Estrada de Ferro Central do Brasil faz 150 anos
POR HELENA GUIMARÃES CAMPOS
"Sportsmen" do Athletico Mineiro Foot-Ball, o "Galo", tirada na estação de Santos Dumont, da Central do Brasil, quando eles seguiam em viagem para Juiz de Fora. Todas as práticas culturais que exigiam deslocamentos ligavam-se à ferrovia
Lá estava o imperador, na plataforma da estação, cercado de autoridades, de empresários, comerciantes, da nobreza tupiniquim e da população para a inauguração da Estrada de Ferro Mauá. Mal sabia D. Pedro II que aquele fato inédito iria adquirir ares de rotina, pois, daquele histórico 30 de abril de 1854 até a queda de seu Império, mais 65 ferrovias seriam inauguradas, muitas delas contando com o seu incentivo e a Sua Majestosa presença para abrilhantar as comemorações.
Nenhuma, porém, haveria de lhe ser tão cara quanto aquela que o homenageara, tomando-lhe de empréstimo o nome. Trata-se da Estrada de Ferro D. Pedro II (EFDPII), inaugurada em 29 de março de 1858 e que, neste ano de 2008, comemora seus 150 anos. Lamentavelmente, para o regente, os ventos republicanos varreriam a demonstração de fi delidade e a homenagem, mudando o nome da ferrovia para Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB).
Hoje com um século e meio de vida, a Estrada de Ferro Central do Brasil surgiu com o nome de Pedro II, mas sofreu à descaracterização após a Proclamação da República. A Estrada veio com a premissa de ligar todas as regiões do Brasil
O Imperador era presença absoluta nas inaugurações de novas vias. Na imagem, inauguração do Túnel da Mantiqueira na Estrada de Ferro que interligava o Rio de Janeiro a Minas Gerais, junto da Imperatriz Tereza Cristina
Em 1987 já se notavam os rumos da ferrovia no Brasil: trens exclusivamente para cargas; passageiros, só em trenzinhos turísticos, como este que aparece no detalhe (circula entre São João del Rei e Tiradentes)
MODERNIDADE FORA DOS TRILHOS
A maior parte da população brasileira só se lembra da ferrovia quando sofre, na pele, os impactos de uma matriz de transporte que privilegia o modo rodoviário.
Em meio ao calor escaldante ou às chuvas torrenciais, muitas pessoas se lembram da contribuição da absurda frota de veículos rodoviários do país para a poluição atmosférica que agrava o efeito estufa. Mas poucas são as que atentam para as vantagens ambientais de uma maior participação das ferrovias nos transportes.
O que confere identidade à estrada de ferro é o trem de passageiros que, no Brasil, praticamente não existe mais
Nas grandes cidades, só os irritantes congestionamentos é que são capazes de levar a população a questionar a insignifi cante quilometragem de nossos sistemas de transportes urbanos sobre trilhos, sejam eles subterrâneos ou de superfície. Geralmente, é após os feriadões, divulgados os macabros balanços do número de acidentes em rodovias, que os trens são lembrados como solução para desafogar as estradas, retirando-lhes parte do pesado tráfego de caminhões. E, mesmo nesses casos, difi cilmente há quem pense em como seria bom se pudesse substituir seu automóvel pelo trem de passageiros. Então, basta assistir à propaganda de um novo modelo da indústria automobilística para os sonhos de consumo apagarem da lembrança qualquer idéia ligada ao transporte ferroviário.
A razão para esse descaso é simples: a ferrovia não faz parte da vida do brasileiro. O que confere identidade à estrada de ferro é o trem de passageiros que, no Brasil, praticamente não existe mais. Dos trens de carga, a população mal dá notícia. Quando o faz é para reclamar do barulho ou da espera que eles provocam nas passagens de nível. Todavia, se hoje é essa a nossa realidade, há pouco mais de quarenta anos, nenhum setor da vida social prescindia da ferrovia e não havia história de vida que, diretamente ou indiretamente, não se ligasse a ela.
Para melhor avaliarmos esse protagonismo da estrada de ferro no passado, nada melhor que recuperar um pouco da história da Estrada de Ferro Central do Brasil, a mais importante de nossas ferrovias.
