sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Moradia escrava na era do tráfico ilegal: senzalas rurais no Brasil e em Cuba, c. 1830-1860

Rafael de Bivar Marquese

Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo


Moradia escrava e historiografia

Comecei a visitar velhas plantations do Sul basicamente para satisfazer minha curiosidade a respeito da organização física da escravidão. Também esperava adquirir alguma perspectiva histórica para meu trabalho como arquiteto afro-americano. Meu interesse pelo assunto retrocede a meados dos anos 1960, quando grande parte da atenção nacional voltou-se para o povo negro. Escritores, músicos e líderes políticos afro-americanos estavam demonstrando à nação o quanto sua vida interior havia sido ignorada pelo fato de a experiência de sua população afro-americana ter sido silenciada (ANTHONY, 1976, p.8).

Essas palavras do arquiteto norte-americano Carl Anthony são bastante elucidativas a respeito do interesse que a historiografia passou a nutrir sobre a cultura escrava a partir da década de 1960. Com efeito, é certo que desde o início do século XX os historiadores prestaram atenção a temas como a família, a religião e a vida material dos escravos, mas somente com o boom da historiografia sobre a escravidão verificado após os anos sessenta é que a abordagem desses assuntos tomou corpo. Em resposta direta a questões sociais e políticas de seu tempo, os estudiosos passaram a pesquisar sistematicamente os vários aspectos da vida dos escravos africanos e de seus descendentes no Novo Mundo, encarando-os como sujeitos ativos na construção de seu devir2.

A nova ênfase na agência escrava, por sua vez, permitiu a investigação aprofundada dos temas relativos à cultura material. No que se refere ao assunto deste artigo, a moradia escrava, pode-se afirmar que, nas três últimas décadas, consolidou-se na historiografia duas vertentes de análise, não raro empregadas simultaneamente pelos pesquisadores. Grosso modo, a primeira se ocupa dos modelos arquitetônicos das moradias escravas, isto é, suas origens, tipologias e técnicas construtivas, enquanto a segunda trata dos usos e apropriações escravas desses espaços. Ainda que as pesquisas disponíveis tratem de lugares e épocas variadas, nos últimos tempos vem se construindo certo consenso interpretativo sobre a questão. Os historiadores apontam que, quando tiveram oportunidade para tanto, os escravos configuraram suas moradias baseando-se em formas e técnicas africanas, exercendo assim considerável grau de autonomia na conformação de sua vida material3.

Um bom exemplo dessa perspectiva pode ser encontrado no livro recente de Robert Slenes, Na senzala, uma flor, cujo foco é a família escrava no Sudeste cafeeiro do Brasil oitocentista. Ao analisar os significados da organização familiar para os próprios cativos, o autor ressalta a importância que davam para a formação de núcleos familiares como arma na luta contra os senhores. O estabelecimento de laços conjugais estáveis, assim, lhes facultaria maior autonomia para o controle de vários aspectos de sua vida material e cultural. Era isso, segundo o autor, o que ocorria com a moradia.

Baseando-se em relatos de viajantes que percorreram o Centro-Sul do Brasil ao longo do século XIX, Slenes distingue três tipos de vivenda escrava: as senzalas " pavilhão" , edifício único com pequenos recintos ou cubículos separados para os escravos solteiros e casados, as senzalas " barracão" , onde viveriam escravos e escravas solteiros em grandes recintos separados, e as senzalas " cabana" , onde viveriam escravos casados ou solteiros de um mesmo sexo. Ao sintetizar sua análise sobre a questão, Slenes escreve que

o que chama a atenção na maioria destes depoimentos é que o casar-se [...] conferia acesso a um espaço construído próprio, seja um cubículo num barracão/pavilhão, seja num barraco separado. Mesmo não sendo necessariamente maior do que os cubículos [nos barracões], os compartimentos [nos pavilhões] ou os casebres dos solteiros, a moradia da pessoa casada – ou pelo menos da recém-casada, sem filhos – geralmente congregava menos gente [...]. Além disso, e mais importante, era uma habitação dividida com um parceiro de vida, não apenas de roça. Enfim, o casar-se freqüentemente implicava para o escravo ganhar mais espaço construído; mas, sobretudo, significava apoderar-se do controle desse espaço, junto com o cônjuge, para a implementação de seus próprios projetos (SLENES, 1999, p. 159).

Na seqüência, Slenes examina as matrizes arquitetônicas africanas das senzalas " cabana" construídas pelos escravos no Centro-Sul cafeeiro. Procedentes em grande parte da zona congo-angolana da África central, esses cativos teriam recriado no Brasil várias das técnicas de construção empregadas em seu continente de origem, como o uso de paus de forquilha para a sustentação da cobertura, a adoção de um formato retangular para as cabanas, com teto de duas águas e cômodos pequenos, ou a ausência de janelas. Afora os elementos formais da construção, o sentido básico da moradia negra – " a definição de como se usavam espaços internos e externos" – teria permanecido o mesmo na passagem da África para o Brasil: a cabana não era o local de moradia em um sentido burguês, mas apenas o local do sono ou do abrigo contra as variações do tempo; o habitar, portanto, se desenrolaria antes no entorno da cabana do que no seu interior (SLENES, 1999, p.149-180).

