mapa geográfico – em que Israel e Egito partilham um mesmo território de trocas e conexões – e o que chama um mapa da memória (território da memória) – em que estas regiões aparecem como dois mundos separados. O monoteísmo estabelece, portanto, dois territórios culturais, que se diferenciam não através de um processo evolutivo mas através de um movimento de revolução/ruptura, que vem de fora através de uma "aparição". Neste sentido o Êxodo, como momento inaugural, simboliza o momento temporal da separação entre passado e futuro, entre duas épocas distintas da história da humanidade. Egito representa, assim, não apenas o reino da idolatria, mas sobretudo a superação de um passado. Lembrar esse passado significa não apenas lembrar-se de uma conversão e, portanto, de uma diferença, como também assegurar a identidade dessa diferença, fundada no escrito e não na imagem. A recusa da imagem abre o caminho para o mundo do espírito que, por sua vez, significaria um afastamento do mundo sensível e, segundo Assmann, lendo Freud, a proibição das imagens trazia consigo implicitamente três princípios fundamentais da religião monoteísta: "a idéia de um único Deus, o descrédito dos cerimoniais mágicos e a ênfase nas exigências de natureza ética"22.

Assim, nos primeiros momentos de sua história, o cristianismo reafirma uma tradição segundo a qual o mundo do visível estaria negado ao espírito, reafirmando uma atitude antiidolátrica, expressa de maneira clara por figuras centrais para a cultura cristã, como o apóstolo Paulo. Para ele, no mundo sensorial, não poderia haver a esperança cujo objeto é a salvação para o cristão. Essa cultura caracteriza-se por uma clara negação dos prazeres dos sentidos. "Pero esperar lo que no vemos, es aguardar con paciencia..."23 Poderíamos supor, nessa formulação, uma importante herança a ser reescrita pela disciplina histórica no século XIX, ensinando os homens a desejarem o futuro, que não vêm, mas que imaginam; e, por esse caminho, aguardá-lo com paciência e esperança na sua realização.

No entanto, a tensão que viria a expressar-se com o filho de Deus se fazendo carne apontaria para importantes alterações na relação entre a cultura monoteísta e o significado das imagens. Se o próprio filho de Deus se fizera homem como nós, abria-se uma nova dimensão para pensar e valorizar a dimensão carnal da experiência humana, vinculada às experiências sensoriais do mundo. O reconhecimento da divindade do filho implicava, em alguma medida, a aceitação da matéria no espírito; e especialmente a partir do Concílio de Éfeso, proclamando a maternidade divina de Maria, deificava-se a carne do Filho de Deus, do Salvador. Como prosseguir na estrita separação entre verdade do espírito e falsidade da carne, quando o próprio filho de Deus se tornava carne? Como então compatibilizar escrito e imagem como possibilidades iguais de acesso a uma verdade, antes concebidas apenas pelo caminho do escrito, lugar da verdade? De fato a progressiva substituição de uma religião do pai por uma religião do filho, com a conseqüente valorização de sua realidade carnal, de sua experiência no mundo dos homens, acompanhou o progressivo processo de valorização das imagens e da sensorialidade que a ela correspondia.

Segundo Facundo Tomás24, uma mudança na forma de valorização das imagens, e no seu significado para a cultura ocidental, representou, a partir dos séculos III e IV, especialmente após o cristianismo ter se tornado uma religião oficial, a assimilação de aspectos significativos da cultura do império romano e dos diferentes povos que o integravam, aspectos que valorizavam sobremaneira a dimensão imagética, conformando o que o autor denomina "uma cultura icônica romana". Segundo ainda o mesmo autor, a força desta sensorialidade icônica teria sido fundamental para que o cristianismo pudesse sintetizar a história e, no mesmo movimento, afirmar-se com um projeto universal. O papel das imagens, anteriormente percebidas exclusivamente como fonte do erro e do pecado, passam a ser vistas como impulsionadoras da recordação e, por esse caminho, poderiam estimular o pensar e o aproximar-se das forças incorpóreas, mais próximas à verdade da fé cristã. Ao inventarem-se imagens que teriam por função recordar a existência de um divino e de um sagrado, estimulava-se o intelecto a se aproximar destas forças incorpóreas e invisíveis ao homem, agindo a imagem, portanto, numa dupla chave: a da recordação de um mundo invisível e a da ligação entre esses dois mundos. Quanto destas heranças não poderíamos perceber nas diferentes formas de visualização do passado que as sociedades modernas irão produzir para sua relação com este invisível, assim tornado pela passagem do tempo? Facundo Tomás sublinha, contudo, que este não foi um caminho desprovido de tensões e disputas, uma vez que a alta hierarquia da Igreja continuava mantendo um discurso antiimagético e bastante reticente quanto ao valor e significado das imagens para a vida religiosa, quando na verdade seus fiéis imergiam num mundo das representações imagéticas para representação de sua religiosidade. Educados na religião do filho feito carne para salvar os homens, essa massa de fiéis necessitava "contemplar a Deus com seus olhos, senti-lo próximo e tangível, adorar algo mais perto do que o espírito paterno imaterial sobre o qual se podia pensar com o intelecto mas não captar com os sentidos"25. O lento caminho que tornava as imagens valorizadas pela cultura cristã impunha, contudo, restrições evidentes, sobretudo quanto à interpretação de seus significados, submetidos a uma lógica rigorosa que impedia qualquer possibilidade de ambigüidade com relação ao sentido.

