sábado, 17 de outubro de 2009

Relíquias sagradas e a construção do território cristão na Idade Moderna

Relíquias sagradas e a construção do território cristão na Idade Moderna

Renato Cymbalista


Arquiteto e Urbanista, Mestre e Doutor pela FAUUSP, pesquisador do Instituto Pólis (São Paulo), professor de História da Cidade da Faculdade de Arquitetura Escola da Cidade (São Paulo). Este texto integra a pesquisa de doutorado "Sangue, ossos e terras: os mortos e a ocupação do território luso-brasileiro, séculos XVI e XVII", desenvolvido na FAU/USP entre 2002 e 2006 com apoio de bolsas de pesquisa da Cátedra Jaime Cortesão-Instituto Camões e da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da USP. E-mail: <renato@polis.org.br>


Do ponto de vista técnico, a ocupação física de um território préexistente tratava-se de processo relativamente simples para os europeus do início da Idade Moderna, há séculos acostumados a construir cidades e reinos. Por outro lado, sob o aspecto da religiosidade vigente, essa ocupação desdobrava-se em uma série de desafios bastante mais complexos: o reconhecimento desse território na memória e na história cristã, sua inserção em uma perspectiva de futuro alinhada com a escatologia cristã, a criação de mecanismos de tradução dos significados religiosos da ocupação do território junto aos habitantes nativos, a promoção de uma coesão social em torno desses significados, a oferta das relações territoriais relacionadas aos serviços religiosos e à salvação das almas para a população vinda da metrópole, além, é claro, do traslado de atores sociais capazes de promover essa sofisticada "conversão territorial". Não devemos nos esquecer de que, pelo menos até meados do século XVII, os parâmetros da espiritualidade exerceram influência decisiva na construção do mundo e da realidade dos cristãos.

Este texto investiga um elemento estratégico para promover essa cristianização do território da América Portuguesa: as relíquias sagradas, restos físicos dos santos, principalmente seus ossos, mas também outros artefatos com os quais os santos tiveram contato. Os atributos simultâneos de sacralidade e mobilidade da maior parte das relíquias, sua condição de repositório portátil da história e da memória católicas, deram a esses artefatos uma posição altamente privilegiada como agentes da duplicação do território cristão na América.

Mas as relíquias sagradas na época colonial informam ainda mais do que isso: evidenciam aspectos do conflito religioso entre católicos e protestantes, que também aconteceu na América, e, sobretudo, constituíram objetos em torno dos quais missionários e índios estabeleceram um campo de traduções e interlocuções, levando adiante, nas vertentes católica e ameríndia, o difícil trabalho de reconhecimento e apropriação do outro.



A veneração às relíquias

A religião católica, fundada por uma narrativa de martírio e morte, desenvolveu uma relação bastante peculiar com os corpos dos seus santos. Os túmulos dos mártires foram os primeiros locais de culto dos cristãos, locais de contato entre o universo cotidiano e o sagrado, e o mundo dos vivos e o dos mortos, estruturando a própria noção de espaço público da cristandade (GEARY, 1978; BROWN, 1981; ANGENENDT, 1997). No entanto, a partir do final da Antiguidade e com o crescimento territorial do universo cristão, colocava-se um grande desafio: como articular os túmulos dos santos com a questão da consagração do território, à medida que, já nos primeiros séculos, o Cristianismo expandia-se rumo a locais onde não houve perseguições e martírios? Ampliava-se o número de locaisde culto.Eram fundadas pequenas comunidades por toda a Europa, norte da África e Ásia Menor, locais desejosos de mártires para integrar-se efetivamente ao universo cristão. De alguma forma era necessário o atributo da mobilidade dos corpos sagrados (BROWN, 1999, p. 11-12).

Para dar conta desse desafio, a religião cristã produziu uma engenhosa resposta, que permitia a expansão territorial do culto cristão e, ao mesmo tempo, não abria mão do culto aos restos de seus mártires. Não jazia unicamente no território o caráter divino, que aproximava céu e terra no local de sepultamento dos santos e mártires, mas também no próprio corpo do santo, já que era ele o artefato que consagrava o território como porta divina. E uma das formas de consagrar novos territórios para a fé cristã podia justamente acontecer por meio da extração dos restos dos santos - ou, alternativamente, dos instrumentos de seu martírio - de seus locais de sepultamento e seu transporte a novos locais de culto.

A possibilidade de transporte do corpo do mártir dava respostas também de caráter intra-urbano. A maior parte das sepulturas dos mártires do início da era cristã situava-se no exterior das muralhas das cidades, ou na periferia destas. A partir do fim da Antiguidade, seus corpos começaram a ser instalados no interior das cidades, reforçando assim, onde necessário, o poder dos bispos instalados nas catedrais, que em geral se situavam no centro geográfico das cidades (MARKUS, 1990, p. 139-155).

Além de dar uma resposta aos desafios da expansão do culto cristão e dos arranjos da geografia intra-urbana do poder, a possibilidade de manejo dos restos de santos também permitia soluções a situações críticas em que os cristãos eram expulsos deseus territórios por infiéis, o que durante séculos ocorreu largamente no Norte da África, Ásia Menor, Leste da Europa e Península Ibérica: os cristãos podiam levar seus santos consigo, ou escondê-los até que alguém o fizesse. Desta forma, a cristandade pôde desenvolver novos e importantes centros de fé e poder, distantes dos locais onde os martírios dos santos haviam acontecido.

Como a integralidade do santo estava presente em suas partes, mesmo nas menores, seus corpos podiam ser fragmentados e distribuídos por onde sua presença era demandada. A capacidade de multiplicar-se e fazer-se presente em todos os lugares aonde suas relíquias fossem levadas era, aliás, uma das grandes provas dos poderes dos santos1. Estavam inventadas as relíquias sagradas: corpos dos mártires e santos - normalmente seus ossos, mas também cabelos, unhas, sangue, lágrimas -, ou os objetos por meio dos quais foram martirizados: cruzes, pregos, lanças, setas, correntes. Até alguns poucos séculos atrás, não havia dúvidas de que o santo em si estava presente na relíquia, por menor que fosse (GEARY, 1994, p. 194).

O culto às relíquias atravessou toda a Idade Média como elemento estruturador do território das cidades cristãs. Durante todo esse período, foi impensável a existência de uma cidade, igreja ou até mesmo altar sem uma relíquia. As relíquias mais importantes eram os restos físicos dos santos, seus ossos, cabelos, lágrimas ou sangue, e, destas, as mais antigas eram, em geral, mais preciosas. Eram também considerados relíquias os instrumentos de martírio dos santos, a começar pelo próprio Santo Lenho - fragmentos da cruz de Cristo - além de espinhos, correntes, flechas, setas. Serviam também as chamadas relíquias de contato, artefatos que tiveram contato com os santos: pedaços de roupas, terra de sepulturas, lenços que estiveram em contato com as relíquias orgânicas.

O poder das relíquias não se resumia a uma expectativa de futuro, pois durante toda a Idade Média estiveram cercadas de acontecimentos maravilhosos: tinham poderes de proteção e cura, que justificavam romarias e peregrinações, emitiam perfumes, luzes e óleos milagrosos, ressuscitavam mortos, protegiam cidades inteiras. Em meados do século XV, após uma frustrada tentativa de acionar uma cruzada contra os turcos que, em 1453, haviam tomado Constantinopla e avançavam sobre os territórios cristãos, o papa Pio II distribuiu pedaços do crânio de santo André à multidão de Roma, para proteger o mundo cristão de seus inimigos (HIBBERT, 1985, p. 124). As relíquias eram também símbolo de riqueza, de prosperidade e de nobreza, e, no Ocidente, acompanharam, através dos séculos, os detentores das maiores fortunas e de prestígio.

Alguns dos corpos de santos permaneciam por séculos em estado incorrupto. Era o caso de várias relíquias: de santa Ágata, mantidas em vários relicários em Catânia; de são Romualdo, exumado em 1460 em Ancona; de santa Rosa de Viterbo, cujo corpo havia sobrevivido incólume a um incêndio que destruiu a igreja onde estava sepultada em 1357, na cidade de Pódio; do corpo de santa Esperandia, exposto noaltar-mórda igreja do convento beneditino de Cingoli (CRUZ, 1977, p. 47-86).

Foram muitos os casos de relíquias que percorreram grandes distâncias, dos locais onde os santos haviam morrido até suas novas comunidades adotivas, o que era tratado como expressão da vontade do próprio santo. Já no século I, o corpo de são Tiago aportou milagrosamente nas costas da Galícia em um barco sem leme, e, depois disso, orientou dois touros tidos como indomáveis até levá-los em um carro ao local onde foi construída uma igreja em sua homenagem, em Compostela (VARAZZE, 2003 [1293], p. 561-564). O corpo de são Marcos foi levado, por mercadores, de Alexandria a Veneza em 468, e, como prova de que estava indo de bom grado para sua nova moradia, danificou o navio onde viajava um incrédulo que duvidara ser aquele o corpo do santo. Evidentemente, se o santo não desejasse ser transportado, jamais teria permitido aos homens movê-lo de seu sepulcro original2. O corpo de santo Agostinho teve de deixar a Sardenha, que estava "despovoada pelos sarracenos", rumo a Pavia. Encontrando-se em Gênova, santo Agostinho recusou-se a partir até que obteve do rei a promessa de que, caso o santo se deixasse levar, construiria naquele lugar uma igreja em seu nome. O mesmo aconteceria no dia seguinte na cidade vizinha de Casal. Como o rei viu que esse procedimento agradava ao santo, ordenou que em todos os locais onde o santo pernoitasse se construísse uma igreja da mesma invocação (VARAZZE, 2003 [1293], p. 719-720).

As curas, as emanações maravilhosas, os traslados milagrosos, a incorruptibilidade eram as provas de que os santos estavam privando da companhia de Cristo, de que suas relíquias eram artefatos divinos que rompiam as barreiras do tempo e do espaço. Justamente por serem investidas de enormes poderes, as relíquias sagradas estiveram no centro das disputas religiosas na Europa no início da Idade Moderna.



O século XVI: repúdio e renovação do culto às relíquias na Europa

No início século XVI, as relíquias continuavam protegendo edifícios e cidades, promovendo curas milagrosas, sendo levadas em solenes procissões pelas ruas, sacralizando altares de igrejas por toda a Europa, em uma notável continuidade em relação ao papel que haviam desempenhado havia mais de mil anos no continente. Mas, em meados daquele século, essa situação tinha se transformado. O culto às relíquias foi fortemente repudiado pelos reformadores protestantes, que pregavam uma igreja invisível, rejeitando os objetos de mediação da relação entre os fiéis e Deus, indignados com a veneração de restos humanos. Trataram o culto como idolatria, mais ligada à magia e à superstição do que à fé cristã, e procederam destruições em grande escala de relíquias e imagens.