A EPOPÉIA DA CENTRAL
Terceira ferrovia do Brasil, inaugurada em 1858 - menos de dois meses após a Estrada de Ferro Recife a São Francisco -, a EFDPII nasceu com duas fi nalidades: atender aos interesses da cafeicultura e promover a integração do território.
Os benefícios para os cafeicultores do Vale do Paraíba foram amplos. Além da valorização de suas propriedades, eles se benefi ciaram com as tarifas ferroviárias, mais em conta que os custos das tradicionais tropas de burros. Como a Lei Eusébio de Queiroz, de 1850, proibira o tráfi - co oceânico de escravos, a ferrovia liberou seus cativos, antes ocupados nos serviços das tropas, para os da lavoura. Ela também contribuiu para assegurar a mão-de-obra escrava para os fazendeiros, pois havia lei proibindo o uso de escravos na sua construção e operação. Claro que, no país do "jeitinho", a lei não foi cumprida à risca, pois há documento que comprova a presença de escravos a serviço de engenheiro inglês que realizou estudos para determinar o traçado da ferrovia em terras fl uminenses. Contudo, se o trabalho compulsório existiu, não foi regra.
À época da inauguração da EFDPII havia uma nítida preocupação com a integração do território brasileiro e, certamente, para isso contribuíram as turbulências políticas e sociais do período de consolidação do Estado brasileiro. Uma das principais questões em pauta era a introdução da navegação a vapor na Bacia do São Francisco.
Por iniciativa do Segundo Império, fez-se o mapeamento dos Rios das Velhas e do São Francisco. De 1852 a 1854, o alemão Halfeld explorou a Bacia do São Francisco, de Pirapora até a foz, no Atlântico. Complementando o seu trabalho, o francês Liais estudou o Rio São Francisco, da nascente até Pirapora, e pesquisou o seu afl uente, o Rio das Velhas, de Sabará à foz. As conclusões da pesquisa de Liais foram publicadas em 1865, na França, em um livro que continha contribuições de Halfeld e de técnicos brasileiros. Já o relatório que Halfeld fez de seus trabalhos data de 1860. Com base nesses estudos é que as condições de navegabilidade seriam avaliadas e introduzidos os vapores. Foi, também, com vistas à integração ferro- fl uvial que foi concebida a EFDPII.
A terceira ferrovia do Brasil, inaugurada em 1858, nasceu com duas fi nalidades: atender aos interesses à cafeicultura e promover integração
Pelos termos da concessão para sua construção e operação, a D. Pedro II deveria iniciar-se na cidade do Rio de Janeiro e estender sua linha principal - Linha do Centro - até o Rio São Francisco, em Minas Gerais. Além disso, deveria lançar outra linha até a cidade de São Paulo. Ora, tais exigências não faziam mais do que reforçar o histórico traçado das antigas estradas coloniais - as estradas reais, determinando a substituição das centenárias tropas por uma modalidade de transporte mais efi ciente: de maior capacidade e mais veloz. E não poderia ser diferente, uma vez que a ferrovia sobrevive dos serviços de transporte de passageiros e de cargas; logo, as áreas tradicionalmente ocupadas e com produção estruturada seriam as servidas pela estrada de ferro.
A Linha do Centro, partindo da Corte, precisou vencer a Serra do Mar e a Serra da Mantiqueira para alcançar Minas Gerais. O fato mais marcante da história da construção da EFDPII, sem dúvida, foi a quebra de bitola em Conselheiro Lafaiete, ou seja, a mudança da largura dos trilhos. Até atingir essa localidade mineira, a estrada de ferro fora construída em bitola de 1,60 metro. A adoção dessa bitola deveu-se ao contrato com empreiteiros ingleses para a construção dos primeiros quilômetros. Como, à época, a Inglaterra já unifi cara a bitola em seu território, adotando a medida de 1,435 metro, para não perder dinheiro, os ingleses construíram, mundo afora, ferrovias de diversas bitolas para aproveitar sua "sucata", isto é, seus equipamentos ferroviários fora do padrão.