Recuperada em sua dignidade, a imagem, ao lado do escrito, assume diferentes significados na cultura moderna como possibilidade de visualização do passado, como forma de oferecer à visão o invisível do passado.



Produzir o passado como visibilidade: Cultura antiquária e colecionismo

Os objetos para darem recreação à vista estão todos lá: livros,
ânforas, tinteiros, esferas armilares, relógio, gaiola de papagaio,
espelhos abertos, instrumentos musicais.
Adalgisa Lugli26




Duas características centrais da cultura colecionista, do amadorismo, estão presentes na citação: em primeiro lugar, a diversidade de objetos que compõem a coleção, que pode reunir objetos do mundo natural como igualmente objetos do passado, documentos, moedas, livros: quer as naturalia quer as artificialia. Um certo sentido universalista parece marcar a atitude colecionista. Em segundo lugar, os objetos expostos à visão devem provocar recreio, satisfação, inscrevendo-se num projeto bastante peculiar em que a coleção é parte do tempo ocioso, ligada às atividades de repouso e meditação, com fortes traços da herança monástica. Como compreender a visibilidade inscrita nesse projeto colecionista, que transforma os objetos em semióforos, segundo a sugestão de Pomian, capazes de articular o aqui e o além? Essa visibilidade só pode ser compreendida se levarmos em conta não apenas o que significa ver nesta cultura, como também os lugares responsáveis por esta visibilidade. Sendo igualmente um sistema que dispõe objetos à visão de um espectador em forma de escrita do passado, os procedimentos antiquários e colecionistas acabaram por se transformar em sinônimos de uma atitude desprovida de sentido e finalidade, lidos pela chave interpretativa da filosofia da história, que condenou tais práticas. Segundo a clássica definição de Pomian uma coleção como "qualquer conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos temporária ou definitivamente fora do circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção especial num local fechado preparado para este fim, e expostos ao olhar do público"27, traz consigo explicitamente a centralidade da exposição ao olhar. Dispostos segundo uma gramática, os objetos assim reunidos estão ali para serem vistos e viabilizam uma relação entre o visível e o invisível, seja esse concebido temporal ou espacialmente. A coleção, na forma como praticada pelas sociedades modernas a partir dos séculos XVI-XVII, materializaria o passado, tornando-o visível, tangível e, por isso, presente aos observadores contemporâneos. A obra de Walter Scott, O Antiquário, publicada em 1816, constitui-se numa oportunidade de entrarmos no universo da cultura antiquária, ainda que, em seu texto, o autor traduza a chave interpretativa que acaba por desqualificar a forma específica de relação com o passado embutida nesta proposta. O escritor, celebrizado por novelas como Invanhoé, retomava na verdade um tema que, durante o século XIX, começa a ganhar popularidade entre os círculos letrados e cultos: o interesse pelo passado, agora não mais apenas o passado greco-romano, mas o passado mais próximo, o das sociedades européias. O passado nacional. A grandeza e a nobreza do passado, tidas como característica única e exclusiva da Grécia e da Roma clássicas, passam a ser possíveis também para as sociedades existentes antes da conquista romana, incentivando um movimento de interesse pelo conhecimento e preservação das chamadas "antiguidades nacionais"28. Especialmente nos países anglo-saxões, esta valorização de um passado pré-romano incentivara não só um interesse pela história como, sobretudo, pela arqueologia, e pela preservação dos restos desse passado distante e sem referência nos textos clássicos. Em países como a Inglaterra e a Dinamarca, este interesse está na raiz de políticas estatais visando à preservação, à pesquisa e à difusão dos conhecimentos sobre tal passado. Ao escrever sobre ela, Walter Scott estava familiarizado com esta tradição, encarnada na figura de seu personagem principal: os temas – assim como as questões que integram o debate interno próprio ao saber antiquário – vão aparecendo ao longo do texto scottiano. Quando, ao longo do sexto capítulo, apresenta uma discussão entre dois personagens acerca da origem gótica ou celta para o nome de uma população, a argumentação em defesa de uma ou de outra postura recorre aos postulados da cartografia histórica, formulados por William Camden, segundo os quais o estudo lingüístico da toponímia poderia contribuir para distinguir as diferentes origens históricas das regiões em estudo, considerando especialmente seu povoamento e ocupação. Camden era autor de uma obra que conhecera enorme sucesso de publicação, intitulada Britannia, em que realiza descrição histórica e geográfica das ilhas britânicas. Publicado em 1586, seu livro terá seis edições em latim e, em inglês, uma primeira edição no ano de 1610, reimpressa em 1637. Ao longo do século XVIII, o trabalho de Camden é reeditado inúmeras vezes, com uma reimpressão no começo do século XIX, vindo a constituir-se em obra de referência para os estudos antiquários. Cada um dos personagens do romance scottiano invoca, assim, a autoridade de um especialista em antiguidades para sustentar sua hipótese29.