Lutero escandalizou-se com a gigantesca coleção, em Wittemberg, de mais de 17 mil relíquias do castelo de Frederico, o Sábio, príncipe posteriormente convertido ao luteranismo (DELUMEAU, 1989, p. 89). Em 1527, um exército antipapista, comandado por Carlos V, saqueou Roma, profanou túmulos e despojou cadáveres de suas jóias e vestimentas. Enquanto 500 homens eram massacrados sobre o túmulo de são Pedro, relíquias eram queimadas ou destruídas. Os invasores ridicularizaram as relíquias: a cabeça de santo André foi atirada no chão, a cabeça de são João chutada nas ruas como bola de futebol, um alemão desfilou pelas ruas portando a lança sagrada que flechou o torso de Cristo, o lenço sagrado de santa Verônica foi posto à venda em uma estalagem (HIBBERT, 1985, p. 158)3. Em 1562, os huguenotes franceses destruíram, em Tours, o corpo de são Martinho e, em Poitiers, o de santo Hilário, entre outros santos, "espalhando pelos campos as relíquias de uns e queimando as de outros" (CASTRO, 2001, p. 49). O mesmo destino teve o corpo de são Francisco de Paula (CRUZ, 1983, p. 249). O reinado de Henrique VIII, na Inglaterra (1509-1547), de ruptura com Roma, significou a destruição de inúmeros corpos de santos (CRUZ, 1977).

Os católicos também praticavam a destruição de relíquias de outras religiões. No século XVI, em um ato público, o arcebispo de Goa reduziu a pó um dente de Buda, pilando-o em um almofariz (BOXER, 2002 [ 1969], p. 89). Mas, evidentemente, a destruição sistemática de relíquias dos santos católicos era sinal de uma crise, ainda mais praticada por outros cristãos. A Igreja Católica reagiu às dissidências protestantes potencializando suas próprias reformas, com o intuito de retomar o controle sobre as partes da cristandadee adaptar a estrutura da Igreja aos desafios colocados pela nova situação política e espiritual por que passava o mundo cristão. A resposta mais sistematizada veio pelo Concílio de Trento, que, em relação às relíquias, emitiu uma sinalização dupla: por um lado, reforçou o poder milagroso dos corpos dos santos, reafirmando a sua presença física e integral mesmo nos menores fragmentos, e condenando aqueles que desafiavam esse poder. Agregava-se, aos significados já anteriormente atribuídos às relíquias, uma nova intensidade de militância. As regiões que tinham permanecido na fé católica continuavam venerando as relíquias em continuidade às antigas tradições, mas também como parte do efeito de demonstração da fé católica como a verdadeira portadora da tradição de Cristo e seus apóstolos, em contraponto às heresias protestantes.

Por outro lado, o culto às relíquias não ficou imune à moralização dos costumes e à centralização do poder, promovidos pelo Concílio de Trento em tantos aspectos da fé católica. Dali em diante, os bispos e outras autoridades tornaram-se os responsáveis pela certificação das relíquias e por promover o decoro no seu culto, representando uma centralização de poderes e aumento de suas responsabilidades pedagógicas. O movimento centralizador foi além disso: a própria autonomia dos bispos era circunscrita, pois o Concílio estabelece também que "nada de novo, e até o presente nunca usado se decrete, sem se consultar o Santíssimo Romano Pontífice"4.

Com a reiteração do poder das relíquias pelo Concílio de Trento, os católicos mostraram-se mais fervorosos do que nunca no seu culto. Inúmeros corpos encontrados em 1578, em uma catacumba na Via Salaria, em Roma, foram convenientemente tratados pelo papa como santos, o que exponenciou a disponibilidade de relíquias a serem distribuídas a partir de Roma segundo seus critérios (ANGENENDT, 1997, p. 250). Foi a primeira de mais de trinta catacumbas descobertas posteriormente na cidade (HSIA, 1998, p. 130). Na verdade, a descoberta dessas "minas de relíquias", veio bem a calhar para um Vaticano que, com a reforma de Trento, reiterava o poder das relíquias, mas, ao mesmo tempo, centralizava sua gestão, o que nem sempre foi bem recebido pelas partes do Império cristão5.

Em 1599, foi aberto o caixão de madeira onde o papa Pascoal I havia encerrado os restos de santa Cecília, para que fossem transportados do cemitério de Calixtus à basílica erigida em sua memória em Trastevere. Para assombro dos presentes, o corpo estava intacto, como se a santa estivesse dormindo desde o dia de sua morte, repousando sobre o seu lado direito, com os joelhos levemente dobrados. O papa foi chamado para contemplar o milagre do corpo incorrupto, e ordenou que a santa permanecesse intocada. O escultor Stefano Maderna foi comissionado para perpetuara imagem em uma conhecida escultura (MALE, 1949, p. 177).

Era nesse contexto de reiteração militante do poder das relíquias e de centralização da sua gestão que a Europa católica se encontrava na segunda metade do século XVI, quando intensificaram-se as iniciativas de ocupação do território da América pelos portugueses. Veremos, a seguir, que naquele período, as relíquias foram elemento estratégico para o redimensionamento do corpo da cristandade, abrangendo a nova escala territorial e, assim, viabilizando a inserção das regiões recém-descobertas na narrativa cristã. Isso será feito a partir de três chaves de leitura: as descobertas de relíquias, elementos de conexão dos tempos modernos com o início da era cristã; os traslados de relíquias, procedimentos de transplante da memória sagrada; e a produção de novas relíquias, que revela a capacidade de criação permanente da sacralidade É importante percebermos que esses três procedimentos não eram exclusivos da América; estavam acontecendo naquele período também na Europa, reforçando a idéia de que o esforço de ocupação territorial do início da Idade Moderna foi um movimento marcado pela busca do reconhecimento daquilo que já era conhecido pelos cristãos.



Descobertas de relíquias na reconquista da Península Ibérica

Ainda que Hespanha fosse destruída pela entrada dos Godos,
e depois assolada pela invasão dos mouros, sempre as relíquias,
que ficaram de alguns cristãos, conservaram a imemorial tradição
de vir o corpo do nosso santo a este reino, e nele ser sepultado
no seu famoso templo.

Estevão de Lis, 17466.

O trecho acima faz parte de um tipo de obra bastante recorrente na Península Ibérica nos séculos XVI e XVII: os relatos das vidas de santos patronos de uma cidade específica, em iniciativas locais de exaltação do papel de seu próprio território no corpo da cristandade. Evidentemente, os santos eram seres muito especiais, e suas biografias não se encerravam com a morte; pelo contrário, a passagem iniciava uma nova etapa em sua trajetória: a documentação dos milagres operados por suas relíquias, eventuais traslados de seus corpos, sempre acompanhados de sinais milagrosos, provas, enfim, de sua condição de santos. O contexto específico da Península Ibérica trouxe muitas vezes um período de latência das relíquias de santos durante a ocupação árabe, quando estiveram escondidas ou desaparecidas. A descoberta milagrosa de suas relíquias acontecia durante ou após a reconquista cristã do território, em uma clara construção simbólica que reconectava as terras recém-reconquistadas ao corpo total da cristandade.

Em Portugal, eram permanentemente reatualizadas as narrativas de descoberta de corpos sagrados após a reconquista do reino aos mouros no século XII. Episódio espetacular foi o de são Vicente, encontrado no chamado "Promontório Sacro" (depois Cabo de São Vicente), o ponto mais ocidental do reino, pelo primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, em 1173, e levado a Lisboa. A memória coletiva construída em torno dessa descoberta evocava o próprio nascimento do reino português, centralizado em sua capital: o corpo de são Vicente já havia sido procurado por D. Afonso Henriques assim que se autoproclamara rei de Portugal mais de 30 anos antes, sem sucesso. A crença generalizada atribuiu esse fracasso ao fato de a cidade de Lisboa, predestinada a ser a morada definitiva do santo, encontrar-se ainda corrompida pelo domínio dos árabes. São Vicente assumiu, então, a dupla função de patrono de Portugal e da cidade de Lisboa, que progressivamente assumiria suas funções de capitalidade no reino7.

Os livros reatualizavam também a descoberta de corpos de outros santos, como santa Iria, padroeira de Santarém, cujo corpo havia ficado escondido sob as águas do Tejo durante a ocupação moura, para, depois da libertação, reaparecer milagrosamente, incorrupto e ainda vertendo sangue, em uma baixa das águas do rio. O clero de Santarém tentou sem sucesso remover o corpo para a terra firme, e o rio voltou a cobrir para sempre o corpo da santa, permitindo ser visto apenas uma vez por outra santa, a rainha santa Isabel, no século XIV (BERREIRA, 1618).

Além das narrativas reiteradoras da memória coletiva, no final do século XVI e início do XVII aconteceram vários episódios de descoberta de relíquias na Península Ibérica, principalmente no sul da Espanha, território mais recentemente reconquistado dos árabes. A presença de relíquias sagradas provocava peregrinações e esmolas, enriquecia as igrejas e as cidades, construía centralidades e focos de poder. Por isso mesmo, essas descobertas revelam vários aspectos das tensões e negociações entre o poder central do Vaticano e a busca pela afirmação dos poderes locais a partir dos bispos e arcebispos, a partir da nova hierarquia estabelecida pelo Concílio de Trento.

Em 1575, durante obras na Igreja de São Pedro em Córdoba, foram encontradas muitas relíquias que os cristãos haviam escondido dos árabes havia cinco séculos, acompanhadas de uma lápide com os nomes dos santos ali presentes. O bispo de Córdoba declarou autênticas as relíquias em 1577, mas advertiu "que não se reverenciem, nem adorem por relíquias de santos, até que sua Santidade dê licença para isso". Os autos do processo de qualificação das relíquias foram enviados a Roma, e o papa Gregório XIII legitimou as relíquias por um breve (uma das modalidades de comunicado oficial do papa) publicado em 1581, que concedia perdão aos pecados até mesmo daqueles que visitassem as relíquias nos aniversários da descoberta. O breve colocou ainda a conveniência de se realizar a qualificação das relíquias no nível regional, convocando-se um concílio provincial, instrumento também previsto no Concílio de Trento. Ao remetera definitiva qualificação das relíquias para o nível provincial, na verdade o papa estava se eximindo de tomar partido em uma disputa em torno das relíquias de um dos santos. No ano seguinte, o debate foi levado a uma reunião do concílio da província de Toledo, onde se inseria o bispado de Córdoba, na presença das maiores autoridades eclesiásticas da região (ROA, 1615). Naquele momento, eclodiu a disputa: os clérigos de um convento que sustentava possuir o corpo de são Ascisclo, um dos mártires cujos nomes estava escrito na lápide encontrada na Igreja, não queriam abrir mão de seu tesouro8.