O trabalho de Robert Slenes demonstra o proveito em se adotar uma perspectiva atlântica para o exame dos padrões de vida material escrava nas Américas. No entanto, deve-se ressaltar que não apenas as experiências dos escravos foram trazidas da África para o Novo Mundo, mas também as experiências dos poderes escravistas. Por ter enfocado mais a agência escrava do que a agência senhorial, Slenes deixou passar despercebida a novidade contida em certos arranjos de moradia que foram adotados em algumas das grandes fazendas de café do Vale do Paraíba. Refiro-me ao que a documentação coeva registra como senzala em quadra, isto é, edifícios contínuos erigidos em formato retangular e subdivididos em compartimentos ou cubículos, todos voltados para um terreiro ou pátio com entrada única guardada por um portão de ferro.

O que pretendo neste artigo é justamente analisar a novidade histórica representada pelas senzalas em quadra, sem me ocupar das apropriações escravas desses espaços. Contudo, para obter uma compreensão mais adequada das razões para a adoção desse modelo arquitetônico, é necessário examiná-lo em conjunto com os barracones cubanos, isto é, as grandes senzalas erigidas nos engenhos mecanizados e semimecanizados do cinturão açucareiro da colônia espanhola. As senzalas em quadra das fazendas de café brasileiras e os barracones dos engenhos de açúcar cubanos trouxeram uma ruptura substantiva em relação aos padrões de moradia escrava anteriormente existentes nas Américas, já que negavam brutalmente a autonomia escrava em sua construção. Ademais, ambos os arranjos arquitetônicos surgiram em um mesmo momento, a década de 1840. Em um contexto de aceleração da produção de café e açúcar, aumento no volume do tráfico negreiro transatlântico ilegal e acirramento das tensões internas e externas em torno da escravidão, os grandes senhores brasileiros e cubanos recorreram a um modelo arquitetônico bastante difundido nas áreas litorâneas da África em que operavam seus respectivos traficantes.



Senzala em quadra e barracão de pátio

Os primeiros esforços sistemáticos para ordenar a moradia escrava apareceram na literatura agronômica do Caribe inglês e francês em fins do século XVIII, como parte de um impulso mais amplo de controle e otimização da força de trabalho cativa (MARQUESE, 2004a). Com efeito, são poucos os indícios disponíveis sobre a normatização da moradia escrava pelos proprietários rurais das diversas regiões de plantation do Novo Mundo antes do final do século XVIII. Houve, é claro, aqueles que cuidaram pessoalmente da construção das vivendas escravas, mas a regra parece ter sido a concessão de autonomia para os cativos erigirem esses espaços de acordo com seus próprios padrões culturais.

Para os autores caribenhos que escreveram sobre o assunto, o primeiro item que lhes preocupou foi o estado sanitário das senzalas. As prescrições de Jean Baptiste Guisan – um engenheiro militar suíço com vasta experiência agrícola no Suriname, contratado na década de 1780 pelas autoridades francesas da Guiana para aí aplicar as técnicas agrícolas da colônia holandesa – são típicas a respeito do assunto. De acordo com Guisan, os alojamentos destinados aos cativos deveriam merecer atenção cuidadosa dos senhores. Em sua avaliação, os proprietários franceses (tanto os das ilhas caribenhas quanto os da Guiana) eram em geral displicentes em relação ao problema, deixando a construção das senzalas a cargo exclusivo dos escravos, que as erigiam conforme seus hábitos africanos, isto é, em casebres feitos de barro, madeira e palha, isolados uns dos outros e sem ordenação aparente. A prática dos holandeses no Suriname, contudo, era diferente. A construção das senzalas seguia o modelo das casernas, em edifício único com total simetria. Guisan advertiu que os escravos resistiam o quanto fosse possível ao modelo de moradia do Suriname, demonstrando nítida preferência por palhoças isoladas. A reforma das senzalas deveria atender em parte às demandas dos escravos, separando-as em alojamentos distintos para cada família ou casal; ao senhor, porém, competia certas interferências com vistas a garantir o máximo de salubridade possível. Assim, as senzalas deveriam ser erigidas unicamente em madeira, com certa elevação do solo para evitar a umidade excessiva e assegurar boa circulação do ar, e distribuídas de tal forma a evitar a comunicação de fogo de uma a outra (GUISAN, 1825, p. 245-247).

A reforma das senzalas, portanto, deveria tomar de empréstimo o modelo arquitetônico dos destacamentos militares. Esse impulso para a militarização da moradia escrava fica ainda mais evidente no trabalho de outro autor caribenho do período, P. J. Laborie, um grande produtor escravista de café de São Domingos. Laborie foi um daqueles senhores que, no curso da revolução escrava na década de 1790, apoiaram a invasão inglesa da colônia francesa como meio para restabelecer a ordem escravista. Para tanto, redigiu, com base em sua experiência de cafeicultor, o manual The Coffee Planter of Saint Domingo, destinado a guiar os eventuais investidores ingleses no processo de reconstrução da economia escravista da colônia. O projeto de Laborie foi derrotado com a vitória das tropas de ex-escravos comandadas por Toussaint L'Ouverture, mas seu manual persistiu como a principal referência agronômica sobre o assunto por todo o século XIX. A razão disso consistiu no fato de Laborie ter sintetizado as técnicas agronômicas que haviam garantido para São Domingos o posto de maior produtora mundial de café antes da Revolução Francesa.