O romance de Walter Scott aparece, portanto, num momento inicial de valorização das "antiguidades nacionais", cujo emblema maior ainda é a figura do antiquário. Ao longo do século XVIII, as descobertas arqueológicas do passado romano da Inglaterra iriam estimular o interesse antiquário, presente já nas coleções de moedas de Oxford e de outros colleges desde o século XVI. Progressivamente, ao longo das décadas seguintes, esse interesse crescerá, procurando dotar a pesquisa arqueológica de procedimentos científicos os mais atualizados. Neste sentido, a viagem de Worsaae (figura que viria a constituir-se em personagem central da arqueologia européia no século XIX), durante nove meses dos anos de 1846-1847 pela Inglaterra, Escócia e Irlanda, tinha como finalidade provocar um interesse maior pelas antiguidades nacionais inglesas, de forma a constituir espaços especializados e adequados para sua conservação e exposição. A divulgação da teoria das três idades – pedra, bronze e ferro – entre as sociedades de letrados das ilhas britânicas propunha, para o estudo das antiguidades nacionais inglesas, uma cronologia que se assemelhava àquela estabelecida para o caso dinamarquês30.

Esta cultura antiquária revela-se como uma cultura do objeto, uma valorização por excelência dos procedimentos da autópsia, com a conseqüente valorização da visão em detrimento do escrito. Trata-se, na verdade, da disputa entre procedimentos que ainda têm na escrita a fonte para o conhecimento dos objetos dispostos ao olhar e aqueles que buscam uma autonomia do objeto em relação ao escrito. Esta disputa pode ser exemplificada pelas concepções de Caylus (1692-1765) e Johann Joachim Winckelmann (1717-1768), respectivamente. Enquanto o primeiro procura uma absoluta autonomia do objeto em relação ao texto, o segundo, ainda que também valorizando o objeto e a visão como procedimento fundamental para o conhecimento, busca fundar uma hermenêutica da visão que ainda obedece às mesmas regras aplicáveis ao texto escrito31. Caylus, membro da alta nobreza, e bem relacionado com os antiquários de sua época, foi crítico sistemático dos procedimentos interpretativos originados da tradição filológica, advogando uma prioridade do objeto sobre o texto, acreditando que uma parte da história desses objetos deveria ser buscada neles próprios, desde que fossem deixados falar de maneira adequada32. Segundo a análise de Elisabeth Découltot, a hermenêutica do antiquário é ainda aquela do filólogo. Somente no século XIX se operaria a ruptura radical com a tradição filológica que marcara o trabalho daqueles envolvidos com o conhecimento dos objetos do passado.