Em outros episódios de descoberta de relíquias, Roma interferiu bem mais nos assuntos locais. O papa Sisto V praticamente induziu o achado das relíquias de são Torpes, na cidade portuguesa de Sines, no final do século XVI, emitindo uma bula ao arcebispo de Évora para que "se mandassem fazer as possíveis diligências por descobrir os ossos do glorioso Mártir". O "cheque em branco" dado pelo papa, para que se encontrassem os ossos de são Torpes, foi uma prova do poder do arcebispado local, e talvez nunca venhamos a descobrir as razões políticas dessa operação9.

Nem sempre o papa estimulou o achado de relíquias, o que mostra que não via necessariamente com bons olhos o surgimento de novas centralidades de devoção. Em 1628, foram encontradas relíquias sagradas no povoado de Arjona, no bispado deJaen; e, em seguida, o bispo enviou um memorial dos acontecidos ao papa, solicitando a autorização do culto aos mártires encontrados. Roma respondeu com um longo silêncio até que, em 1639, o bispo encomendou a um teólogo um memorial para encaminhara questão no nível local. Na ausência de uma resposta vinda de cima, este memorial busca - na história, nas hagiografias e martirológios tradicionais - a fundamentação para o culto às relíquias encontradas em Arjona, em um interessante artifício para contornar o silêncio papal10.

Um dos mais conflitivos episódios de descoberta de relíquias teve início em Granada. Em 1588, em uma torre que estava sendo demolida para a construção da catedral da cidade, foi encontrada uma caixa de chumbo recoberta de betume, que continha, em seu interior, um osso de santo Estevão, um dos primeiros mártires, morto em Jerusalém, cujas relíquias logo teriam sido transferidas à Espanha (D'AVILA, 1611, p. 286), além de outras relíquias sagradas. Alguns anos depois, foi encontrada grande quantidade de relíquias em grutas no chamado Sacro Monte, nas imediações da cidade, entre as quais os restos de são Cecílio, primeiro bispo da cidade, e são Hiscio, primeiro bispo de Tarifa. Tratava-se de um grande tesouro, pois as relíquias quanto mais antigas, mais valiosas eram, e estas datavam do século I. As relíquias dos mártires de Granada foram autenticadas, mas alguns livros feitos de folhas de chumbo, encontrados no mesmo Sacro Monte, também considerados como relíquias pelos locais, não tiveram o mesmo destino: foram solicitados por Roma para averiguações, declarados heréticos e, a despeito de constantes pedidos, não foram mais devolvidos a Granada. A cidade produziu extensa literatura procurando fundamentar a legitimidade das relíquias até o século XVIII, em um claro embate com o poder centralizador de Roma. O centro editor dessa literatura foi, em grande medida, uma abadia beneditina edificada no próprio Sacro Monte, onde as relíquias haviam sido encontradas (Figura 1)11.


A descoberta de relíquias em um determinado local significava um grande aumento no número de peregrinos, esmolas e doações, significando o crescimento da importância e da autonomia de um bispo ou arcebispo. Percebemos, assim, porque Roma exercia tão seletivamente o poder de legitimação das relíquias que lhe fora dado pelo Concílio de Trento, revelando aspectos das tensões entre o Vaticano e os bispos. Também entendemos as razões dos lamentos e expectativas das cidades que não eram agraciadas com a descoberta de relíquias12.

Embora os embates institucionais sejam evidentes nesses episódios, é um erro tratarmos a descoberta de relíquias do início da Idade Moderna como simples tema de política que envolvia bispos, arcebispos, papas e reis. Tais descobertas apoiavam-se em uma profunda crença no poder das relíquias, compartilhada por todos os grupos da sociedade. A descoberta das relíquias acontecia via de regra em locais já tidos anteriormente como sagrados13. Os sinais divinos, principalmente luzes, intensificavam-se no período imediatamente anterior e posterior às descobertas14.

As relíquias continuavam efetivando inúmeros milagres, como o de curar pessoas das mais diversas enfermidades (ROA, 1615, p. 177). Curavam e protegiam também as cidades: um braço de são Sebastião protegeu Lisboa da epidemia de peste de 156915. Algumas delas, levadas em procissão pela cidade de Córdoba, encerraram uma epidemia de peste que já durava dois anos no início do século XVII (ROA, 1615, p. 176v).

Portugueses e espanhóis não foram apenas os agentes da recomposição do corpo da cristandade européia após a expulsão dos mouros da Península. Ao mesmo tempo em que reencontravam relíquias de mártires em suas próprias terras, eles protagonizavam, também, um movimento muito mais desafiador (pelo menos do ponto de vista teológico): o da incorporação de imensos novos territórios, em todos os continentes, na espacialidade e na temporalidade cristã. Veremos, a seguir, que procurou colocar-se em curso o procedimento de reencontro com o passado e expansão do território cristão por meio da descoberta das relíquias de um apóstolo específico: são Tomé.



Os rastros de são Tomé e a expansão colonia

Em um mundo católico estruturado pela religiosidade, a reconquista da Península Ibérica era parte de um contexto maior de reconquista de toda a terra pelo Cristianismo. Acreditava-se que todas as partes da terra haviam sido tocadas pela palavra de Cristo por meio de seus apóstolos, e que o Diabo e seus servidores haviam desviado grande parte da humanidade desse caminho16.

Era praticamente consensual que o apóstolo que teria vindo aoBrasil foi são Tomé, cujos passos eram perseguidos pelos cristãos há séculos na Índia, onde havia registros da presença do santo e de uma comunidade cristã há muito separada do corpo principal da cristandade (HOLANDA, 2000 [1959], p. 133-160; THOMAZ, 1991). A busca pelo túmulo de são Tomé está por trás da própria armadaque descobriu o Brasil, capitaneada por Pedro Álvares Cabral, que rumava às Índias. Efetivamente, ao chegar à Índia após partir do Brasil, os portugueses tiveram notícias de uma comunidade cristã e da localização do túmulo de são Tomé em Meliapor, e receberam dos governantes locais relíquias do santo17. Na mesma carta em que comunica aos reis da Espanha Isabel e Fernando a descoberta do Brasil, o rei de Portugal D. Manuel discorre com muito mais detalhe sobre a localização do túmulo de são Tomé, mencionando que todos "vão à sua casa em Romaria, pelos grandes milagres que faz"18.

Como inicialmente se acreditava que o Brasil nada mais era que a costa oriental da Índia, a conclusão foi a de que são Tomé teria pregado também por estas terras. E a crença provou-se altamente duradoura, sobreviveu em muito à descoberta de que o Brasil, na verdade, fazia parte de um continente isolado e distante da Índia; e documentos de missionários dos séculos XVI a XVIII referem-se à presença de são Tomé no Brasil, e seu registro na memória dos índios (HOLANDA, 2000 [1959]).

O mais importante para nós é a memória que são Tomé teria deixado no território da América. Se o apóstolo presenteou a Índia com o seu corpo, efetivamente descoberto em Meliapor na primeira metade do século XVI, não descuidou de deixar relíquias no Brasil. Foram as chamadas "relíquias de contato", objetos consagrados pelo contato com o corpo do santo. Em 1549, Nóbrega já se refere a algumas pegadas que são Tomé deixara marcadas no solo brasileiro, dizendo que os índios "têm notícia de São Tomé e de um seu companheiro, e nesta Baía [de Todos os Santos] estão umas pegadas em uma rocha que têm por suas, e outras em São Vicente [...]"19.

Esse tipo de marca no território era já conhecido na Península Ibérica. O corpo de são Tiago, ao desembarcar na Galícia, vindo de Jerusalém no ano de 45, moldou a pedra em que foi depositado20. Santa Orósia, filha dos reis da Boêmia (martirizada pelos mouros a caminho do casamento com o rei de Aragão no século IX), deixou marcas de seus joelhos em oração, no monte de Yebra21. Na freguesia de Cobide, região de Geyra, nos arredores de Braga, próximo a uma capelinha dedicada a santa Eufémia, martirizada no tempo das perseguições romanas, encontrava-se uma pedra onde se viam sinais dos joelhos da santa22. Mas, na América, as marcas de são Tomé tinham aderência também com as crenças dos nativos:

Dizem eles que S. Tomé, a quem eles chamam Zomé, passou por aqui, e isto lhes ficou por dito de seus passados e que suas pisadas estão sinaladas junto de um rio; as quais eu fui ver por mais certeza da verdade e vi com os próprios olhos, quatro pisadas mui signaladas com seus dedos, as quais algumas vezes cobre o rio e passara por meio dele a outra parte sem se molhar, e dali foi para a Índia. Assim mesmo contam que, quando o queriam flechar os índios, as flechas se tornavam para eles, e os matos lhe faziam caminho por onde passasse. [...] Dizem também que lhes prometeu que havia de tornar outra vez a vê-los. Ele os veja do Céu e seja intercessor por eles a Deus (NÓBREGA, 1988, p. 101-102).

Os meninos órfãos que, pela Companhia de Jesus, em 1550, foram de Lisboa ao Brasil escrevem sobre uma "romaria das pegadas" que teriam feito em companhia dos índios, indicando que as provas materiais da presença do santo no Brasil adquiriam significados especiais, já eram marcos no território e engendravam edificações mais permanentes:

A pedra deu lugar a seus pés como se fosse barro [...] estando nós lá por um espaço dando louvores a nosso Senhor por aquele mistério, porque nosso Senhor não permite nada em vão, senão para aviso e exemplo [...], logo dali [os índios] foram a cortar dois paus largos e fizeram uma cruz grande [...] achamos os negros [índios] tão bons que teve que ficar ali um Irmão com dois meninos para ensiná-los e fazer uma casa nas pegadas onde se recolham meninos e aprendam23.

Em meados do século XVII, o jesuíta Simão de Vasconcellos teria visto cinco dessas pegadas, em lugares diversos do Brasil, da Paraíba a São Vicente (VASCONCELLOS, 1865 [ 1663]). No século XVIII, o franciscano frei Jaboatão refere-se a um pé esquerdo,

[...] tão admiravelmente impresso, que à maneira de sinete em líquida cera, entrando com violência pela pedra, fez avultar as fímbrias da pegada, arregoar a pedra e dividir os dedos, ficando todo o circuito do pé a modo que se levanta mais alto que a dita pedra sobre que está impressa a pegada (JABOATÃO, 1858 [1761 ], t. II, p. 29).

Nascida na colônia, a crença nas pegadas de são Tomé foi também legitimada na metrópole. Jorge Cardoso, que sistematizou o panorama histórico dos santos portugueses no século XVII, na extensa obra denominada Agiológio Lusitano, confirma:

A dilatada Província do Brasil [...] na qual há tradição [que] pregou o Apóstolo S. Tomé, por se venerarem em várias partes dela suas pegadas, e dizerem seus naturais, que ele plantou a mandioca, raiz de que se faz a farinha de pão, sustento universal desta Província (CARDOSO, 2002 [1657], t. 1, p. 35).