Construído durante o Império, o Pontilhão de Raposos, sobre o Rio das Velhas, foi inaugurado no período republicano, ostentando ao alto as iniciais EFDPII
Primeira Estação de Sabará, em 1930. A estação, inaugurada em 1891, foi demolida na década de 1970, para a construção de outra adequada aos carros de aço carbono dos trens de subúrbio
Foi a necessidade de economia que levou à mudança de bitola, a partir de então, de 1 metro. As conseqüências desse fato foram enormes, pois trens que circulam em uma linha não o fazem na outra. Se houve uma economia com aterros, pontes, pontilhões, túneis, trilhos, dormentes, lastro, locomotivas, vagões, carros de passageiros e outros equipamentos, mais baratos, os prejuízos com baldeações e com a impossibilidade de integrar as duas redes ferroviárias foram signifi - cativos e determinantes para a história da estrada de ferro que, de Conselheiro Lafaiete até o Rio São Francisco, seguiu em bitola métrica.
PERÍODO REPUBLICANO
A República veio quando o tráfego da EFDPII estava aberto até a cidade de Itabirito. A partir de então, como EFCB, a ferrovia prolongou suas linhas até alcançar Pirapora, em 1910. Como havia planos de estender os trilhos até Belém, no Pará, construiu-se a bela ponte Marechal Hermes sobre o São Francisco. Todavia, só mais dois quilômetros de linhas foram assentados, até Buritizeiro.
Mais tarde, os trilhos foram estendidos de Corinto a Montes Claros (1926) e, depois, a Monte Azul (1947), na divisa com a Bahia. Dada a relevância estratégica e a extensão quilométrica dessa linha, ela passou a ser considerada parte da Linha do Centro, fi cando o trecho Corinto-Pirapora como ramal.
O ramal de São Paulo foi parcialmente construído pela EFDPII, a partir de Barra do Piraí (1864), passando por Volta Redonda (1871), Barra Mansa (1871) e Cachoeira Paulista (1875). Em 1891, encampando a Estrada de Ferro São Paulo- Rio de Janeiro com a qual se entroncava nessa última estação, a Central do Brasil completou a ligação com a capital paulista.
Mais tarde, os trilhos foram estendidos de Corinto a Montes Claros (1926) e, depois, a Monte Azul (1947), na divisa com a Bahia. Dada a relevância estratégica e a extensão quilométrica dessa linha, ela passou a ser considerada parte da Linha do Centro, fi cando o trecho Corinto-Pirapora como ramal. O ramal de São Paulo foi parcialmente construído pela EFDPII, a partir de Barra do Piraí (1864), passando por Volta Redonda (1871), Barra Mansa (1871) e Cachoeira Paulista (1875). Em 1891, encampando a Estrada de Ferro São Paulo- Rio de Janeiro com a qual se entroncava nessa última estação, a Central do Brasil completou a ligação com a capital paulista.
NOS TRILHOS DA URBANIZAÇÃO
Pensar a relação da ferrovia com a urbanização não é tarefa muito difícil, pois a viabilidade econômica da estrada de ferro dependia dos transportes, o que orientava os trilhos para áreas com tradição no povoamento e na produção. Para a Central do Brasil, era conveniente buscar Minas, a província mais povoada e com maior número de núcleos urbanos do Império, e o café do Vale do Paraíba, sua principal carga durante décadas.
A Central do Brasil, com seu traçado coincidente com o das estradas coloniais, obrigatoriamente serviu aos antigos núcleos urbanos desses trajetos. Na maioria deles, limitou-se a tangenciar seus subúrbios, fi cando um pouco afastada dos centros, de ocupação inicial. Esse é o caso, em terras mineiras, de Sabará, Ouro Preto, Itabirito, Santa Bárbara, Caeté, Diamantina e outras cidades surgidas de núcleos mineradores. Também Juiz de Fora, Santos Dumont, Barbacena, Conselheiro Lafaiete, Corinto e outras cidades, situadas nos caminhos que levavam às antigas áreas de mineração, receberam a ferrovia em suas periferias.
Com a chegada da EFCB, surgia uma nova dinâmica urbana. A cidade se dividia em duas: a antiga e a nova
Com a chegada da EFCB, surgia uma nova dinâmica urbana. A cidade se dividia em duas: a antiga e a nova. Na primeira, herdada da época colonial, fi cavam as construções, os negócios e as famílias tradicionais; a moderna, surgida da ocupação do entorno da estação e dos demais equipamentos ferroviários por estabelecimentos comerciais e industriais e por moradias populares, passava a concentrar todo o movimento, injetando ânimo no tradicionalismo das velhas urbes.