Contudo, a imagem desse homem interessado pelo passado e pela coleção de seus restos materiais (que nos chega pela mão de Scott) reproduz de certa maneira um estereótipo que, desde o século anterior, vinha se configurando em relação a este "amante das coisas do passado": erudito desprovido de um sentido mais contemporâneo para sua atividade colecionista, alheio às questões centrais de seu tempo e devotando ao passado um culto religioso, sacralizando os seus objetos pelo próprio fato de trazerem inscritas "em si" as marcas de um tempo passado e distante, como que um signo suficiente para o seu valor. No terceiro capítulo de seu romance, ao descrever a visita do jovem Mr. Lovel ao antiquário Jonathan Oldbuck, o personagem principal, ao conduzir o jovem visitante em direção a sua coleção de antiguidades, refere-se ao lugar como sanctum sanctorum e à sua vida como a de um cenobita em meio àqueles restos e provas materiais da existência do passado33. Após uma caminhada por aquilo que o autor nos faz parecer um verdadeiro labirinto, pouco iluminado e guardando perigos a cada passo, chegam finalmente à sala onde Mr. Oldbuck guarda suas relíquias do passado e as descortina para um jovem Mr. Lovel, um tanto perplexo pelo desarranjo dos objetos misturados a documentos e papéis diversos, impressionado pelas explicações fornecidas pelo antiquário para os objetos que tinha diante dos olhos, explanações fundamentadas a partir de referências a documentos históricos cujos autores desconhecia por completo.

A large old-fashioned oaken table was covered with a profusion of papers, parchments, books and nondescript trinkets and gewgaws, which seemed to have little to recommend them, besides rust and the antiquity which it indicates. In the midst of this wreck of ancient books and utensils, with a gravity equal to Marius among the ruins of Carthage sat a large black cat, which, to a superstitious eye, might have presented the genius loci, or tutelar daemon of the apartment. The floor, as well as the table and chairs, was overflowed by the same mare magnum of miscellaneous trumpery, where it would have been as impossible to find any individual article wanted, as to put it to any use when discovered34.