No início do século XVII, o grande chefe tupinambá Pacamã, do Maranhão, declara a Yves D'Evreux também conhecer esses sinais:

Soube também que Maria era Mãe de Tupã [Deus], sendo Virgem, porém Deus mesmo fez o corpo para si no ventre dela, e quando cresceu mandou maratás, apóstolos, para toda a parte, nossos pais viram um, cujos vestígios ainda existem (EVREUX, 2002 [1615], p. 333-340).

Na terceira década do século XVII, frei Vicente do Salvador menciona uma pegada de são Tomé na Bahia (relacionada à vinda do santo que teria ensinado a verdadeira fé aos índios), onde foi feita uma ermida em invocação ao santo:

Também é tradição antiga entre eles [os índios] que veio o bem-aventurado apóstolo São Tomé a esta Bahia, e lhes deu a planta da mandioca e das bananas de São Tomé [...] e eles, em paga deste benefício e de lhes ensinar que adorassem e servissem a Deus e não ao Demônio, que não tivessem mais de uma mulher nem comessem carne humana, o quiseram matar e comer, seguindo-o com efeito a uma praia de onde o santo se passou de uma passada à ilha de Maré, distância de meia légua, e daí não sabem por onde [foi]. Devia de ser indo para a Índia, que quem tais passadas dava bem podia correr todas essas terras, e quem as havia de correr também convinha que desse tais passadas. Mas, como esses gentios não usem de escrituras, não há disto mais outra prova ou indícios que achar-se uma pegada impressa em uma pedra em aquela praia, que diziam ficara do santo quando se passou à ilha, onde em memória fizeram os portugueses no alto uma ermida do título e invocação de São Tomé (SALVADOR, 1982 [1627], p. 112).

As rochas de são Tomé eram raspadas e carregadas como relíquias, sendo este costume apontado como um dos fatores de desaparecimento das marcas. Frei Gaspar da Madre de Deus relata que, no século XVIII, pedras com as pegadas na praia de Embaré, entre Santos e São Vicente foram quebradas e removidas para serem utilizadas na reconstrução da matriz de São Vicente (MADRE DE DEUS, 1975 [1797]), p. 234-235). Em Embaré, assim como na Bahia, existem notícias de fontes que brotavam nas imediações das pegadas, dentre outras maravilhas operadas por elas e pela presença de são Tomé em terras tão distintas como o Brasil, o Paraguai, o Camboja, o Peru e o Ceilão (MADRE DE DEUS, 1975 [1797], p. 234-235; HOLANDA, 2000 [1959], p. 133-159).

Não posso falar dos outros territórios, mas vários dos trechos acima deixam bastante evidente que, no Brasil, ocorreu a aderência da narrativa de são Tomé com um mito ameríndio total ou parcialmente pré-existente, o mito de Zumé ou Sumé. Essa interlocução foi possível devido à presença dessas "relíquias de contato", marcas físicas, sobre as quais foi possível estabelecer um campo de significados e traduções. Voltaremos a este ponto com exemplos similares.

Por ora, basta sinalizar que a transformação das marcas na pedra em relíquias de são Tomé desempenhou, para os portugueses, uma dupla função de inserção da América no Cristianismo: por um lado, no espaço, oferecendo marcas físicas suficientes para integrar as novas terras no corpo místico da Igreja, compartilhando marcas semelhantes que o Cristianismo apresentava por todo o mundo; por outro lado, no tempo, recompondo a trajetória de evangelização dos apóstolos, incorporando, assim, as novas terras na memória, na história e em um futuro cristão. Estabeleceu-se também um notável aspecto de continuidade entre a reconquista da Península Ibérica dos mouros e a reocupação cristã do mundo, permitindo aos cristãos uma moldura histórica bastante confortável para uma situação tão desafiadora como o projeto de ocupação das terras recém-descobertas.



Traslado de relíquias

A descoberta de relíquias evidenciava o pertencimento de determinado local à história cristã, mas não era a única forma de acesso a essa história. Desde o seu surgimento, o atributo mais evidente das relíquias sagradas era justamente o fato de serem móveis, transportáveis e, dessa forma, agentes privilegiados para adaptar o corpo da cristandade às permanentes mudanças de suas fronteiras. Para a comunidade receptora, a chegada de uma relíquia era uma grande honra: o santo havia escolhido uma nova "pátria adotiva", do contrário jamais consentiria em ser transportado24.

Muitas das relíquias mais importantes de Portugal haviam sido trasladadas de outros locais. O próprio corpo do patrono são Vicente, como já mencionado, chegara de Valência ao Promontório Sacro em um barco, vigiado por dois corvos, que depois se transformaram no brasão da cidade de Lisboa. O corpo de santa Iria foi trazido pelas águas do Tejo (BERREIRA, 1618), que também trouxe milagrosamente à cidade de Belver um cofre repleto de relíquias, que foi colocado na capela de são Brás25. No Porto, no século XV, desembarcam as relíquias de são Pantaleão, supostamente trazidas por imigrantes armênios cristãos fugidos após a queda de Constantinopla em 1453 (SOALHEIRO, 2003). Foi também pela via aquática que aportaram, em Lisboa, em 1517, as relíquias de santa Auta, uma das Onze Mil Virgens, martirizadas pelos hunos em Colônia no século III, tesouro depositado no Convento da Madre de Deus, em Lisboa. Diferente de outros relatos, a chegada destas relíquias não foi iniciativa divina, mas do imperador Maximiliano, que as ofereceu à sua irmã, a rainha D. Leonorde Portugal, revelando que, no século XVI, a política dos reis adquiriu maior proeminência em relação aos assuntos do sagrado (FALCÃO, 2000, p. 216-218).

Em 1505, em meio a sucessivas epidemias de peste, a pedido do rei D. Manuel, a cidade de Veneza doa a Lisboa uma relíquia de são Roque, santo conhecido por sua capacidade de enfrentar a peste. Recebida em Lisboa, a relíquia foi levada, em cortejo, para fora das muralhas da cidade, ao local onde havia um cemitério onde jaziam as vítimas da epidemia (MORNA, 1999, p. 9). Nesse preciso local, foi edificada a ermida de são Roque, conforme relata o padre Baltazar Telles, cronista da Companhia de Jesus (que dali a algumas décadas se apropriaria da ermida para ali construir sua monumental Igreja de São Roque): "Assim como os capitães mais valerosos e de maior confiança se põem nas instâncias mais perigosas e nos lugares mais arriscados, assim se entregou a este forçado capitão [são Roque, ou seus ossos] esta praça temerosa do campo dos mortos, para dali cobrarem saúde dos vivos" (TELLES, 1647).

O século XVI trouxe uma escala inédita no reposicionamento das relíquias sagradas no mundo. Uma das razões disso foi a já mencionada descoberta das catacumbas romanas, que aumentou imensamente a oferta de relíquias. Vieram das catacumbas relíquias como aquelas dos santos Urbano, Aniceto, Fabião, Bonifácio, Patrício, Marnilino, Júlio, Brás, Sérgio, Teodoro e outros, que o frei Damião Vaz obteve para o Convento de Aviz em 1601, mas que só chegaram 16 anos mais tarde (CARVALHO, 2001, p. 103).

Outro elemento de aumento da oferta e mobilidade foi o repúdio dos protestantes às relíquias, que significou que muitas delas tiveram de ser urgentemente removidas, sob os ciumentos olhos de seus guardiões26. Esse desprezo foi também uma gigantesca oportunidade para comerciantes e colecionadores, que aproveitaram a disposição de inúmeras igrejas de se desfazerem de seus mais preciosos tesouros, para reposicionarem sua localização. O roubo de relíquias, atividade tradicional, também encontrou grandes oportunidades no século XVI27. Desta forma, na segunda metade do século, grandes colecionadores de relíquias, como João de Borja e Sancho D'Ávila, enriqueceram suas coleções com os milhares de relíquias que estavam sendo desalojadas na Europa Central e do Norte. Foi também nessa época que o rei espanhol Filipe II consolidou uma incrível coleção de relíquias que instalou em seu palácio-sepulcro, o Escorial (SIGUENZA, 1881 [1605], p. 467-476).

A chegada das relíquias vindas das regiões onde estavam ameaçadas possuía funções militantes: as cidades católicas ofereciam asilo aos santos exilados de suas pátrias originais. Conforme o século XVI caminhava para o fim, os recebimentos de relíquias foram transformando-se em festas urbanas cada vez mais ostentatórias, como a entrada das relíquias doadas por João de Borja à Igreja de São Roque de Lisboa em 1588, o recebimento de relíquias dos santos Fulgêncio e Florentina em Murcia em 1594, cujo relicário exigiu cinco grandes carros, ou as festas referentes ao recebimento de relíquias provenientes de Roma e Madri rumo ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, em 1595 (CARVALHO, 2001, p. 95-155). Um dos mais monumentais traslados de relíquias foi o que aconteceu, da cidade de Colônia ao Escorial de Filipe II, em 1598, após um imenso percurso por vários reinos europeus (ESTAL, 1964).

A terceira razão do aumento nos fluxos de relíquias no início da Idade Moderna foram os descobrimentos. As novas terras a serem incorporadas à cristandade pressupunham uma ocupação pelos corpos dos santos. Como um dos instrumentos básicos de consagração do território, o traslado das relíquias sagradas desempenhou também papel importante nos processos de ocupação da América. Por meio das relíquias, era possível revelar o Velho Mundo no Novo, inseri-lo na temporalidade e territorialidade cristãs, preparando o solo para o momento da ressurreição, que, alguns pensavam, viria em pouco tempo. Conforme aponta Manuela Carneiro da Cunha (1996, p. 81), as relíquias eram "veículos de transporte de lugares". Nada mais adequado para cumprir o desafio da ocupação cristã do território, onde este não estava abençoado pelas pegadas de são Tomé.

Pelos registros, as últimas décadas do século XVI foram o período de início do traslado de relíquias de Portugal ao Brasil, vinculados às iniciativas de povoamento mais definitivo da colônia. A ocupação permanente significava não só a inauguração de uma institucionalidade portuguesa na América - câmaras municipais, padroado, justiça - mas também de sua contrapartida espiritual, que era obtida tanto a partir de uma assistência religiosa e de seus edifícios, quanto da transferência de provas materiais da verdade e do passado cristão, entre as quais as relíquias estiveram dentre as mais cobiçadas.