O tratado foi dividido em quatro capítulos, que abordaram respectivamente a escolha e preparo dos terrenos para o plantio do café, a construção e distribuição dos edifícios, a cultura e processamento dos grãos e, por fim, a administração dos escravos. Dentro desse plano, Laborie dedicou atenção particular à organização espacial das plantations cafeeiras. Tanto é assim que o texto se fez acompanhar de várias pranchas nas quais eram apresentadas plantas arquitetônicas de grandes fazendas de São Domingos, com a indicação exata da localização dos edifícios, dos cafezais, das matas e dos pastos. Um cuidado especial foi reservado à exposição do plano de reforma da arquitetura da moradia escrava. Laborie propunha a construção das senzalas em linha, divididas em cubículos com 10 x 20 pés, cada qual reservado para três escravos; os cubículos, por sua vez, seriam subdivididos " em dois quartos, um, A, onde se faz o fogo, outro, B, para dormir. Pode-se acrescentar por detrás uma galeria, C, da largura de seis pés, para suas aves" (Figura 1).



Em sua organização interna, essas unidades seguiam claramente o padrão de moradia ioruba, adotado por grande parte dos escravos em São Domingos quando tinham a autonomia para tanto4. O sentido que Laborie lhes imprimiu, contudo, foi outro. Um rápido exame da figura 2 bem demonstra a filiação arquitetônica de suas senzalas às casernas européias. Sendo assim, o que buscou com a conjugação das diferentes unidades habitacionais escravas em edifícios únicos, simétricos e uniformes, dispostos de forma alinhada em torno dos terreiros de café ou em locais observáveis a partir da casa de vivenda senhorial, foi exatamente potencializar o controle senhorial sobre a morada dos cativos. Em suas palavras,

as casas [...] devem ser de maneira situadas, que possa o senhor ver tudo, ouvir e dar ordem. A exação, e cuidado da manufatura, o serviço do hospital, que se deve guardar de dia, e de noite, a polícia das senzalas, e o cuidado do gado de toda a casta, inteiramente dependem da presença e vigilância do senhor (LABORIE, 1798, p.83) (Figura 2).

Para nossos fins, importa salientar que as prescrições desses autores antilhanos foram difundidas no Brasil e em Cuba na passagem do século XVIII para o XIX. Com efeito, dentro dos esforços para recuperar as respectivas posições de Portugal e Espanha no quadro internacional, os administradores ilustrados desses dois impérios elaboraram um amplo programa de reformas econômicas, com ênfase especial na questão da política colonial. Parte dessa política consistiu na tentativa de aplicar às colônias de plantation portuguesas e espanholas o receituário que havia garantido às possessões antilhanas de franceses e ingleses o posto de maiores produtoras mundiais de artigos tropicais. Sendo assim, vários dos textos agronômicos compostos para o Caribe francês e inglês foram traduzidos para o português e castelhano. Tal foi o caso do manual de Laborie, vertido para a primeira língua em 1800 e para a segunda em 18105.

A despeito dessas traduções, os novos modelos de moradia escrava propostos pelos autores caribenhos não foram adotados nas plantations brasileiras e cubanas. Noutras palavras, antes da década de 1840, as unidades cafeeiras e açucareiras que foram montadas no Brasil e em Cuba mantiveram os padrões anteriores de habitação escrava. Tome-se o exemplo do Vale do Paraíba em fins da década de 1810 e inícios da de 1820, momento do deslanche da produção cafeeira na região. O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, ao percorrer em abril de 1822 o Caminho Novo da Piedade, retornando de São Paulo ao Rio de Janeiro, registrou, na altura da freguesia de Areias, as seguintes observações:

Hoje, comecei a notar, tanto à beira da estrada como a alguma distância, casas um pouco mais bem tratadas do que as vendas, e habitadas por agricultores mais abastados. Desde ontem começei a ver plantações de café, hoje mais numerosas. Devem aumentar mais ainda à medida que me for aproximando do Rio de Janeiro. Esta alternativa de cafezais e matas virgens, roças de milho, capoeiras, vales e montanhas, esses ranchos, essas vendas, essas pequenas habitações rodeadas das choças dos negros e as caravanas que vão e vem, dão aos aspectos da região grande variedade (SAINT-HILAIRE, 1974, p.100).

A feição exata dessas " choças dos negros" – ou senzalas " cabana" , para empregarmos a expressão cunhada por Robert Slenes – fica evidente se observarmos um outro registro do período. No desenho aquarelado de Thomas Ender, que percorreu o mesmo caminho de Saint-Hilaire cinco anos antes, pode-se ter uma idéia mais precisa do que eram essas " choças" : o que se nota à esquerda da figura 3 são casebres que seguem os padrões africanos de moradia escrava estudados a fundo por Slenes (Figura 3).


Esse parece ter sido o modelo das moradias escravas nas fazendas do Vale do Paraíba até a quarta década do século XIX. É certo que já na década de 1830 alguns fazendeiros estavam erigindo senzalas em linha nas unidades cafeeiras do Vale do Paraíba (o inventário do proprietário da fazenda Cachoeirinha de Baixo, na vila de Bananal, São Paulo, dono de 26 escravos, registra em 1836 a existência de uma senzala contínua com sete lanços cobertos de telha) (CARRILHO, 1994, p. 62), mas até então não houve a deliberação para se construir um espaço diferenciado de habitação escrava. Nesse período, contudo, surgiu uma atenção mais detida com a normatização dos espaços de moradia nas fazendas. Isso pode ser observado com clareza nos manuais agrícolas publicados no período.