A passagem de Scott reúne o conjunto de sinais que, desde o século XVIII, passam a ser associados à atividade do antiquário: falta de método na coleção dos objetos que guarda, amadorismo e, sobretudo, uma suposta falta de utilidade para um esforço colecionista desta ordem. Mesmo quando se conseguisse encontrar documentos ou objetos em meio à desordem da coleção antiquária, esses não teriam qualquer utilidade. O sentido desse esforço colecionista deve, segundo os cânones de um novo interesse pelo passado, ser capaz de tornar esse passado útil aos homens do presente a partir de uma pragmática que visa à ação. Olhar o passado e interessar-se por ele sem o sentido do presente parece significar a atividade do diletante, daquele que tem na atividade intelectual apenas o remédio para o ócio. Certamente não foi sempre esta a imagem dos antiquários e de sua atividade de colecionadores, sendo seu interesse pelo passado considerado tão legítimo quanto o conhecimento histórico balizado a partir de novos referenciais, como o que praticamos hoje. Quando e porque esta imagem se altera e que elementos estão em jogo para legitimação de uma nova forma de interesse pelo passado, que necessariamente desautoriza a prática antiquária, são questões importantes de serem retomadas para compreendermos o complexo processo de constituição de uma escrita científica da história. Continuar apenas reafirmando a superação da tradição antiquária não significa compreender os mecanismos de incorporação da tradição, ou melhor, o jogo de constituição desta mesma tradição a partir dos critérios que definirão o que será ou não legítimo em termos de sua incorporação. Em outras palavras, importa sobretudo considerar as diferentes formas próprias de nossa cultura de incorporação e de sensibilização em relação às experiências do passado, ora tendendo a vê-las como tradição, ora percebendo este mesmo passado como história35. A menos que consideremos a história como uma evidência, expressão de uma natureza dos homens, igual à existência do passado registrado das mais diferentes formas, torna-se necessária a compreensão desse processo que transforma o passado e suas experiências mais diversas e distintas em um todo organizado e dotado de sentido que passamos a conhecer pelo nome de história. É preciso, portanto, romper com a démarche ingênua de que a existência pura e simples das experiências passadas é a garantia segura para a história como disciplina. Se a ocorrência dessas experiências humanas num tempo recuado é condição para que possa existir sua incorporação como história, passível, inclusive, de um conhecimento rigoroso e controlado, ela não é o certificado de evidência da história. Se, Antiquários e Historiadores modernos, temos no passado um espaço privilegiado para nossas reflexões, não se trata certamente de um mesmo passado, e nem mesmo de uma mesma forma de compreender as relações deste passado com o presente. São exatamente neste sentido as perguntas e interesses dirigidos ao passado, num esforço de interrogá-lo a partir de experiências históricas que fundarão a possibilidade da tradição, recortando deste passado as respostas "adequadas" para nossas perguntas. As antiguidades nacionais, valorizadas, como dissemos, a partir do começo do século XIX, sempre estiveram existindo em sua materialidade nos lugares onde pretensamente serão "descobertas" ao longo do oitocentos. Contudo não foram captadas como antiguidades senão quando um olhar modernamente constituído pode incorporá-las como parte da tradição e do passado dessas sociedades nacionais. Sem o exame deste olhar que capta o passado e seus restos e os constitui como Antiguidade, continuaremos prisioneiros de procedimentos canonizados a partir da institucionalização da história ao longo do século XIX, que procura afirmar a Antiguidade como um valor intrínseco aos objetos em si, mensurável e quantificável, fornecendo, com isso, a ilusão de uma objetividade do tempo decorrido. Prisioneiros desta mesma memória disciplinar, reafirmamos as demarcações e as rupturas que era necessário este procedimento disciplinar constituir para se afirmar como portador de um conhecimento legítimo sobre o passado, deixando de perceber não apenas certas continuidades, mas, sobretudo, o jogo de silenciamento e de escolhas a que se procedeu para que os antiquários fossem vistos como incapazes de conhecer verdadeiramente o passado. Com isto, queremos afirmar que a prática dos antiquários assim como a dos historiadores modernos constituem duas possibilidades distintas e diversas de acionar práticas tendentes a uma relação com o passado e que implicam em procedimentos e regras que envolvem não apenas a memorização como também a transmissão, dando origem a uma escritura que definirá o legítimo ou ilegítimo em relação ao conhecimento deste passado. O primeiro – o antiquário – torna o passado em presença materializada nos objetos que o circundam; o segundo – o historiador – torna o passado distante e objeto de uma reflexão científica, cognoscível apenas por este procedimento intelectual capaz de apreender este passado como processo, como um vir-a-ser do presente. Enquanto o olhar do antiquário parece aproximar o passado do presente, estabelecendo uma relação entre o visível e o invisível segundo determinados dispositivos, produz, para este mesmo passado, uma visibilidade segundo a qual não são os dispositivos de uma cronologia (por vezes associada a uma rígida relação de causação) que estabelecem os nexos entre o que se pode ver e aquilo que se torna, pelas mesmas razões, invisível.