Algumas relíquias perdiam-se ainda na travessia. Quando o mar se mostrava revolto, era atirando-se relíquias que se garantia que Deus retomasse o controle, como a tempestade pela qual a nau Santiago passou em 1585: "Mas quis nosso senhor que amainou logo o vento pela virtude dos agnus deie relíquias que deitaram no mar"28. Uma cruz de ouro "em que trazia uma partícula do Santo Lenho da Vera Cruz e outras muitas relíquias" salvou a nau Santo Antônio de uma tormenta em 156529. Uma cruz que continha um pedaço do Santo Lenho também salvou as vítimas do naufrágio da nau Santiago em uma jangada30. O relato do martírio da nau São Paulo, em 1560, na Índia, menciona uma "Bandeira das Relíquias" protegendo os viajantes em todo o percurso31.

Outras vezes, as relíquias eram vítimas das guerras religiosas, que também se travavam no mar. Em 1570, o padre Inácio de Azevedo levava muitas relíquias para o Brasil quando foi aprisionado e morto pelos franceses no oceano, juntamente com seus 40 colegas de martírio. As relíquias, dentre elas um pedaço do Santo Lenho e uma cabeça das Onze Mil Virgens, foram retiradas de seus relicários, despedaçadas e jogadas pelo convés da nau. Salvaram-se as relíquias levadas pelos padres Diogo Mendes e Francisco Lopes, aprisionados na mesma ocasião, algum tempo depois que vieram ao Brasil (CARVALHO, 2001, p. 101). Os próprios ossos dos mártires foram tratados como relíquias, como as que foram reunidas em uma arca depositada na Igreja da Madre de Deus (Figura 2).


Quando os navios passavam por grandes provações no mar, mesmo eles eram tratados como relíquias. Em 1565, após um naufrágio, uma batalha contra luteranos franceses e uma incrível travessia, a nau Santo António, comandada por Jorge de Albuquerque Coelho, donatário da capitania de Pernambuco, conseguiu salvar-se e foi rebocada até Lisboa, onde o cardeal Infante D. Henrique mandou atracá-la em frente à Igreja de São Paulo, onde ficou exposta como uma grande relíquia32. Em 1514, D. Manuel mandou que os restos da nau em que Américo Vespúcio havia navegado pela última vez fossem pendurados como troféus nas abóbadas da Sé de Lisboa (CASTILHO, 1948, p. 81). O rei espanhol Filipe II demonstrou grande apreço pelos restos do naufrágio de um navio português, com cuja madeira mandou fazer o próprio caixão em que foi levado ao túmulo em 1598 (EIRE, 1995, p. 278).

Esses casos foram excepcionais pela intensidade, mas as naus portuguesas, artefatos que viabilizaram a expansão da cristandade, eram geralmente investidas de sacralidade. Antônio Vieira chama-as de "cidades nadantes" e "carroças da salvação", evidenciando simultaneamente atributos de urbano e de sagrado33.

Quando aportavam no Brasil, as relíquias eram recebidas com grandes honras. Em 1575, a cidade de Salvador ganhou duas cabeças das Onze Mil Virgens. Foram as primeiras relíquias importantes que chegaram à colônia, razão pela qual o bispo de Salvador declarou-as padroeiras do Brasil, e recomendou que se lhes fizessem festas anuais nas cidades onde houvesse alguma cabeça das virgens, em um movimento de ordenamento do calendário das cidades brasileiras de acordo com seus santos padroeiros34. Em 1584, Fernão Cardim refere-se à celebração dessa trasladação em Olinda35.

A adoção das Onze Mil Virgens como padroeiras das cidades brasileiras não parece casual. Na segunda metade do século XVI, os portugueses já sabiam da imensidão do território a ser controlado na América Portuguesa, e a construção de uma continuidade territorial era um desafio muito diferente do enfrentado pela ocupação na Índia, baseada em núcleos descontínuos com caráter de entrepostos comerciais. Do ponto de vista do regime religioso, a adoção de um patrono único seria elemento de reforço dessa unidade, e as Onze Mil Virgens eram as patronas perfeitas nesse caso: poderiam vir da Europa tantas cabeças quantas fossem necessárias, cumprindo ao mesmo tempo o papel da consagração do território por meio do corpo físico do santo, e da homogeneização de um calendário festivo nos locais onde houvessem cabeças das virgens. Além de constituir parte do corpo da cristandade e do Império, as cidades da América Portuguesa constituíam em si um corpo de identidade própria, cuja coesão era dada pelas cabeças das onze mil virgens.

Esse projeto de unidade territorial era encampado também pelos jesuítas. Anchieta foi nomeado Provincial dos jesuítas em 1577, e ficou no cargo até 1588, período em que visitou continuamente as casas da Companhia no Brasil a bordo de um pequeno navio, com o sugestivo nome de Santa Úrsula, a líder das Onze Mil Virgens, cujo martírio ocorreu também a bordo de um navio (CARDOSO, 1977, p. 18). É possível que Santa Úrsula (o navio) levasse a bordo as onze mil virgens (por meio de suas relíquias) em suas visitas, promovendo assim a comunhão entre as distantes casas da Companhia no Brasil. Em 1652, Vieira refere-se ao significado especial do dia das Onze Mil Virgens (21 de outubro), atribuindo especial importância ao fato de, nesse dia, o rei de Portuga ter escrito a ele uma carta, dando-lhe a atribuição da conversão do gentio do Maranhão (VIEIRA, 2003 [ 1652], p. 124). Mas ocorreram disputas, já no início do século XVII, em torno desse calendário que punha em comunhão as várias cidades da colônia no dia das onze mil virgens, talvez um aspecto da disputa entre jesuítas e o clero secular36.

Outras cabeças das Onze Mil Virgens aportaram no Brasil após as duas que chegaram a Salvador. Em 1577, uma dessas cabeças chegou a São Vicente, o que colocou toda a Capitania em festa (CARDOSO, 1977, p. 18). Fernão Cardim narra que, na visita que Cristóvão de Gouveia, padre Visitador da Companhia de Jesus, fez ao Brasil em 1582, ele trouxe muitas relíquias, fartamente distribuídas aos colégios da Companhia. A maior parte dos relatos em torno da chegada de relíquias empossa o navio como artefato que traz o elemento sagrado, reforçando seu papel como elemento privilegiado de transplante do passado cristão, do Velho para o Novo Mundo. Uma das mais preciosas relíquias que o padre visitador trouxe a Salvador foi mais uma cabeça das Onze Mil Virgens, recebida com uma peça de teatro em que um dos personagens era a Sé da cidade, regozijando-se com o tesouro37.

No dia 3 de maio de 1582, celebrou-se a inauguração do imponente novo relicário para o colégio dos jesuítas na Bahia, pois estas antes "estavam mal acomodadas". Esse novo relicário construiu-se em uma nova capela na igreja, e nesse dia fez-se a solene trasladação das relíquias à sua nova casa. A cerimônia era importante não apenas para a Companhia de Jesus. O evento foi altamente concorrido pela população da Bahia, que chegou a causar um grande tumulto e invadir o recinto isolado dos padres. Na ocasião, a população fez muitas doações à nova capela (CARDIM, 1980 [1625], p. 160).

No navio em que aportou no Rio de Janeiro, o visitador trouxe consigo "uma relíquia do glorioso Sebastião engastada em um braço de prata", que foi muito festejada pelos moradores e estudantes do Rio de Janeiro, "por ser esta cidade do seu nome, e ser ele o padroeiro e protetor". Em homenagem à entrada da relíquia na cidade, foi feita uma procissão, que começou no mare prosseguiu em terra, até a Igreja da Misericórdia, onde a relíquia foi depositada, e encenado um auto (CARDIM, 1980 [1625], p. 169).

Essa representação deve ser o Auto de São Sebastião, composto por José de Anchieta, no qual um anjo canta a associação entre o santo, o dia de sua festa, a proteção à cidade, a alegria de seus habitantes e a consagração do edifício da igreja:

Chamas-te Sebastião:
Jesus te santificou.
Muita flecha te crivou
Para tua exaltação
Os habitantes da aldeia
Festejam a tua glória,
Visitando a igreja cheia:
Dia que assim os recreia,
Sagrou-o tua vitória
Oh, vem sempre d'ora em diante
Visitar a nossa igreja:
Do mal teu amor proteja
A todo seu habitante
[...]
Faze com que os homens todos
Observem as leis divinas:
Mulheres, velhas, meninas
Afastem do mal os lodos
Destas plagas peregrinas38.

A chegada da relíquia promovia a igreja e a cidade, e a terceira estrofe é bastante importante: ao pedir que o santo visite a igreja dali em diante, evidencia-se aquele dia como marco inaugural de um novo período. Além disso, esta estrofe faz uma equivalência entre os habitantes da igreja e os habitantes da cidade, construindo uma imagem de que toda a cidade é igreja. A quarta estrofe relaciona a chegada da relíquia à correta observação dos costumes cristãos, semelhante ao que se passara quando da descoberta das relíquias em Arjona, evidenciando a nova conexão entre o poder das relíquias e a pauta estabelecida pelo Concílio de Trento. Após o teatro, o padre Fernão Cardim fez uma pregação em torno das graças de são Sebastião, e acabada a missa "deu o padre Visitador a beijar a relíquia a todo o povo". Depois disso, a relíquia foi colocada no sacrário do colégio, "para consolação dos moradores, que assim o pediram". No sacrário, são Sebastião encontrou como companheira uma outra cabeça das Onze Mil Virgens (CARDIM, 1980 [1625], p. 170).

A chegada do visitador a São Paulo foi planejada para acontecer no dia 25 de janeiro de 1585, dia da conversão do mártir são Paulo, padroeiro da cidade. Os principais homens da cidade deslocaram-se três léguas para receber Cristóvão de Gouveia, e a recepção se deu a cavalo. O visitador trazia consigo algumas relíquias, entre elas uma do Santo Lenho, e outra dos santos tebanos da legião de são Maurício, que foram devidamente veneradas39.

A população da vila do Espírito Santo, particularmente devota, em meio a uma epidemia de peste, reforçou sua devoção às relíquias que tinham em sua igreja, dando uma coluna de prata para uma relíquia das Onze Mil Virgens que fazia companhia à relíquia de são Maurício que ornava a mesma igreja. Em 1585 ou 1595, Anchieta compôs um auto, em que dois meninos saúdam a chegada dessa relíquia no porto da cidade, vinda de barco, antes de ser acompanhada em procissão até ser depositada na Igreja de São Tiago. A relíquia com a cabeça da virgem é festejada por dar uma nova luz aos habitantes da Vila:

Cordeirinha linda
Como folga o povo!
Porque vossa vinda
Lhe dá lume novo.
Nossa culpa escura
Fugirá depressa,
Pois vossa cabeça
Vem com luz tão pura.
Vossa formosura
Honra é do povo,
Porque vossa vinda
Lhe dá lume novo.
Virginal cabeça
Pela fé cortada,
Com vossa chegada
Já ninguém pereça.
Vinde mui depressa
Ajudar o povo;
Pois com vossa vinda
Lhe dais lume novo40.