O exemplo mais significativo disso reside no trabalho de Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, barão de Pati do Alferes. Ao publicar sua Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro em 1847, primeiro nas páginas do periódico Auxiliador da Indústria Nacional e logo em seguida em livro, Werneck apresentou a síntese do saber escravista gestado nas fazendas de café do Vale do Paraíba (fluminense e paulista) na primeira metade do oitocentos. Já na abertura do trabalho, ao traçar as instruções para a construção da senzala, Werneck recomendava cuidado com a saúde dos escravos e vigilância estrita sobre eles. A senzala deveria ser erguida em uma só linha, num lugar sadio e enxuto, com quartos de 24 palmos quadrados e com uma varanda de oito palmos de largo em todo o seu comprimento; cada cubículo deveria acomodar quatro escravos solteiros, e, no caso dos casais, marido e mulher com os filhos. As portas dos cubículos estariam voltadas ao quadro da fazenda, que conformava uma espécie de pátio em torno do terreiro, sendo cada face ocupada respectivamente pela casa do senhor, pelos paióis, tulhas e cavalariças, pelos engenhos de pilões e de mandioca e pela senzala. A moradia escrava, assim, permaneceria sempre sob a vista e o controle do senhor (WERNECK, 1985, p.57-58).

A semelhança com algumas das plantas reproduzidas por Laborie é evidente. No entanto, o manual de Werneck deve ser lido à luz do que se começou a construir no Vale do Paraíba a partir da década de 1840. A novidade veiculada em seu trabalho consistiu no fechamento do terreiro, dispondo-se as senzalas em uma mesma quadra contínua à casa senhorial e aos edifícios da manufatura (engenhos, tulhas, etc.). Exatamente nesse período os inventários das fazendas começaram a registrar uma nova forma arquitetônica, denominada como " quadro de senzalas" , ou " senzalas em quadra" . Há um caso que ajuda a melhor iluminar o assunto. No inventário de 1855 da fazenda das Antinhas (Bananal, São Paulo), com um total de 137 escravos, anotou-se a existência de " um quadro de senzalas com trinta lanços" 6. Por si só, esse registro pouco esclarece, mas há uma pintura a óleo dessa propriedade, composta duas décadas após a realização do inventário, que muito auxilia a compreensão do arranjo arquitetônico (Figura 4).


A disposição das senzalas em L, com as portas avarandadas e voltadas ao terreiro, é bem evidente ao fundo da imagem. A casa de vivenda localiza-se à direita, sendo que um muro a separa do terreiro. Do lado oposto ao da senzala, há mais uma construção em linha (possivelmente as tulhas com seis lanços, como indica o inventário de 1855). O que mais chama a atenção, no entanto, é o fato de o conjunto ser fechado: os vazios entre os edifícios são preenchidos com grades altas em balaústre, sendo que o único acesso ao terreiro – e às senzalas – é dado por um portão, visível na parte inferior esquerda da imagem.

Uma outra imagem, do mesmo período e da mesma região, é ainda mais esclarecedora quanto ao arranjo arquitetônico da senzala em quadra. Refiro-me à fazenda Boa Vista, pertencente a Luciano José de Almeida, um notável cafeicultor de Bananal, dono de mais de 800 escravos quando de sua morte em 1854. Em seu inventário, há referência a dois conjuntos de senzalas em quadra na fazenda Boa Vista, um com 49 e outro com 60 lanços7. Observando-se a pintura a óleo dessa propriedade, percebe-se claramente qual a disposição das duas quadras. A primeira, com 60 lanços mais tulhas e engenho (localizados na parte superior direita do terreiro), localizava-se em frente à casa de vivenda; a segunda, apenas com os lanços das senzalas, encontrava-se atrás. Na quadra frontal, nota-se novamente a existência de um único portão de entrada; todas as portas dos lanços da senzala, por sua vez, voltavam-se para o terreiro (Figura 5).


As senzalas em quadra, enfim, caracterizavam-se por seu isolamento, garantido por meio de sua disposição retangular, pelos compartimentos de habitação dos cativos que se comunicavam apenas com o terreiro, pela inexistência de janelas, pelos muros altos ou cercas em balaústres e pela entrada única fechada com portão. O estado atual das pesquisas indica que essa solução arquitetônica foi uma disposição específica do Vale do Paraíba cafeeiro entre as décadas de 1840 e 1880, pois, com exceção de algumas grandes fazendas cafeeiras do Centro-Oeste paulista, não há registros de seu emprego em outras regiões escravistas de plantation no Brasil oitocentista8. As explicações que os estudiosos fornecem para sua adoção apontam para a herança da arquitetura rural do norte de Portugal. Nessa tradição, esclarece Carlos Lemos (1999, p.29), a disposição dos edifícios em torno de um terreiro,

com os cômodos de serviço à volta, constitui a peça-chave da circulação, servindo não só de distribuição como de local de manipulação dos gêneros agrícolas. É onde a família portuguesa trabalha com os raros empregados, é o espaço muito bem definido e acessível por um só portão.

O terreiro à moda portuguesa, no Brasil, teria sido aplicado de início em Minas Gerais. Na passagem do século XVIII para o XIX, com a montagem da cafeicultura no Vale do Paraíba, o modelo teria sido disseminado por reinóis ou colonos vindos de Minas e adquirido sua configuração específica nas fazendas de café da região. Nessa interpretação, a inscrição das senzalas no terreiro da fazenda responderia antes à " necessidade de controle sobre as atividades no interior do quadro do que a formas rigorosas de confinamento" da mão-de-obra escrava (CARRILHO, 1994, p.125).