A CENTRAL DO BRASIL E A CONSTRUÇÃO DA CAPITAL MINEIRA
A primeira estação da capital mineira recebeu o nome de Estação de Minas e foi demolida em 1920, para dar lugar à atual, inaugurada em 1922, e que hoje abriga o Museu de Artes e Ofícios
A primeira Constituição republicana de Minas Gerais, de 1891, determinou a construção de uma nova capital para o Estado. Escolhido o local, o Arraial Belo Horizonte, a Comissão Construtora tratou de viabilizar a chegada dos materiais necessários aos canteiros de obra. Para isso, construiu o ramal Belo Horizonte (BH), ligado à Central do Brasil. O ramal tinha 14 quilômetros e ligava General Carneiro, em Sabará, ao local das obras.
Todo o material importado chegava ao porto do Rio de Janeiro e embarcava na Central do Brasil, seguindo na bitola larga até Conselheiro Lafaiete. Nessa estação, fazia-se a baldeação da carga para os trens de bitola métrica, sob a fi scalização do Estado, que mantinha uma alfândega no local.
O ramal BH foi inaugurado no dia 7 de setembro de 1895, antes de estarem concluídas as belas estações de General Carneiro e da Cidade de Minas, que fi cavam nas suas extremidades. Antes mesmo da inauguração da capital, em 12 de dezembro de 1897, foi criado o transporte de passageiros no ramal.
Durante os trabalhos de construção, houve muitas queixas da comissão sobre os atrasos no transporte do material pela Central, mas o chefe da Comissão Construtora, Aarão Reis - que já ocupara uma diretoria na ferrovia e, de 1906 a 1910, seria o seu presidente -, ao deixar o cargo, antes de inaugurar a Cidade de Minas, declarou que, sem a colaboração da estrada de ferro, não seria possível realizar a grande incumbência que recebera.
Em 1898, o Estado de Minas Gerais vendeu o ramal BH para a União, que o incorporou, a partir de 1.º de janeiro de 1900, à Central do Brasil. Com o passar do tempo, a urbanização "engoliu" o ramal, criando muitos problemas para o pesado tráfego ferroviário de passageiros e de cargas, principalmente oriundas da mineração e da siderurgia. Esse ramal, há décadas, é o grande "gargalo" da malha ferroviária de Minas.
TRENS FAMOSOS DA CENTRAL DO BRASIL
Muitos trens da Central do Brasil fi zeram história e ainda circulam na memória dos passageiros que deles se serviam. Dos luxuosos, os mais importantes foram os noturnos Santa Cruz (Rio de Janeiro-São Paulo) e Vera Cruz (Belo Horizonte-Rio de Janeiro). Com carros de aço inox, esses trens ofereciam muito conforto aos passageiros: carros com cabines, carros com poltronas, carro-restaurante, carro-sala de estar e as famosas ferromoças.
Outro trem inesquecível foi o Trem do Sertão. A partir de 1950, milhares de migrantes nordestinos e mineiros passaram a utilizar esse trem em busca de uma vida melhor nos grandes centros urbanos, principalmente, em São Paulo. Muitos desses migrantes também usavam o trem na viagem de volta para a sua terrinha. Alguns voltavam com dinheiro no bolso, conseguido com o árduo trabalho na lavoura ou na construção civil; muitos, porém, regressavam decepcionados com a vida na cidade grande e tão miseráveis como haviam partido. Do Nordeste a São Paulo, a viagem demorava dias, com baldeações em diferentes trens. O que levava o nome de Trem do Sertão era o que fazia o percurso BH-Monte Azul.
Os trens de subúrbio contribuíram para a formação das regiões metropolitanas. Até as décadas de 1960/1970 eles eram usados por toda a população; depois, fi caram restritos às classes populares, que não podiam arcar com os preços dos ônibus. Os mais conhecidos foram os fl uminenses, que já existiam em 1861 e que foram eletrifi cados em 1937. Precariamente, ainda circulam. Os trens de subúrbio de BH surgiram junto com a capital e foram gradativamente desativados, a partir dos anos de 1980. Na Grande BH, de 1977 a 1979, nas linhas da antiga Rede Mineira de Viação, circularam subúrbios exclusivos para funcionários de uma empresa do Grupo FIAT (BH-Betim).