Em 1595, Anchieta escreveu um outro auto, a pedido da confraria de São Maurício, em Vitória (que é também chamada "Vila de São Maurício"), para celebrar o dia de seu protetor, de quem a confraria tinha uma relíquia que era venerada como protetora contra a epidemia e a seca. É o auto de Anchieta que trata de forma mais explícita a presença de relíquias em uma cidade como causa e efeito das virtudes de seus moradores, e seu papel de proteção do local, mas reivindicando devoção permanente em troco. A fé do povo de Vitória em seu santo é posta à prova contra vários inimigos: os protestantes, um castelhano que quer levar a relíquia para o Rio da Prata41, além de dois demônios, Satanás e Lúcifer e, talvez a principal delas, a falta de fé do povo de Vitória. A Vila, que também é personagem da peça, está de início bastante desesperançada42.

O auto representa a chegada de barco, ao porto da Vila, da cabeça de são Maurício e de outras relíquias. Aí são saudadas por dez meninos, que cantam o caráter voluntário da presença do santo e o papel de proteção desempenhado pela relíquia sobre a cidade, contra os franceses e ingleses:

Com tais mortes merecestes
triunfos mui gloriosos
e que vossos fortes ossos
que defender não quisestes,
sejam defensores nossos [...]
O pecado nos dá guerra,
em todo tempo e lugar;
e pois quisestes morar
nesta nossa pobre terra,
ajudai-a sem cessar;
porque, cessando o pecar,
cessarão muitos reveses,
com que os hereges franceses
nos poderão apertar
e luteranos ingleses43 [grifos meus].

Os protestantes estão presentes como ameaça também em outra passagem da peça, o Monólogo da Ingratidão, em que Anchieta simula o discurso de um reformista na América, desdenhando do culto católico aos mártires, "criados de Deus"44. Ao final, a Vila de Vitória, apoiada por outros dois personagens, o Amor de Deus e o Temor de Deus, acaba por merecer a relíquia, com a qual espanta todas as ameaças45. A peça encerra-se com quatro meninos levando a cabeça de são Maurício à sepultura em um esquife ("tumba"), assim permanecendo na Vila.



Criação de relíquias

Já vimos que a descoberta de relíquias e o traslado de relíquias eram dois procedimentos de consagração do território, presentes tanto na Europa quanto na expansão do corpo da cristandade no início da Idade Moderna. Ainda um terceiro procedimento merece ser investigado: a produção de novas relíquias, que acompanhava a produção de novos mártires.

Excetuando-se as relíquias de menor valor, que se obtinham colocando tecidos ou outros objetos em contato com as relíquias já existentes, ou matéria como terra extraída dos sepulcros dos santos, a única forma de novas relíquias serem produzidas era a partir de restos de novos santos. Isso não era algo fácil, pois as reformas católicas do século XVI significaram uma centralização nas mãos do Vaticano dos processos de beatificação e canonização, em contraponto aos costumes da Idade Média, quando proliferavam devoções difusas de inúmeros santos, muitos deles restritos a um culto local. A santificação foi uniformizada, critérios exigentes de averiguação de milagres foram estabelecidos e foram proibidos cultos locais não reconhecidos pelo papa (HSIA, 1998, p. 126).

Mas a centralização dos processos de santificação não impediu a veneração a restos de mártires e outros mortos considerados santos. Pelo contrário, como eram necessárias, a partir da segunda metade do século XVI, provas de santidade para se abrirem processos no Vaticano, os fiéis, e principalmente as ordens religiosas, ocuparam-se em sistematizar, documentar e circular as informações sobre eventuais candidatos a santos e suas relíquias. Ainda que fosse necessária a autorização papal para o início do culto a um beato ou santo - autorização nem sempre obtida -, mesmo antes disso já se davam atributos sagrados às relíquias daqueles que eram considerados santos.

Havia um sentimento comum de que o martírio conferia santidade automática à vítima, e os restos dos corpos dos novos mártires católicos eram cobiçados como verdadeiras relíquias. Partes do corpo e roupas dos mártires católicos, na Holanda e na Inglaterra, eram avidamente disputados pelos seus correligionários. Relíquias de Edmund Campion foram enviadas ao Colégio Inglês, em Roma, onde os jesuítas se preparavam para o martírio na Inglaterra. As relíquias dos mártires de Gorcum eram veneradas em Bruxelas, colocadas em duas ricas arcas que passeavam pela cidade em procissões, ainda que eles não tivessem sido reconhecidos pelo papa (GREGORY, 1999, p. 298-303).

Um corpo incorrupto, perfumado e flexível esteve no centro de uma grande disputa no final do século XVI na Espanha, no período em que Portuga estava sendo regido pelo espanhol Filipe II. O Convento das Carmelitas de Alba de Tornes, nas proximidades de Salamanca, na Espanha, ganha, em 1582, o maior tesouro imaginável: o corpo de Teresa de Ávila, espanhola de família aristocrática, fundadora da Ordem das Carmelitas Descalças e que, ainda em vida, tinha fama de santa. Quando, já doente, a caminho de seu Convento de São José, em Ávila, após fundar um novo convento em Burgos, Teresa recebeu de seu superior, o provincial frei Antonio de Jesus, a ordem de ir ao Convento de Alba, onde a Condessa de Alba requisitava a sua presença. Contrariada, obedeceu às ordens de seu superior, e prosseguiu até Alba, onde sua saúde piorava a cada dia. Após oito dias, recebeu de Deus o aviso de que se aproximava a hora de seu descanso.

As monjas também começaram a receber sinais disso, algumas delas viram luzes e resplandecências brilharem sobre a igreja onde estava santa Teresa. Nos últimos momentos, o próprio rosto da santa era tão brilhante que não se podia olhá-lo (YEPES, 1615, p. 221-222.). Pouco antes de sua morte com todos os sinais de santidade, frei Antonio de Jesus perguntou a Teresa se ela desejava ser sepultada em Alba ou em Ávila, ao que ela responde, em prova de sublime humildade: "Tenho eu que ter coisa própria? Aqui não me dariam um pouco de terra?" No momento de sua morte, uma freira viu que passavam pelo claustro da igreja muitas pessoas resplandecentes, todas vestidas de branco, e entraram no quarto onde ela estava com grandes demonstrações de alegria. Outra freira viu sair de sua boca uma pomba branca, assim como várias outras freiras tiveram visões semelhantes (YEPES, 1615, p. 224-225).

O corpo de santa Teresa assumiu uma beleza sublime após sua morte. O rosto, "branco como o alabastro, sem ruga nenhuma, ainda que antes tinha muitas por ser velha, as mãos eos pés com a mesma brancura [...] e tão tratáveis, tão suaves ao tato, como se estivesse viva". A fragrância que emanava de seu corpo no momento em que a vestiam e adereçavam para seu sepultamento era tão forte que se espalhava por todo o edifício, e nada na terra se parecia com aquele perfume, "porque era verdadeiramente um perfume celeste". O perfume impregnou toda a enfermaria, cama e roupas de santa Teresa, assim como todas as coisas em que ela tocou quando doente - perfume, aliás, que já saía de sua boca em vida. Mais de vinte anos após sua morte, suas relíquias ainda exalavam esse perfume (YEPES, 1615, p. 227).

Logo as religiosas do Monastério de Alba começaram a venerar como relíquias não só o corpo da santa, mas também tudo aquilo que ela havia tocado, "como aos instrumentos nos quais esperavam que Deus haveria de mostrar sua virtude". E assim, começaram a distribuir suas roupas pelos monastérios de frades e monjas carmelitas e também a outras pessoas importantes, que logo começaram a produzir milagres (YEPES, 1615, p. 228). Antes mesmo de ser enterrado, o corpo de santa Teresa começou a operar milagres entre as monjas de Alba. Estas enterraram rapidamente o corpo, de forma a dificultar a sua exumação, sob grandes quantidades de pedra, tijolo, terra, cal e água, bem compactados. Era evidente o temor de que as freiras de Ávila reivindicassem o cadáver de Teresa.

Mas, nove meses depois disso, arrependeram-se por não dar à santa uma posição de maior visibilidade, e exumaram o cadáver, sob o atento controle do duque de Alba, que já considerava o corpo de Teresa "a maior jóia de suas terras". Encontraram o cadáver incorrupto, que continuava exalando um perfume maravilhoso, que aderia a tudo o que tocava o corpo da santa. A despeito dos temores do duque e das freiras de Alba, iniciou-se naquele momento um processo de fragmentação e distribuição dos pedaços do corpo da santa. Tamanha graça não podia ficar restrita a um só local, ainda mais um convento tão longínquo e isolado como o de Alba, e deveria correr o mundo para proteger outros locais.

Logo nessa primeira exumação, o padre provincial Jerônimo Gracián cortou sua mão esquerda e um dedo da direita. Ficou com o dedo para si, que carregou pelo resto de sua vida, e enviou a mão esquerda para o convento de SãoJosé de Ávila, cujas freiras reclamavam o retorno do corpo à sua casa. Às freiras de Alba, esta pareceu uma atitude conciliadora, mas na verdade a doação da mão - que mais tarde seria doada ao Convento das Carmelitas de Lisboa, onde provocou inúmeros milagres - foi uma manobra dissimulatória: a rea intenção do padre Gracián era levar todo o corpo de Teresa para Ávila.

A alegria das freiras de Alba com a presença da relíquia durou pouco. Por trás do lobby para levar o corpo para Ávila, estava o poderoso bispo de Palencia, D. Álvaro de Mendoza, que anos antes tinha feito um acordo com as carmelitas de Ávila e doado uma soma considerável de dinheiro para que a capela do Mosteiro de São José de Ávila fosse reconstruída, atribuindo centralidade a dois jazigos: o de Teresa e o seu próprio. Em 1585, o corpo é novamente exumado, examinado e verificado incorrupto. Para desapontamento das freiras de Alba, os padres ordenaram que o corpo fosse transportado para Ávila, mas o convento de Alba foi indenizado com o braço e ombro direitos da santa.

As freiras de Ávila e o bispo Álvaro de Mendoza ficaram exultantes com a volta de sua patrona ao Convento, mas o caso não estava encerrado. O poderoso duque de Alba, que vinha de uma das mais influentes famílias da Espanha, processou o Convento de Ávila pelo roubo. Entre outras coisas, alegava que, segundo a norma canônica, a trasladação de um santo não poderia ser feita às escuras, mas cercada de pompa e rituais. Até mesmo o papa Sisto V foi acionado, e ordenou a imediata restituição do corpo de Teresa a Alba. A despeito de protestos em Ávila, o corpo nunca mais saiu de Alba - a não ser por inúmeros fragmentos de sua pele, carne e ossos retirados e espalhados pelo mundo, exemplificando a proximidade entre o artefato sagrado que os corpos dos santos eram e as relações de domínio e reciprocidade (EIRE, 1995, p. 423-441) .