Há, no entanto, uma outra explicação possível para a adoção das senzalas em quadra no Vale do Paraíba, que o caso cubano torna inteligível. Até a terceira década do século XIX, a moradia escrava típica das plantations cafeeiras e açucareiras de Cuba foi o bohío (palavra de origem taino), que mesclava elementos da arquitetura indígena com o padrão ioruba de moradia e não tinha qualquer interferência senhorial (VLACH, 1990, p.125-127; WATTS, 1992, p.106). Em meados dos anos 1820, algumas das autoridades coloniais e dos senhores de escravos cubanos passaram a defender a adoção de um novo modelo de vivenda para os escravos. Tal foi o caso de Cecilio Ayllon, governador, militar e político de Matanzas. Em 1825, a região foi agitada por uma série de revoltas escravas, notadamente em Guamacaro. Diante disso, Ayllon, " convencido da importância e necessidade de que seja uniforme o regime e governo interior das fincas rurais para afiançar melhor a segurança dos campos" , consultou vários senhores da região sobre as medidas mais adequadas a serem tomadas para garantir a disciplina escrava. O resultado final foi um projeto para um código negro que recebeu o título de Reglamento de esclavos9.

Ayllon dividiu seu regulamento em quatro partes: medidas de segurança, obrigações dos senhores, normas penais e vigilância. A parte que mais interessa para os fins deste artigo é a primeira, que cuidou do controle disciplinar da escravaria. Seu princípio básico consistiu na incomunicabilidade total dos escravos com o mundo externo às plantations. Sendo assim, recomendava-se proibição expressa da entrada de homens de cor livres e brancos desconhecidos na plantation para a venda de gêneros aos cativos, bem como o pernoite de pessoas estranhas nos alojamentos dos escravos. Após a oração noturna das nove horas, o portão da finca seria trancado e os escravos impedidos de circularem dentro da propriedade. Os vigilantes brancos fariam de duas a três rondas noturnas, verificando se todos os escravos se encontravam descansando nas senzalas. Os instrumentos agrícolas de ferro seriam trancados à noite, e as armas de fogo pertencentes aos proprietários e brancos permaneceriam sempre guardadas e seguras. Em três anos, todas as propriedades com mais de 30 escravos deveriam substituir os bohíos independentes por senzalas de alvenaria, em edifício único, com alas separadas por sexo com uma só porta e trancas de ferro (AYLLON, 1825, p.1-6).

O código de Ayllon pode ser entendido como uma das primeiras propostas formuladas em Cuba para a construção de um novo tipo de moradia escrava, capaz de aumentar o controle espacial dos trabalhadores. Honorato Bernado de Chateausalins, médico de origem francesa, certamente ajudou a difundir a nova planta arquitetônica proposta por Ayllon. Nascido em 1791, e formado em medicina pela prestigiosa Universidade de Paris, Chateausalins foi contratado pela família Drake, no início da década de 1820, para cuidar dos escravos de suas plantations cafeeiras em Cuba, na região de Matanzas. Chateausalins logo se tornou membro da Sociedade Econômica dos Amigos do País de Havana, e, calcado em sua experiência como médico de escravos, publicou, em 1831, El vademecum de los hacendados cubanos. O livro obteve grande sucesso entre os senhores de escravos cubanos, tendo sido reimpresso em 1848, 1854 e 1874.

Novamente, interessam aqui as orientações de Chateausalins a respeito da moradia escrava. Suas recomendações foram idênticas às do Reglamento de Ayllon, o que parece indicar a existência de um consenso a respeito do assunto, entre os senhores de Matanzas, a partir da década de 1830. Em substituição aos bohíos de barro cobertos com palhas,

sempre aconselharei que se fabriquem em forma de barracão com uma só porta aberta, cuidando o administrador ou feitor de recolher a chave pelas noites. Cada quarto que se fabrique, não terá outra entrada que uma só portinhola, e ao lado uma janela fechada com balaústres para que o negro não possa de noite comunicar-se com os outros (CHATEAUSALINS, 1848, p.14).

Como se vê, Chateausalins empregou um novo vocábulo – barracão – para se referir à moradia escrava que estava prescrevendo. Sua proposta e a de Ayllon para a construção de novas senzalas em substituição aos antigos bohíos, no entanto, não representava ainda uma ruptura significativa, pois se tratava de uma variação do edifício em linha prescrito pelos autores caribenhos ingleses e franceses de fins do século XVIII. A virada veio na década de 1840 e, como sugeriu o historiador Juan Perez de la Riva (1983, p.16-30), conectou-se diretamente ao aumento da resistência escrava. Nessa década, começou a ser erigido nos engenhos cubanos um novo tipo de moradia escrava, que se afastava profundamente dos padrões anteriores.

Para apreender essa novidade arquitetônica, cabe examinar algumas das publicações agrícolas cubanas de meados do século XIX que procuraram sistematizá-la. Tal é o caso do manual de Antonio de Landa, impresso em 1857 e reeditado com acréscimos em 1866, que pode ser tomado como o termo lógico de mais de 40 anos de reflexão sobre a gestão escravista em Cuba. Landa trabalhou 20 anos como administrador de engenhos na região de Matanzas, o centro da economia açucareira cubana até a década de 1860; seu livro, destinado à gestão de plantations pertencentes a proprietários absenteístas, pretendia apontar os erros mais comuns cometidos pelos administradores, indicar os meios para evitá-los e instruir os neófitos nos segredos da função.