Na década de 1970, os trens de subúrbio das classes populares tinham carros de aço carbono como o do subúrbio BH-Rio Acima, aqui mostrado na estação de Belo Horizonte. Esses carros eram verdadeiras "latas de sardinha", nos quais a maioria dos passageiros viajava em pé; os poucos que conseguiam se sentar, iam de costas para a paisagem
A praça Rui Barbosa, já foi conhecida como a Praça da Estação pela população mineira
Muitas "pontas de trilho" da Central, cidades que fi cavam nos pontos extremos das linhas e ramais, que antes eram meros povoados sem expressão, com a chegada dos trens acabaram por se tornar referências na sua região. Progrediram como pólos canalizadores da distribuição das riquezas regionais, chegando, muitas vezes, a superar antigas vilas e cidades próximas.
Todavia, a Central também criou povoados e cidades, pois a sua construção, feita por trechos, cortou vários territórios desprovidos de núcleos urbanos. Muitos locais que sediaram as turmas de operários acabaram por se transformar em povoados e cidades.
Muitas cidades nos pontos extremos das linhas e ramais, meros povoados sem expressão, acabaram por se tornar referências regionais
Alguns topônimos criados pelas ferrovias são dignos de nota, como o bairro de Cascadura, no Rio de Janeiro, que foi assim nomeado graças às difi culdades encontradas para o trabalho das picaretas na construção dos primeiros quilômetros da EFDPII. Aliás, com as reviravoltas que dá o mundo, à capital, então republicana, com intenção de redimir ato passado orientado pelas contingências políticas, outra homenagem: em 1925, a estação principal da Central do Brasil era batizada de D. Pedro II, referendando o caráter ilustrado do Segundo Império, tão profícuo em linhas férreas.
Houve também homenagens efêmeras que se perderam face às orientações políticas dos administradores públicos ou aos prestígios e méritos políticos, então em voga. Fica-nos a lembrança da Praça da Estação de Belo Horizonte, que em 1914 era denominada Praça Christiano Otoni, em homenagem ao primeiro presidente da EFDPII, mas que, em 1923, teve seu nome mudado para Praça Rui Barbosa. Hoje, apesar do nome ofi cial, é como Praça da Estação que é conhecida pela população mineira.
Numerosos são os exemplos de contribuição que os engenheiros ferroviários deram às localidades onde trabalharam ou residiram. Em Diamantina, Corinto, Cordisburgo, Pedro Leopoldo e Santos Dumont, por exemplo, há igreja, capela, escolas e até ruas inteiras que foram projetadas e/ ou construídas por ferroviários. Para a melhoria da estrutura urbana, as intervenções promovidas em pátios ferroviários, como muros de arrimo e balaustradas, também foram signifi cativas.
AMOR E REJEIÇÃO
A relação ferrovia-urbanização sempre foi de mão dupla. Inicialmente, só amores e louvores, quando a estrada de ferro e a cidade se cortejavam mutuamente. A ferrovia incrementava a urbanização e a economia municipal, e esses crescimentos geravam novas demandas de transportes de cargas e de passageiros. São muitos os casos em que a relevância da ferrovia se sobrepôs, por longo tempo, à da cidade. Belo Horizonte, por exemplo, precedida pela ferrovia, não escapou dessa lógica.
Com o passar do tempo, diversifi cando suas atividades econômicas e aderindo ao rodoviarismo, as cidades passavam a "desdenhar" da ferrovia, chegando mesmo a considerá-la indesejável. A rejeição, então, tornava-se mútua. Evidente na segunda metade do século XX, essa intolerância encontrava explicação no próprio processo de urbanização e, em alguns casos, de metropolização (geralmente orientados pela ferrovia), que impunham a crescente necessidade de transposição das vias férreas. Daí, proliferarem as passagens de nível, os acidentes, os processos judiciais por indenização e as querelas para defi nir qual entidade deveria arcar com os custos de manutenção e sinalização de passagens de nível e da construção de viadutos, passarelas e passagens inferiores.