São Francisco Xavier morreu em 1552, na Ilha de Sanchoão, na província de Cantão na China e, no ano seguinte, quando seu corpo foi trasladado para ficar junto aos cristãos, estava também em estado incorrupto46. O corpo foi levado para Malaca, onde ficou exposto à visitação de inúmeros fiéis, e já começou a operar milagres antes de ser novamente enterrado. Mas este não foi o último repouso do santo: alguns meses depois, foi desenterrado para ser levado a Goa, quando foi mais uma vez constatado seu estado de incorruptibilidade e o perfume paradisíaco que emanava do corpo. Em março de 1554, o corpo chegou a Goa, onde foi recebido com grandes festas e sepultado na Igreja do Colégio de São Paulo dos Jesuítas. Também lá, o corpo de Francisco Xavier logo começou a promover milagres: exalou sangue fresco de uma chaga próxima a seu coração, curou várias pessoas, devolveu a visão a um homem (LUCENA, 1989 [ 1600], p. 201 -209). Uma relíquia de são Francisco Xavier aportou em Salvador e, levada em procissão em um andor em meio a uma epidemia em 1686, devolveu a saúde à cidade, que adotou então o santo como seu padroeiro (Figura 3).


A América Portuguesa foi também território onde se produziram relíquias. Está em jogo aqui a defesa da capacidade da colônia de produzir o sagrado, de certa forma libertando-se da sua importação. Os exemplos disso são vários. Ao relatar o martírio de Pedro Correia e de João de Souza, em São Vicente, em 1554, Anchieta anuncia:

Já brilham coroados e revestidos com uma estola de glória, mas esperam outra de que serão vestidos os seus corpos, agora entregues como alimento aos animais da terra e às aves do céu. Não houve quem os sepultasse, mas nem sequer lhes perecerá um cabelo da cabeça. Trabalharemos quanto pudermos para recolher alguns ossos47.

Os ossos deveriam ser recolhidos, porque não era decente deixar os restos humanos sem sepultamento no sertão, abandonados "aos animais da terra e às aves do céu", mas é também evidente o esforço de construção de relíquias sagradas, pontes entre céu e terra, pois aqui estão presentes atributos dos santos, como o brilho e a incorruptibilidade de seus corpos.

Provavelmente, as relíquias mais consagradas foram as do próprio José de Anchieta, que morreu em Reritiba, no Espírito Santo, em 9 de junho de 1597, e ficou sepultado em Vitória até 1609, quando seus ossos foram trasladados para Salvador. Posteriormente, seu culto foi autorizado por um breve do papa Urbano VIII (papado de 1623 a 1644), e seus ossos, distribuídos como relíquias, logo começaram a fazer milagres48.

Em uma carta de 1626 à Companhia de Jesus, Antônio Vieira relata um prodígio operado pelo recém-falecido irmão Antônio Fernandes:

Outra vez acaso encontrara um dos nossos padres, que mostrava andar enfadado; e sabida a causa, era por ter perdido um dente do santo José Anchieta, que muito estimava. Consolou-o ele dizendo que o encomendaria a Deus e, detendo-se um pouco sem se mover do lugar, o levantou [o dente de Anchieta] do chão, em parte onde se tinha buscado com muita diligência (VIEIRA, 2003 [1626], p. 81).

O movimento aqui é de sobreposição: reforçar tanto o poder sagrado da relíquia de Anchieta quanto o do padre Antônio Fernandes que a fez levitar do chão. Na narrativa, Vieira aponta outros aspectos sagrados da morte do padre: ele morrera no dia de santo Antônio, a quem emprestava o nome, e sabia da proximidade de sua morte, para a qual preparou-se. Vieira também relata que uma relíquia de Anchieta foi colocada na popa de uma nau que saiu de Pernambuco para socorrera Bahia, que havia sido invadida pelos holandeses, e protegeu aquela parte do navio, enquanto outras foram severamente atingidas.

Tudo se atribuiu, com muita razão, aos merecimentos do santo padre José Anchieta. Sua canonização se espera e deseja com grande alvoroço de toda esta província [do Brasil da Companhia de Jesus], assim dos de casa [os jesuítas] como dos de fora, e não duvidamos de haver de ser um grande meio para uns se emendarem e outros se melhorarem (VIEIRA, 2003 [1626, p. 117).

Os corpos de alguns franciscanos também constituíam relíquias. Os restos de frei Palácios, morto em Vila Velha em 1570, foram trasladados para o convento franciscano de Vitória em 1609, a contragosto do povo de Vila Velha, e durante o traslado se curaram vários doentes (WILLEKE, 1972, p.14). No século XVIII, temos notícia de que conservavam-se "em honorífico lugar as que escaparam de piedosos roubos" (CONCEIÇÃO, 1733, p. 112). Os padres José de Santa Maria e Martinho da Conceição foram cruelmente martirizados pelos índios em 1701, "cujos veneráveis cadáveres, depois de passados seis meses, estando expostos ao rigor das feras, se acharam tão incorruptos, e de bom semblante, que causavam gozo, e consolação nos que os viam" (CONCEIÇÃO, 1733, p. 128-129).

Excepcionalmente, os corpos de não-religiosos podiam ter atributos de relíquias. Estácio de Sá, o capitão-mor da armada que reconquistou o Rio de Janeiro aos franceses, foi ferido em combate e morreu logo depois, "com sinais de virtude". Foi considerado um mártir, "por cujo sangue [a cidade] goza a liberdade em que hoje [século XVII] se vê". Testemunhas relataram que, quando seus ossos foram trasladados, "saía dele um cheiro suave, como sinal que gozava sua alma da felicidade da glória" (VASCONCELLOS, 1672, p. 126-127).

Assim como no Velho Mundo, também na América os instrumentos de martírio eram considerados relíquias. O tacape de madeira com o qual o padre Francisco Pinto foi martirizado pelos índios no início do século XVII foi levado para o colégio dos jesuítas na Bahia, onde era tido com grande veneração (CARNEIRO DA CUNHA, 1996, p. 75). Em 1654, Vieira refere-se a "um terreiro grande, com um pau fincado no meio, o qual ainda conservava os sinais do sangue [de jesuítas martirizados pelos índios]", possivelmente na expectativa de recolher o pau como relíquia, ou de consagrar tal terreiro para uma igreja (VIEIRA, 2003 [1654], p. 173).

Já identificamos as questões relacionadas às iniciativas portuguesas (principalmente missionárias) de descobertas, traslado e criação de relíquias. Vamos agora investigar a recepção das relíquias pelos habitantes originais da América.



O outro lado

A menos que acreditemos na hipótese de que a cultura e a religiosidade ameríndias eram a "folha em branco" esperando pela evangelização, como alguns missionários do século XVI afirmavam, é necessário avançar um pouco na compreensão dos significados que os índios atribuíram a esses ossos tão especiais. Parece válida a hipótese de que as relíquias sagradas foram um dos elementos por intermédio dos quais índios e portugueses puderam estabelecer códigos de comunicação, ou traduções, segundo a terminologia de Cristina Pompa (2003).

Ao mesmo tempo em que rejeitava as idolatrias, xamanismos e animismos, a doutrina católica aceitava o uso das relíquias sagradas em processos de cura (CERVANTES, 1999, p. 278). Enquanto, de uma forma geral, a cultura católica separava irremediavelmente pessoas e coisas em grupos distintos e incomunicáveis, as relíquias estavam entre os poucos artefatos que podiam pertencer simultaneamente às duas categorias49.

A separação entre pessoas, coisas e animais era bem menos clara para os índios, que acreditavam na propriedade da metamorfose. Hans Staden condenou o chefe Cunhambebe por comer carne humana, dizendo que "mesmo um animal irracional raramente devora seus semelhantes, por que então um homem iria devorar os outros?". Ao que Cunhambebe respondeu, entre uma mordida e outra: "Sou um tigre, isso está gostoso" (STADEN, 1998 [1548], p. 106). Alguns nomes de chefes Tupis do século XVII exemplificam isso: Sauçuacã (cabeça de corça), Metarapua (pedra branca), Auati (milho negro), Tamano (pedra morta), Tatu-açu (fogo grande), Tecuaré-Ubuí (maré de sangue), Itapucusã (ferro com que se prendem os pés), Mutim (Miçanga Branca), Quatiare-Uçu (carta ou letra grande), Uirapapeup (arco chato), Canuaaçu (tintura), Tocaiaçu (galinheiro grande), Itaongua (pilão de pedra), Uitin (farinha branca). O filho mais velho do feiticeiro de Tapuitapera, no Maranhão (hoje Alcântara), chamava-se Chenambi, ou "minha orelha" (EVREUX, 2002 [1615])50.

Também os maracás - as cabaças mágicas que os Tupinambás mantinham, traspassadas por varetas e recheadas com pedrinhas, constituindo chocalhos - tinham esse atributo de ser tanto pessoas quanto coisas. Esses instrumentos recebiam os espíritos dos antepassados dos Tupi, quando tocados pelos pajés em suas visitas às aldeias, uma vez por ano (Figura 4)51.


Os ossos dos grandes guerreiros também tinham significados especiais para os Tupinambás. Hans Staden afirma que, em algumas tribos, era costume espetar em estacas na entrada da aldeia as cabeças dos inimigos comidos (STADEN, 1998 [1548], p. 72, 136) (Figura 5). Os chefes Tupinambás eram enterrados com suas cangoeiras, flautas feitas com os ossos de seus inimigos (SOUZA, s.d [1587], p. 285). Jean de Léry aponta a conservação de caveiras, de ossos das coxas, braços, e de dentes dos inimigos52.


Gabriel Soares de Souza usa, inclusive, o termo "relíquia" para designar os restos dos inimigos mortos, revelando aliás boa sensibilidade etnográfica, pois de fato os Tupi comiam aquilo que lhes era sagrado:

E há alguns destes bárbaros tão carniceiros que cortam aos vencidos, depois de mortos, suas naturas, assim aos machos como às fêmeas, as quais levam para darem às suas mulheres, que as guardam depois de mirradas no fogo, para darem a comer aos maridos por relíquias (SOUZA, s.d. [1587], p. 276).