A proposta de Landa para a moradia escrava seguiu claramente a inovação arquitetônica que apareceu na região de Matanzas na década de 1840, o barracão de pátio. Tratava-se de uma construção de alvenaria, em quadrilátero fechado em torno de um pátio e com uma única entrada com portão de ferro. Todos os cubículos onde dormiriam os escravos (que passaram a ser chamados de bohíos, termo anteriormente empregado para designar as choças independentes dos cativos) dariam para o pátio interno, sendo que cada um teria uma pequena janela gradeada para a entrada de ar e luz, também ela voltada para o pátio. Os bohíos seriam trancados após o toque de recolher, assim como o portão de ferro que dava acesso ao pátio. Os solteiros (escravos e escravas) ocupariam bohíos separados, enquanto os casais com filhos teriam bohíos específicos. No meio do pátio do barracão, haveria uma cozinha telhada, com no mínimo 30 varas de largura e sete de comprimento e mesas de tábuas, para os escravos lá comerem nos dias de chuva. Ao lado da cozinha, deveria ser aberto um poço para servir toda a escravaria; se isso não fosse possível, bastaria um tanque ladrilhado, abastecido por um canal pelo poço mais próximo. Em uma das faces internas do barracón, haveria ainda uma prisão, com os troncos destinados à punição dos escravos (LANDA, 1866, p.30-31)10.

No manual de Landa, não foram inseridas imagens, mas outras publicações do período apresentaram plantas arquitetônicas detalhadas do barracão de pátio. Tal foi o caso de uma cartilha anônima publicada em 1862, que indicava em uma gravura bastante precisa quais seriam as dimensões ideais do edifício, suas divisões internas e externas e o desenho da fachada, seguindo, em linhas gerais, os mesmos elementos que haviam sido prescritos por Landa: entrada única (15), compartimentos separados para casados (9) e solteiros (10, 13), cozinha no centro do pátio (1) (Figura 6).


Tal como a senzala em quadra, que foi empregada apenas nas grandes fazendas de café do Vale do Paraíba, os barracões de pátio foram construídos sobretudo nos grandes engenhos mecanizados e semimecanizados de Cuba, montados a partir da década de 1840. Nessa época, os senhores cubanos mais capitalizados começaram a adotar técnicas que vinham sendo criadas na Inglaterra e França para o fabrico do açúcar de beterraba. Em substituição ao terno de caldeiras abertas, passaram a empregar caldeiras a vácuo, que aumentavam enormemente a produtividade do engenho e reduziam em muito a demanda de trabalho e combustível. As novas caldeiras aproveitavam a energia a vapor que era gerada para movimentar a moenda horizontal. Aliás, nesse período, um cubano inventou esteiras móveis que interligavam diferentes conjuntos de moendas horizontais, aumentando consideravelmente a capacidade de moagem de cana dos engenhos. No que se refere ao preparo final do produto, as centrífugas eliminaram o difícil e prolongado processo de purga necessário para a cristalização do açúcar. Por fim, não se pode esquecer da construção, a partir de 1837, da malha ferroviária cubana, que viabilizou o estabelecimento de engenhos afastados dos portos marítimos. As ferrovias, além de diminuírem os custos de transporte dentro da ilha, permitiram a ampliação da escala de produção das unidades açucareiras: a construção de trilhos dentro das maiores plantations facilitava e acelerava o transporte de cana para as moendas11.

A combinação do emprego das moendas horizontais movidas a vapor, das caldeiras de múltiplo efeito a vácuo, das centrífugas e das ferrovias deu origem aos engenhos açucareiros completamente mecanizados de Cuba. Essas unidades se destacaram no contexto do escravismo moderno não apenas por sua tecnologia avançada, mas igualmente por sua força de trabalho numerosa: alguns desses engenhos chegaram a empregar de 400 a 500 escravos, afora uma quantidade considerável de collies chineses em regime de servidão temporária.

Para se ter uma idéia da inscrição dos barracões de pátio no espaço dos engenhos mecanizados, o registro mais adequado é a obra de Justo Cantero e Eduardo Laplante, que, em meados da década de 1850, apresentou um notável panorama das maiores unidades produtivas açucareiras de Cuba. Na planta reproduzida como Figura 7, que representa o engenho Armonía, vê-se que o centro do espaço é ocupado pela casa das moendas e das caldeiras, complementada, à direita, pela casa de purgar. Abaixo, localiza-se a casa de vivenda senhorial, ladeada à direita pela serralharia e à esquerda pela enfermaria dos escravos. O barracão se encontra isolado, à esquerda do conjunto.


Portanto, ao contrário da senzala em quadra brasileira, que se articulava de forma estreita à casa senhorial por meio do terreiro de café, o barracão de pátio cubano era erigido como um edifício autônomo e afastado da casa de vivenda (Figura 8). Outra diferença importante se encontrava no sistema construtivo: enquanto os barracões cubanos eram de alvenaria, as senzalas brasileiras adotavam a técnica da taipa de mão. Essas distinções, entretanto, não escondem o que havia de comum aos dois arranjos de moradia escrava: a entrada única com portão, as trancas noturnas, os cubículos sem janelas, as pequenas frestas gradeadas, as portas todas voltadas ao pátio ou ao terreiro. Tratava-se, enfim, de uma solução espacial que cerceava brutalmente a autonomia escrava. Esses pontos em comum, além do mais, sugerem a existência de uma mesma matriz arquitetônica para a construção das senzalas em quadra no Brasil e dos barracões de pátio em Cuba.