A visibilidade do passado pela disciplina histórica oitocentista

Tornou-se consenso que os fundamentos disciplinares da história, concebida como projeto científico, foram lançados pelo trabalho de Ranke e pela clara definição e diferenciação entre fontes primárias e fontes secundárias. A base da escrita histórica estaria assentada no trabalho de pesquisa das primeiras, suporte da escrita do passado. E por fontes primárias entendia-se basicamente as fontes escritas, registro considerado prioritário para as tarefas da nova disciplina que buscava afirmar-se no espaço acadêmico prussiano da Universidade de Berlim. No entanto, também datam do final do século XVIII e começo do século XIX, especialmente na França pós-revolucionária, os esforços no sentido de organização do passado através de sua visibilidade nos museus. Nessas instituições – que são criadas como parte de uma política do Estado voltada para a administração do passado francês –, o visitante, informado por um conhecimento livresco, adquirido pela leitura dos textos sobre o passado, deveria encontrar conforto para seu conhecimento, uma vez que tais espaços seriam capazes de produzir para o visitante um efeito do real36. Os objetos, dispostos segundo um princípio historicista, assegurariam ao visitante a certeza do passado, possibilitando assim uma visibilidade do invisível e, sobretudo, a certeza de sua realidade passada. Mas não apenas objetos estariam sendo colecionados no museu oitocentista, e, sim, também lugares: uma vez que, arrancados de seus espaços primitivos, tais objetos poderiam evocar também seus lugares de origem, combinando, portanto, nessa operação de visualização, espaço e tempo. Numa certa medida é como se esta visualidade permitida pelos objetos dispostos engendrasse lembranças e recordações que ultrapassariam os limites da própria coleção reunida. Assim escrita e imagem articulam-se de forma peculiar na cultura histórica oitocentista, para conferir um novo sentido ao passado, agora pensado segundo as demandas de uma produção identitária específica ao século XIX. A imagem – nos espaços dos museus criados ao longo do século XIX na França – deveria não apenas ensinar, parecendo agregar o poder de ressuscitar o passado, despertando a história, segundo o relato de Michelet descrevendo sua visita ao Museu dos Monumentos Franceses, obra de Alexandre Lenoir37. Tornar os homens do passado novamente presentes ao olhar dos contemporâneos do século XIX era organizá-los segundo uma nova visibilidade: aquela que os transformava em grandes homens a serem lembrados no movimento de produção de uma identidade nacional francesa38. Ressuscitados pela lembrança, tornam-se os elos de uma cadeia que articula os homens do presente e do passado numa associação pela história, necessária à produção de uma identidade específica. Ao lado do Museu de Lenoir, outros projetos de exposição do passado são ativados por esta cultura histórica, como o Museu Napoleão, dirigido por Dominique Vivant-Denon entre os anos de 1802 e 1815 e instalado no Louvre; o Museu de História da França, na cidade de Versailles, criado em 1837; e o Museu de Cluny, organizado no ano de 1843 a partir da coleção de Alexandre du Sommerard. O museu de Versailles é o primeiro museu a se autodenominar de história e tinha por finalidade tratar de toda história da França, sendo por isso concebido, nas palavras de seus idealizadores, como "o encontro de nossa história nacional"39. A estas iniciativas localizadas na capital francesa, ou em suas proximidades, somaram-se outras nas diversas províncias voltadas para o recolhimento "dos arquivos dos tempos passados"40, sistematizando e organizando o interesse pelo passado próprio dessa cultura, enfim, dando visibilidade ao invisível do passado francês ameaçado pelo processo de transformações profundas sinalizadas pela revolução de 1789.

Um outro texto literário pode nos fornecer pistas interessantes e "boas para pensarmos" a relação entre a visibilidade das ruínas do passado e o entendimento do presente como resultado de uma cadeia histórica que articula eventos diversos no tempo. Esta visualização do passado encontra-se, como nos museus organizados pela cultura histórica do oitocentos, a serviço de um projeto em que o futuro parece informar o interesse pelo passado e difere, por isso, das formas de visualização do passado próprias à cultura antiquária. Aqui, uma finalidade especificamente histórica confere o sentido para as imagens expostas do passado, quer se tratando de uma instituição como os museus, quer se tratando de uma visita a uma cidade símbolo de uma viagem ao passado, como é o caso da cidade de Roma, cenário do romance de Mme. de Stäel a que faremos referência.

Ao entrar na cidade de Roma, Corinne, personagem título do livro de Madame de Staël, conduz o seu amado Oswald, lord Nelvil, pelas ruínas da cidade emblema do passado e de sua grandeza, itinerário obrigatório para a boa formação do letrado europeu das Luzes (e cidade também visitada pela autora do romance). A tensão dramática tem como cenário a própria história, presença visível através de seus restos materiais e constante indispensável para a cultura letrada do oitocentos, ela mesma se definindo como uma cultura histórica por excelência. Triunfo da história na sua capacidade de significar a vida dos homens, dando-lhes um sentido de continuidade para além do tempo presente de suas experiências finitas.

Je vous ai fait parcourir bien rapidement, dit Corinne à lord Nelvil, quelques traces de lhistoire antique; mais vous comprendrez le plaisir quon peut trouver dans ces recherches, à la fois savantes et poétiques, qui parlent à limagination comme à la pensée. Il y a dans Rome beaucoup dhommes distingués dont la seule occupation est de découvir un nouveau rapport entre lhistoire et les ruines. Je ne sais point détude qui captivât davantage mon intérêt, reprit lord Nelvil, si je me sentais assez de calme pour my livrer: ce genre dérudition est bien plus animé que celle qui sacquiert par les livres: on dirait que lon fait revivre ce quon découvre, et que le passé reparaît sous la poussière qui lensevelit41.