Sobretudo essa propriedade das relíquias - de transportar o que é sagrado - deve ter tido um grande apelo entre os Tupi e outras tribos, cuja cultura baseava-se em um regime de migrações constantes. O capuchinho Claude D'Abbeville relata a dificuldade dos índios Tupinambás em compreender o significado da consagração do território e da consolidação de assentamentos permanentes, ao mesmo tempo em que ficavam fascinados com a ereção de uma cruz na aldeia maranhense de Juniparã e resistentes a abandonar as transferências no local das aldeias:

Nessa ocasião [de levantamento da cruz], disse Japiaçu [o chefe] que o único pesar que ele e os seus sentiam era o de terem de abandonarJuniparã e irem residir por cinco ou seis luas num lugar longe daí um quarto ou meia légua (porque costumavam mudar de lugar e de casa de cinco em cinco, ou de seis em seis anos) lamentando todos o deixar a cruz agora erguida. "Contudo (ele dizia) prometo que, quando sairmos daqui, levaremos a cruz para onde formos no firme propósito de fixarmos residência, e não andarmos como até aqui." Nós lhes respondemos que não tirassem a Cruz, e que era melhor aí deixá-la como eterna lembrança, e, para consolá-los, que bem podiam fazer outra, que seria benzida pelo padre que com eles viesse morar, e depois levantada, como praticaram com esta (ABBEVILLE, 2002 [1614], p. 130).

Esse tipo de mal-entendido não acontecia com as relíquias, móveis por natureza. O episódio que mais evidencia a apropriação das relíquias pelos índios foi um conflito em torno das relíquias do padre Francisco Pinto, no Ceará (Figura 6). O padre havia sido martirizado pelos Tapuia no início do século XVII, e seus ossos eram tidos como sagrados pelos índios, que a eles creditavam o dom de regular o tempo, trazendo chuva e sol nos momentos certos, donde recebeu o nome de Amanaira, ou senhor da chuva (CASTELNAU-L'ESTOILE, 2000, p. 443). Em 1615, um outro jesuíta, o padre Manuel Gomes, foi incumbido de procurar as relíquias do padre Francisco Pinto para levá-las ao colégio de Pernambuco, mas, ao receberem a demanda, os índios avisaram que defenderiam com armas os ossos do padre:

Se consentissem tirar-lhes um só osso do seu S., a quem eles tinham por pai, e que nos tempos passados faltando-lhe a chuva, às vezes ano inteiro, e por essa causa os mantimentos e frutos depois, que tiveram ao S. corpo em sua companhia parece [que] mudava o céu, o clima [...] não lhe faltando a chuva e sol a seu tempo, e quando ameaçava esta faltar se iam ao S. falando com ele, diziam Pai Pinto dai-nos água, ou dai-nos sol conforme sua necessidade, como se fora ele o Senhor dos tempos [...] e Deus Nosso Senhor para honrar seu servo lhe concede tudo à medida de seu desejo, porque dele se valem em suas enfermidades, e ainda que me fora fácil com duas companhias de arcabuzeiros tirá-lo à força tive por melhor deixá-los gozar daquele tesouro, com que Deus os enriquecia, dando-lhes saúde e vida, que ouro nem prata pode conceder (GOMES, 1615).


Embora afirmasse que deixaria os índios "gozar daquele tesouro", o jesuíta não desistiu de procurar o corpo santo, e pediu a um vigário que, à noite, fosse à ermida onde estava o corpo e pegasse alguns ossos e os levasse ao colégio de Pernambuco, "porque lhe não poderia levar pedras de mais estima". O vigário, cavando o local, não achou o caixão, pois os índios o haviam mudado de lugar, temerosos de que o corpo lhes fosse roubado. Em seu caminho de volta, os índios cercaram o vigário e o fizeram abrir todas as suas trouxas para verificar que ele não levava as relíquias do padre (GOMES, 1615).

Ao que se sabe, o conflito pelas relíquias do padre Francisco Pinto não foi adiante. Os jesuítas conformaram-se em não levar os ossos, encontrando até mesmo aspectos positivos no episódio: "Assim honra Deus a seus servos, que quando parece, que hão de ficar sepultados no esquecimento, os faz reverenciar e estimar da própria gentilidade" (GOMES, 1615). Para nós, o episódio importa por revelar consensos e tensões em torno de significados: além de discordarem em torno da posse das relíquias, índios e jesuítas discordavam em torno da localização adequada para elas. Os jesuítas buscavam urbanizar as relíquias, levando-as para o colégio de Pernambuco. Os índios, por outro lado, buscavam manter as relíquias consigo, mudando-as até mesmo de lugar. Enquanto para os padres a igreja era o local por excelência de depósito das relíquias, essa relação não parece ser tão importante para os índios, que já as haviam desenterrado da ermida onde estavam. Também discordavam quanto à distribuição dos ossos: enquanto para os jesuítas a fragmentação do corpo era algo razoável e até mesmo desejado, para os índios era fundamental a integridade do esqueleto, que tratavam como o de um grande xamã e, como tal, investido de capacidade de ressuscitar a si mesmo (SZTUTMAN, 2005, p. 336-344). Por outro lado, índios e jesuítas concordavam em serem as relíquias especiais, o que, em jargão ocidental, podemos traduzir por sagradas e milagrosas, o que é suficiente para sustentar a posição de que foram matéria de interlocução entre católicos e ameríndios.



Considerações finais

A busca pela descoberta, o traslado e a produção de relíquias mostram que a ocupação do território da América Portuguesa pressupunha a incorporação dessas novas terras no espaço e no tempo cristão; e que, para os cristãos, as relíquias desempenhavam nas cidades da colônia papéis similares aos que tinham do outro lado do Atlântico: regulação do tempo e do espaço, enobrecimento das cidades receptoras, proteção, cura, apoio nas batalhas contra o Demônio e os hereges protestantes.

De uma forma geral, as relíquias trasladadas habitavam os espaços urbanos, não há nenhuma notícia de traslado de relíquias para territórios rurais. Mesmo as relíquias de são Tomé, encontradas em lugares desocupados, por vezes estimularam a ocupação permanente do local onde foram encontrados ou, em um momento semelhante, foram deslocadas rumo aos espaços urbanos.

Isso tudo vai no sentido da existência um "projeto urbanizador" já desde o século XVI, em termos bastante diversos das iniciativas de urbanização centralizadas pela Coroa, estas baseadas em cidades fortificadas, situadas em locais estratégicos para a defesa do território53. Trata-se de uma "urbanização espiritual", conversão de um território selvagem em parte do corpo da cristandade, que teve como centralidades suas capelas e igrejas, ao redor das quais foi se alojando a ocupação permanente, promovida principalmente pelas ordens religiosas. O modelo dessa urbanização não deve ser buscado em Lisboa ou na expansão portuguesa, mas na Roma dos mártires, das relíquias e das peregrinações.

Ainda que sejam dois processos identificáveis e distintos, a urbanização religiosa e a urbanização administrativa não constituíram, nos dois primeiros séculos, procedimentos contraditórios, mas sobrepostos e em vários aspectos complementa res, profundamente identificados entre si. As diferenças, contradições e incompatibilidades vão revelar-se mais adiante, principalmente na campanha urbanizadora portuguesa do século XVIII, que subjugou os aspectos religiosos à estratégia da Coroa e combateu os projetos missionários territoriais, como os dos jesuítas54.

Por outro lado, a própria capacidade de "transportar lugares", inerente às relíquias, que parece ter permitido a construção de campos de interlocução entre índios e missionários, fez delas objetos privilegiados, a partir dos quais podemos investigar esse processo de cristianização e ocidentalização do território brasileiro; e os papéis que cristãos e índios assumiram no processo. Para viabilizar mesmo as menores urbanizações, um consenso primordial teve que ser estabelecido: o de que os assentamentos eram algo permanente, destinado a sediaros elementos sagrados da sociedade; e não algo móvel, modelo ameríndio - o que por si só já destruía parte significativa da territorialidade dos índios. Episódios como o da disputa pelas relíquias do padre Francisco Pinto (e a iniciativa deJapiaçu de incorporação da cruz dos missionários na suas migrações) mostram que o processo nem sempre foi consentido, ou seja, a sedentarização do sagrado no território foi um processo bem menos óbvio do que parece. Os próprios jesuítas parecem ter aventado a hipótese de aldeamentosseminômades55. Mas, onde e quando essa fixação efetivamente ocorreu, ela muitas vezes foi auxiliada por alguns ossos muito especiais.

Avançar no conhecimento dessa urbanização religiosa pode contribuir para conhecermos melhoras cidades brasileiras dos dois primeiros séculos, e isso não a partir de uma negatividade vazia de capacidade descritiva (elas foram tantas vezes descritas como "esvaziadas", "desvitalizadas", "intermitentes", meros "apêndices do rural")56 - mas a partir de elementos positivos em torno dos quais efetivamente se organizou a vida e o cotidiano urbano, que podem nos ajudar a qualificar positivamente este ainda desconhecido objeto que é a realidade urbana colonial.

Ao mesmo tempo em que ajuda a encaminhar o debate acerca da ocupação territorial na América Portuguesa, a investigação do papel das relíquias sagradas cumpre uma função altamente contemporânea no debate em torno do encontro, a partir do início da Idade Moderna, entre as culturas européia e as de suas colônias. Após os focos prioritários da maior parte da segunda metade do século XX nos processos de destruição de culturas e no binômio dominação/resistência - ambos relegando a cultura a uma posição subalterna em relação aos processos econômicos e sociológicos -, uma série de estudos vem priorizando crescentemente o vocabulário simbólico em torno do qual colonizadores e colonizados viabilizaram a gigantesca empreitada do encontro, configuraram traduções recíprocas entre culturas. Opera-se, assim, uma mudança de foco: mais do que as conformações culturais, interessam as mediações culturais, como formas de produzir os fundamentais nexos entre o local e o global, questão de sobrevivência tanto para colonizadores como para colonizados, em uma situação de perplexidade como aquela dos descobrimentos. Os estudos que compreendem como os agentes em interação acessam alguns dos elementos de suas culturas como instrumental para essas mediações culturais estão na ordem do dia e revelam quais elementos - e por que eles - são privilegiados em detrimento de outros nesses processos (MONTERO, 2006b, p. 51). Acredito ter dado uma pequena contribuição a esse debate, ao identificar e justificar as relíquias sagradas como um dentre outros vocábulos acionados - no encontro entre portugueses e Tupi - que viabilizaram a interlocução e a tradução cultural.

Ainda que lastreada na História, esta abordagem revela uma preocupação em obter respostas a desafios dados pela contemporaneidade, como os limites e inversões dos processos de assimilação e incorporação de grupos tradicionais na cultura ocidental, algo considerado como certo até muito recentemente (MONTERO, 2006a, p. 9). Trata-se de qualificar, via elementos culturais, os limites dos processos de modernização, algo não só necessário, mas urgente em um mundo como o de hoje, em que padrões de espiritualidade e religiosidade parecem guiar cada vez mais o comportamento de grupos e sociedades inteiras. Tal debate vem passando, em grande medida, ao largo dos estudos urbanos coloniais.

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-47142006000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt#fig02


Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material

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