Barracões africanos, tráfico ilegal e moradia escrava

Há um bom tempo os historiadores cubanos assinalam que o vocábulo barracón foi tomado de empréstimo das práticas do tráfico transatlântico de escravos. Na costa africana, a palavra designava as construções onde os cativos eram confinados antes do embarque nos navios negreiros. Algumas descrições contemporâneas ajudam a se ter uma idéia de sua arquitetura. Em sua memória sobre o tráfico de escravos em Angola, composta em 1793 e publicada em 1812, Luís Antônio de Oliveira Mendes (1977, p. 47) anotou que, ao chegarem ao litoral, os cativos eram " metidos em um pátio seguro, de altas paredes, que não podem pela mesma escravatura ser saltadas, ficando ali ao tempo; e de noite há um telheiro, ou armazém também térreos, aonde é recolhida" . Com efeito, os barracões – ou quintais, expressão também utilizada pelos portugueses em Angola – caracterizavam-se por altos muros, erigidos em alvenaria ou com fortes paliçadas unidas por lâminas de ferro, e galpões dentro do cercado para abrigar os cativos das variações climáticas, sendo todo o conjunto vigiado por homens fortemente armados. Nos maiores edifícios, podiam ser acondicionados de quatro a seis mil escravos; nos menores, eram alocados de cem a seiscentos escravos12.

Barracões de escravos com tais características não foram exclusivos da costa angolana. O comandante da marinha inglesa Sir Henry Huntley, responsável pelo combate ao tráfico ilegal na costa da África ocidental entre 1831 e 1838, registrou as seguintes observações a respeito dos barracões que o célebre traficante baiano Francisco Félix de Souza (o Chachá) mantinha no reino do Daomé:

perto da residência de De Souza estão os barracões ou depósitos de escravos, que são grandes espaços descobertos rodeados de muros ou de fortes paliçadas, no interior dos quais estão os abrigos para os negros no caso de mau tempo, durante o extremo calor do dia ou durante a noite. Ali estão freqüentemente reunidas numerosas centenas de jovens, de adultos, de homens e de mulheres (apud VERGER, 1987, p. 464).

Nada diferia os barracões de Chachá de seus congêneres em Luanda e Benguela, o mesmo podendo ser afirmado sobre os numerosos depósitos que traficantes hispano-cubanos como Pero Blanco e Julian de Zulueta mantinham no Senegâmbia e no Golfo de Guiné (FRANCO, 1980, p.169, 178, 182, 200, 201). Além do mais, os barracões do tráfico de escravos guardaram muitas semelhanças formais e funcionais com os fortes e feitorias que os europeus estabeleceram desde o século XVI ao longo do litoral da África Ocidental. A gravura inserida no livro do padre francês Jean Baptiste Labat, referente às feitorias portuguesa, inglesa, francesa e holandesa em Savi, Daomé, bem o demonstra (Figura 9). Não obstante suas variações, barracões, fortes e feitorias eram compostos por muros altos e vigiados, com uma única entrada, e buscavam controlar de forma estrita enormes grupos de escravos antes do embarque nos navios negreiros.



Foi esse o princípio que governou a construção das senzalas em quadra do Vale do Paraíba e dos barracões de pátio de Cuba. A rigor, as vivendas escravas americanas aqui analisadas representaram uma reelaboração dos barracões da costa africana, e são as circunstâncias da adoção dessas soluções de moradia escrava que permitem falar em filiação arquitetônica direta.

No contexto da " era das Revoluções" , o escravismo atlântico passou por uma alteração estrutural. O surgimento do movimento antiescravista, a crise do sistema colonial, a industrialização e a conseqüente expansão do mercado mundial de artigos tropicais trouxeram um enorme impacto para a escravidão negra nas Américas. As modificações ocorridas na economia internacional na passagem do século XVIII para o XIX impuseram aos senhores de escravos a necessidade do aumento constante da produtividade do trabalho de seus cativos, sob o risco de serem excluídos do mercado mundial. Isso levou, por um lado, à crise de antigas regiões produtoras como as Antilhas inglesas e francesas, acuadas por movimentos abolicionistas metropolitanos; por outro, à especialização produtiva das regiões escravistas das Américas que refundaram a instituição a partir de novos arranjos políticos. Assim, o arranque da cafeicultura brasileira, com a elevação de sua produtividade, colocou em cheque a cafeicultura cubana; a especialização dos produtores escravistas de Cuba na economia açucareira, por sua vez, foi um dos fatores centrais da crise da produção de açúcar do Brasil (TOMICH, 2004).

De todo modo, o motor do crescimento da produção escravista brasileira e cubana na primeira metade do século XIX foi, sem sombra de dúvidas, o tráfico transatlântico de escravos, que cresceu de forma inaudita para essas duas regiões após 1808. Nessa data, além de o comércio negreiro transatlântico ter se tornado monopólio português e espanhol (no ano anterior, o tráfico para as colônias inglesas e para os Estados Unidos havia sido abolido), Brasil e Cuba se conectaram diretamente ao mercado mundial, por conta da abertura dos portos brasileiros e do fato de a Espanha ter perdido, no contexto das guerras napoleônicas, o controle comercial sobre suas possessões americanas. No entanto, após 1815, Portugal e Espanha tiveram que fazer frente a uma fortíssima pressão diplomática da Inglaterra pela abolição do tráfico transatlântico de escravos. Em 1820, os ingleses conseguiram arrancar dos espanhóis a proibição legal do comércio negreiro, o mesmo ocorrendo em 1831 com os brasileiros, que, após a independência, herdaram de Portugal todo o problema político a respeito do assunto (BLACKBURN, 2002).