Muitas foram as cidades que chegaram a conhecer movimentos sociais organizados que lutaram pela retirada das linhas de centros urbanos. Esse problema, a Central do Brasil enfrentou, dentre outras cidades, em Juiz de Fora e em Belo Horizonte. No caso da capital mineira, bem ou mal, é graças às perdas desse movimento que ela conta hoje com seu tímido metrô de superfície, pois sua construção aproveitou a faixa de domínio da RFFSA, herdeira da EFCB e da Rede Mineira de Viação. Caso contrário, os custos com desapropriações teriam difi cultado ainda mais a implantação do metrô de superfície, o mais racional e democrático meio de transporte para áreas de densa ocupação urbana.
OS TRILHOS DAS MUDANÇAS
A ferrovia foi o grande símbolo de modernidade do século XIX - ou início do XX, conforme o caso - precedendo, em décadas, a eletricidade e o telefone. Na maior parte das vezes, junto com a estrada de ferro chegava o telégrafo, pois ele era um equipamento indispensável para o controle do tráfego ferroviário. Em cada estação havia um telegrafi sta que, além cuidar dos serviços da empresa ferroviária, encarregava-se de atender à população. Em localidades onde havia o telégrafo nacional, era comum o ferroviário ser o mais usado, pois a administração da estrada de ferro mantinha-o sempre em boas condições.
A primeira grande siderúrgica brasileira foi a Belgo- Mineira, de 1921. Ela contava com a Estação Siderúrgica da EFCB, no Ramal de Nova Era, para atendê-la
Uma mudança fundamental provocada pelo trem no modo de viver da população geralmente é atribuída ao ineditismo de sua velocidade
Uma mudança fundamental provocada pelo trem no modo de viver da população geralmente é atribuída ao ineditismo de sua velocidade. Mais rápido do que qualquer modalidade de transporte existente até então, o trem encurtou as distâncias. Contudo, o trem também operou signifi cativa transformação na percepção do tempo. Se antes, viajava-se exclusivamente de dia, em tropas ou carros de boi, passou-se então aos deslocamentos noturnos, pois os trens corriam durante as vinte e quatro horas do dia. Havia mesmo os "noturnos" de passageiros que, assim como muitos trens de carga, circulavam prioritariamente durante a noite.
A percepção do tempo também mudou em função da rigidez de horários das ferrovias, que fez com que o cotidiano fosse marcado pela passagem dos trens: "Lá vai o expresso das dez!"; "O subúrbio das seis ainda não veio"; "O cargueiro de tal lugar já passou?" Não era à toa que o relógio da estação, muitas vezes o único público da cidade, dominava a paisagem, convergindo olhares de todos os cantos. E aquele fi gurão local que sempre chegava atrasado, deixando todos à sua espera? Na era da ferrovia, lá estava ele, de pé na estação, como mero mortal (e bom mineiro!), pois o trem não esperava por ninguém.
Líquido ou sólido, vivo ou inanimado, são ou enfermo, inofensivo ou perigoso, frágil, repugnante... tudo e todos iam de trem, para qualquer lugar - desde que servido pelos trilhos. Os passageiros tinham à sua disposição trens de várias categorias: expressos, noturnos, rápidos, diretos, subúrbios e mistos. Para os mais abastados, a 1.a classe. Para os remediados, a 2.ª. E, nos tempos da EFDPII, para os descalços, a 3.ª classe.
CULTURA E FERROVIA
Cultura e e ferrovia: eis uma via que no passado foi dupla e de bitola larga. A ferrovia desempenhou um papel de destaque na circulação de informações e de produtos culturais e na disseminação de práticas culturais. Graças à regularidade de seu transporte e à abrangência de suas linhas, desde cedo, coube à ferrovia os serviços de correios. Nos trens havia um carro especialmente dedicado ao correio. Parte do malote dos correios era composta por livros, jornais e revistas ilustradas que, produzidos em diferentes locais, eram distribuídos em todo o país. Além desse serviço, a equipagem dos trens ou os próprios passageiros sempre atendiam às solicitações de conhecidos, levando encomendas, notícias e cartas. No caso da Central do Brasil, ela fez mais do que contribuir para a formação de hábitos de leitura, pois manteve escolas ferroviárias que ofereciam, além da educação técnica, a formal para milhares de estudantes.