A história como parte central da cultura do oitocentos aparece agora, pelas palavras da personagem título do romance, não apenas como um conhecimento que pode evocar o prazer estético, da mesma ordem que o da poesia, mas com seu conhecimento pode advir um conhecimento savante, que satisfaça, ao mesmo tempo, à imaginação e ao pensamento, entendido como uma forma de conhecimento racional acerca das coisas do passado. Um conhecimento combinando, assim, o prazer estético e a démarche racional exigida pelos cânones da cultura iluminista. Agora o passado deve ser racionalmente apropriado e, para isso, o trabalho de pesquisa se faz necessário e indispensável, o que, ainda segundo a personagem do romance, tem estimulado o trabalho de um novo "homem cultivado": justamente aquele que se ocupa de estabelecer as relações entre os restos visíveis na cidade de Roma e o seu passado. Estes traços e marcas do passado não se prestam apenas ao gosto do amante erudito do passado, cioso da sua conservação, mas sobretudo ao olhar que, ao pousar sobre essas ruínas, busca estabelecer relações que transformem a experiência do passado em explicação para o presente das sociedades humanas. E, segundo o seu interlocutor, o nobre inglês Nelvil, esta seria uma profissão a que se dedicaria com prazer – ao invés de à carreira das armas a que sua condição de nobre o obrigava –, visto que a vê como uma forma de erudição superior à que se adquire pelos livros no sossego de sua biblioteca. Mas o que seria exatamente novo nesta forma de erudição? O conhecimento que se adquire pela pesquisa das coisas do passado, significando desta forma que pode haver o que se conhecer deste passado, superando uma perspectiva segundo a qual a erudição não alteraria substantivamente o conhecimento existente acerca do passado das sociedades humanas. Vitória definitiva dos modernos, que, ao derrotarem a erudição, transformam definitivamente o passado em história.

Segundo as palavras da protagonista do romance:

Les érudits qui soccupent seulement à recueillir une collection de noms quils appellent lhistoire sont sûrement dépourvus de toute imagination. Mais pénétrer dans le passé, interroger le coeur humain à travers les siècles, saisir un fait par un mot, et le caractère et les moeurs dune nation par un fait, enfin remonter jusques aux temps les plus reculés, pour tâcher de se figurer comment la terre, dans sa première jeunesse, apparaissait aux regards des hommes, et de quelle manière ils supportaient alors ce don de la vie que la civilisation a tant compliqué maintenant; cest un effort continuel de limagination, qui devine et découvre les plus beaux secrets que la réflexion et létude puissent nous révéler42.

Prosseguindo seu percurso pela cidade de Roma e pela visita de seus monumentos históricos, um outro sentido central da cultura histórica do oitocentos delineia-se com clareza para os homens do presente: ao defrontarem-se com a história dos homens do passado, poderiam aprender pelo exemplo, a história readquirindo assim o seu papel magistral. O mesmo papel, aliás, conferido pelos próprios romanos às experiências passadas dignas de lembrança, como forma de emulação para as novas gerações.

Vous le savez, mylord, loin que chez les anciens laspect des tombeaux décourageât les vivants, on croyait inspirer une émulation nouvelle en plaçant ces tombeuax sur les routes publiques, afin que retraçant aux jeunes gens le souvenir des hommes illustres, ils invitassent silencieusement à les imiter43.

Finalmente, a contemplação de Roma e de seu passado poderia estar a serviço de outro importante componente da cultura histórica das Luzes européia: desde os etruscos (agora já integrados à história de Roma) até o presente, o estudioso do passado poderia acompanhar a evolução do "espírito humano" através de suas realizações materializadas naquela cidade. Portanto, contemplar o passado adquire um sentido preciso. O de poder constatar e mesmo provar esta evolução que, para além de marcar as particularidades da sociedade romana, seria o sentido mesmo de os homens estarem no mundo, cabendo assim à história o papel de fundamentar esse sentido. Nas palavras da personagem principal, Roma como cidade não é apenas uma aglomeração de habitações, mas é sobretudo "lhistoire du monde, figurée par divers emblèmes, et représentée sous diverses formes"44. Visitar Roma era, assim, para os cânones desta cultura iluminista, muito mais do que visitar uma cidade, era a própria possibilidade de acesso à história dos homens materializada de forma privilegiada no espaço da cidade. A visão do passado, mais do que a própria leitura dos textos, confere um novo poder de convencimento e persuasão para esta cultura iluminista, contribuindo para que o estudo desse passado adquira um novo valor e significado:

Cest en vain que lon se fie à la lecture de lhistoire pour comprendre lesprit des peuples; ce que lon voit excite en nous bien plus didées que ce quon lit, et les objets extérieurs causent une émotion forte, qui donne à létude du passé lintérêt et la vie quon trouve dans lobservation des hommes et des faits contemporains45.