Não obstante esses decretos que aboliam o tráfico nas letras da lei, o comércio negreiro brasileiro e cubano, entre as décadas de 1820 e 1850, prosseguiu e cresceu na ilegalidade, assim como as gestões inglesas sobre os impérios do Brasil e da Espanha para que o encerrassem de forma definitiva. A resposta brasileira e hispano-cubana, por sua vez, foi relativamente uniforme, o que demonstra a unificação política, geográfica e operacional do tráfico negreiro transatlântico no século XIX. No plano diplomático, as autoridades brasileiras e hispano-cubanas recorreram a uma mesma argumentação e estratégia. No plano concreto do tráfico, os mercadores brasileiros e hispano-cubanos não só atuaram de forma conjunta nas mesmas regiões da costa da África (zona congo-angolana e costa da Mina; a exceção foi a costa da Alta Guiné, na qual agiram apenas os hispano-cubanos) como elaboraram novas modalidades de gestão do negócio, com operações articuladas e sofisticadas que com freqüência envolviam praças comerciais em três continentes distintos (Rio de Janeiro, Salvador, Havana, Nova Iorque, Londres, Sevilha, Lisboa, afora os diversos portos africanos) e buscavam burlar a vigilância naval inglesa (VERGER, 1987; CONRAD, 1985; ELTIS, 1987; TAVARES, 1988; AMARAL, 1999; SILVA, 2004).

Nessas operações, os barracões africanos desempenharam grande importância. A forma arquitetônica havia sido aplicada desde o século XVI para controlar o risco de revoltas de escravos ainda em solo africano. Com o endurecimento da política antiescravista pela Inglaterra, que montou uma esquadra sediada em Serra Leoa destinada exclusivamente ao combate e à captura dos negreiros, os barracões adquiriram uma outra função, qual seja, a de apressar o ritmo do circuito do tráfico. Como assinala Robin Law (1998, p.102)

o armazenamento de escravos [em barracões] em antecipação ao embarque, apesar de ser realizado antes, tornou-se uma prática bem mais comum na era do tráfico ilegal, dada a necessidade de acelerar a partida dos navios negreiros para minimizar os riscos de interceptação.

A sofisticação dos negócios negreiros não ocorreu apenas no lado africano do Atlântico. Em Cuba e no Brasil, os traficantes diversificaram consideravelmente seus investimentos ao longo do século XIX. Uma parcela considerável das fortunas cafeeiras do Vale do Paraíba teve origem no tráfico de escravos. Na colônia espanhola, a imbricação entre o setor agroexportador e o tráfico transatlântico foi ainda mais profunda: as ferrovias – que permitiram a ampliação da fronteira açucareira – e os grandes engenhos mecanizados foram em grande parte financiados com capitais amealhados no tráfico ilegal de africanos. Dois exemplos são particularmente significativos para o que se está discutindo aqui: Luciano José de Almeida, proprietário da fazenda Boa Vista, envolveu-se diretamente com o tráfico ilegal, como comprova seu papel no " caso do Bracuhy" , em 1852; Miguel de Aldama e José Luis Alfonso, donos do engenho Armonía, tinham participação ativa no comércio negreiro transatlântico para Cuba13.

Nas décadas de 1830 e 1840, diante do aumento da pressão inglesa, da aceleração do tráfico ilegal, do incremento da exploração da força de trabalho para responder à demanda do mercado mundial e do aumento da resistência escrava – a revolta dos Malês e a conspiração de La Escalera, eventos fundamentais para a conformação da consciência senhorial brasileira e cubana no século XIX, ocorreram exatamente nesse período (REIS, 2003; PAQUETTE, 1988) –, os fazendeiros de café e os senhores de engenho no Brasil e em Cuba se viram ante a necessidade de aumentar o controle sobre seus cativos. Para tanto, o modelo do barracão africano, uma solução arquitetônica bastante familiar para alguns dos grandes proprietários escravistas brasileiros e cubanos, muito tinha a oferecer.

Na passagem pelo Atlântico, o modelo recebeu modificações relevantes. Enquanto os barracões foram a norma na costa africana, as senzalas em quadra e os barracões de pátio encontraram pouca difusão no Brasil e em Cuba. Apenas os grandes engenhos cubanos mecanizados e semimecanizados os adotaram, o mesmo ocorrendo no Vale do Paraíba, onde somente fazendas com mais de 100 escravos – que não eram a regra, mas sim a exceção – o fizeram. A permanência dos cativos nos barracões africanos era breve, os cuidados com a higiene do local, mínimos, e o agrilhoamento, bastante comum; além do mais, para acolher os escravos das variações climáticas, havia apenas pequenas coberturas feitas de palha. Já as senzalas em quadra e os barracões de pátio eram concebidos como moradias permanentes. Por essa razão, a preocupação com a higiene era bem maior, os materiais de que eram feitas, mais consistentes, e, acima de tudo, os cubículos que abrigavam os escravos pressupunham a existência de uma comunidade com relações familiares estabelecidas.

As diferenças, entretanto, não escondem a filiação: a forma retangular, o muramento, a entrada única e a supervisão estrita estiveram presentes nos dois lados do Atlântico14. O impulso básico para a adoção de um modelo arquitetônico do tráfico transatlântico nas plantations cafeeiras e açucareiras do Brasil e de Cuba foi a militarização da moradia escrava, vista como um meio capaz de ajudar a conter a escravaria em um contexto externo e interno profundamente tenso. Nesse sentido, as senzalas em quadra e os barracões de pátio deram continuidade à normatização dos autores antilhanos de fins do século XVIII, mas de um modo muito mais acentuado e explícito.

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-47142005000200006&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt



Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material - USP

Nenhum comentário:

Postar um comentário