Mas a ferrovia também favoreceu outras práticas culturais. Sendo o meio de transporte por excelência, pelos trens seguiam estudantes em excursões, romeiros, artistas em tournés, pesquisadores, cientistas, sckathcs de futebol, atletas de diferentes modalidades esportivas, bandas etc. E, de um novo modelo de vestido, chegado de navio de Paris, a teares para de fábricas de tecido, toda mercadoria chegava ao seu destino de trem.
Por outro lado, a produção cultural sempre contemplou a ferrovia. Na literatura, na música, no teatro, na dança, no cinema, nas artes plásticas, no jornalismo, resenhar produções e artistas e autores que elegeram o trem como protagonista ou apenas o incluíram de passagem em suas obras é tarefa praticamente impossível. Ficam, porém, duas referências de peso sobre a Central: a música "Trem das Onze", do sambista Adoniran Barbosa, e o fi lme "Central do Brasil", do cineasta Walter Salles.
Em 1994, a Estação encontrava-se fechada, funcionando apenas como pé-de-estribo (plataforma de embarque/desembarque de passageiros) para usuários dos trens de subúrbio
MONOPÓLIO DO TREM DE CARGA
Enquanto a ferrovia teve o monopólio dos transportes, não havia restrições para a carga. A agricultura, a pecuária, o extrativismo mineral e vegetal, o comércio, a indústria, todos os setores da economia dependiam da estrada de ferro que mantinha uma enorme estrutura de armazéns e de serviços de entrega para atendê-los.
Alguns produtos, contudo, marcaram a história da Central, determinando-lhe mesmo o destino. Além do café, a Central do Brasil celebrizou-se pelo transporte especializado de gado bovino, que durante décadas abasteceu os frigorífi cos cariocas, até que a indústria frigorífi ca se devolvesse nas proximidades das áreas produtoras, principalmente, de Minas Gerais. Contudo, o mais duradouro e volumoso transporte que determinou o perfi l da Central do Brasil foi o minério de ferro. Sem dúvida, é ele o xodó e o vilão da ferrovia brasileira.
A história da exploração das jazidas minerais do Quadrilátero Ferrífero, em Minas, e do parque siderúrgico nacional foi costurada pelas linhas férreas. O Vale do Aço, berço da Vale, sempre contou com a Estrada de Ferro Vitória a Minas para o seu atendimento. Essa ferrovia, exportando o minério de ferro, sempre se destacou das demais por não ser apenas uma estrada de ferro prestadora de serviços de transporte, já que servia aos interesses maiores da Companhia Vale do Rio Doce, uma empresa mineradora. Daí seus altos índices de produtividade e de lucratividade. Essa mesma sorte, porém, não tiveram as antigas linhas da Central do Brasil, que, para se transformarem em "minerodutos", precisaram expulsar os passageiros.
A política de eliminação de trens de passageiros implantada pela RFFSA só se radicalizou com a privatização do setor ferroviário, que licenciou apenas o transporte de cargas. Aos passageiros, hoje, só restam os poucos trens de longo percurso da Vale (Vitória-Minas e Carajás) e os insignifi cantes trenzinhos turísticos, circulando em linhas não operacionais para a carga. Esses, a população local só vê de longe, repletos de turistas, pois os valores cobrados para uma "viagem ao passado", de poucos quilômetros, não cabem no seu orçamento.
Para as poucas comunidades que implementaram ações preservacionistas - negligenciadas pelo poder público e pelas concessionárias - fi ca o consolo das antigas estações transformadas em centros culturais. Pobres "lugares de memória"! Sem uma bilheteria ativa e a plataforma apinhada de passageiros, são como estátuas de cera inanimadas. Ou como um triste cenário para comunidades formadas por "cidadãos de papel" que têm seus direitos culturais dissociados dos econômicos e dos sociais.
HELENA GUIMARÃES CAMPOS é Graduada e especialista em História, Mestre em Ciências Sociais, Autora de dissertação sobre os trens de subúrbio da Grande BH, Co-autora de "História de Minas Gerais" (Editora Lê) e Coordenadora do Núcleo Ferroviário da ONGTrem www. ongtrem.org.br
Revista Leituras da Historia
parabéns. Ótimo recorte sobre a nossa ferrovia disprestigiada por interesses rodoviários e políticos.
ResponderExcluirFantastica reportagem revelando a verdadeira história desta ferrovia. e a convido para ser meu amigo no meu blogger.
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