Na verdade, a partir da cultura das Luzes, o interesse renovado pela cidade de Roma inscreve-se numa tradição da cultura humanista que, desde o Renascimento, sublinhava o papel central da cidade para a história dos homens. Isto por duas razões, segundo a análise de Alain Schnapp: em primeiro lugar, pelo papel privilegiado da cidade quanto à existência de manuscritos gregos e latinos e, em seguida, pela possibilidade evidente de descobrir na paisagem mesma da cidade a presença material da Antiguidade46.

Aproximar os homens do passado do presente pela via da história e da sua visualização, eis a definição deste projeto historiográfico próprio da cultura das Luzes e cujos desdobramentos e heranças para nossa concepção de História são evidentes.

A vitória desta cultura histórica – que busca conferir ao interesse erudito pelas coisas passadas um sentido presente no esforço de reflexão sobre o passado – viabilizou a criação de diferentes formas institucionais capazes de pôr em marcha o projeto de uma história que, ao mesmo tempo, apropriava-se da tradição e dos métodos da pesquisa erudita, buscando agora submetê-los às exigências de uma cultura histórica modificada. Muitas das vezes este processo complexo de reelaboração intelectual de diversas heranças ficou submetido ao sentido vitorioso de uma história acadêmica, que, ao refletir sobre sua própria trajetória, tendeu a ver o passado como a lenta e progressiva caminhada da história em direção à sua cientifização, evidentemente percebida como a forma mais organizada, racional – e portanto verdadeira – de acesso e conhecimento do passado. Neste sentido, a herança antiquária foi muitas vezes desconsiderada, quando não, percebida como uma forma primária do conhecimento histórico, definitivamente superada pela sua cientifização na primeira metade do século XIX. E este processo de cientifização submete a visão às fontes textuais, mesmo naqueles projetos de visualização do passado como o pretendido pela pintura histórica, que assentava a produção de imagens à pesquisa e ao conhecimento das fontes escritas. As imagens são lidas como fontes, tradição que acabou por encontrar uma larga aceitação entre os historiadores, sobretudo a partir do século XX.



Voltando ao começo para concluir

Ver o passado, em nossa contemporaneidade e segundo a relação particular que as sociedades atuais vêm estabelecendo com o tempo, implica em repensar igualmente o lugar e as condições de produção das diferentes narrativas acerca do passado. A imagem virtual, rompendo definitivamente com a idéia de um referente, de um suporte, implica em repensar os diferentes sentidos que puderam ser produzidos para a imagem e sua relação com o texto e com a possibilidade de visualização de um invisível. No caso das visualizações do passado, um invisível, que, no entanto, já teve a visibilidade da existência efetiva. Mas, como lidar com a nova experiência sensorial permitida pelos meios eletrônicos e virtuais, quando entram nos espaços consagrados à história e ao passado, permitindo a simulação de uma interação com o passado, um transporte para uma outra época? Correríamos nós o risco de perder a profundidade histórica, tornando essa ida ao passado um mero jogo de consolo para um presente experimentado como pouco atraente? A história e o ocupar-se com ela estariam, então, a serviço não de uma inspiração para a ação, para a recriação do mundo humano, mas tão-somente para o reencontrar-se no passado, reafirmando uma identidade do presente, que parece não querer passar? Como nos ensina Italo Calvino em suas reflexões para o milênio em que já entramos, as respostas para essas perguntas só as teremos fazendo e pensando sobre a história a partir da certeza que nos é possível: a de que pensar sobre o passado, imaginá-lo, e por isso poder conhecê-lo, trazendo à visão o invisível, comportou inúmeras possibilidades com diferentes formas. Vê-lo e escrevê-lo, para nós e para os que virão, talvez nos ajude a ver e escrever o nosso presente.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-47142007000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material

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