sexta-feira, 5 de junho de 2009

O maior desenhista do mundo

Esta foi a definição de Jaguar para o caricaturista Belmonte (1896-1947)
Jaguar


Meus tempos de menino, em Santos. Meu pai era do Banco do Brasil, fomos morar lá quando eu tinha seis, sete anos.

Black-out para os submarinos do Eixo não torpedearem minha rua. O vizinho era rico e tinha um carro americano (acho que era um Lincoln Continental) movido a gasogênio. Estudava no colégio dos maristas e no dia 7 de setembro desfilávamos com nossas fardas vistosas, quepes, bandeiras e medalhas, soldadinhos com os peitos varonis estufados de lealdade ao governo.

Meus tesouros: uma coleção de estampas das balas Pan (que perdi num jogo de bafo- bafo), uma caneta-tinteiro Esterbrook, os livros de Viriato Corrêa (História do Brasil para crianças) e todo o Sítio do Pica-Pau Amarelo ilustrado por Belmonte. Era para mim o maior desenhista do mundo. Varava noites copiando os desenhos dele, sem poder dormir por causa da asma.


Benedito Bastos Barreto, o Belmonte, morreu de asma em 1947, aos cinqüenta anos. Agora aqui estou eu, escrevendo sobre ele. Virei também o que Herman Lima chamava de artista do lápis (lápis por quê? A gente desenha é com tinta nanquim e caneta ou pincel).

A ótica mágica da infância se desfez: não o considero mais o maior desenhista do mundo, só um cara do ramo avaliando o que ficou do seu trabalho e da criação que foi a coqueluche de São Paulo, o Juca Pato, que virou nome de cigarro, cavalo de corrida, caramelo, caderno escolar, água sanitária e principalmente o bar Juca Pato, no centro da capital paulistana, ponto de encontro de artistas de rádio, de teatro e de jogadores de futebol. Hoje é troféu. Ainda não tinham inventado o merchandising e Belmonte não lucrou com a exploração comercial de seu personagem; muito pelo contrário, morreu pobre.

Meus olhos astigmáticos informam, sessenta anos depois: não é o maior desenhista do mundo. Vidrado em J. Carlos (“o pai de nós todos”), a influência do grande medalhão nunca deixou que seu talento, com o perdão da palavra, desabrochasse com força total. A favor dele, diga-se que as melindrosas que desenhava eram muito mais tesudas e gostosas que as magrelas desidratadas do corifeu.

Encaro a sua foto: olho meditativo, testa vincada, boca contraída, cara de índio mexicano, um homem sério, triste, que escrevia cartas indignadas ao jornal Estadão condenando o estado de abandono dos monumentos históricos: “Tudo isso precisa ter um fim, porque um povo que não sabe zelar por suas tradições é um povo indigno de viver.” Cáspite!

E, como ele, Juca Pato não ria; vociferava, dedo em riste, paladino da classe média, de polaina e gravatinha borboleta, investindo contra as bandalheiras, a corrupção, o custo de vida, buracos nas ruas e – primeirão! – contra a especulação imobiliária e a derrubada de árvores na cidade, ecologia avant la lettre.

Desde que Paulo Duarte, outro admirável irascível, levou-o, em 1921, para fazer charges diárias na Folha de S. Paulo, reinava sozinho nas folhas. Voltolino saiu de cena, vítima da sua insaciável busca do prazer. Outros caricaturistas da época foram tratar da vida, procurando ocupações que davam menos fama e mais segurança. Forrignac virou delegado e Pupo Nogueira, industrial. Os grandes da caricatura brasileira estavam concentrados no Rio, J. Carlos, Calixto, Nássara, Álvarus, Theo. Belmonte era o único expoente do primeiro time da caricatura fora da corte. (O Rio, coitado, ainda não tinha sido desativado pelo Poder Central. Era lá que as coisas aconteciam, agora é tudo em São Paulo).

Amava São Paulo com patriotismo acendrado, foi sua grande paixão; por causa dela, recusou um convite da Metro para fazer desenhos animados nos Estados Unidos. Vale a pena contar a primeira (e última) vez que “emigrou” de São Paulo. Quando seu ídolo J. Carlos saiu da Careta (o mestre resolveu se encastelar na torre de marfim de seu ateliê), tomou coragem e o trem para o Rio, convidado para substituí-lo. A aventura só durou dois dias. Deve ter se sentido um penetra na festa que era o Rio. Como um gato, fugiu de volta para o aconchego do seu habitat e o sossego da província. Bem Belmonte.

No dia da instauração do Estado Novo, 10 de novembro de 1937, publicou uma charge mostrando ao fundo a Estátua da Liberdade e em primeiro plano Juca Pato lendo um trecho da Constituição americana. Outras se seguiram, cutucando a ditadura com vara curta até que o DIP deu um chega pra lá e Belmonte foi obrigado a só fazer charges sobre política internacional. A velha história: um desenho vale por mil palavras. Quantos livros teriam que ser escritos abrangendo a trajetória do nazismo que Belmonte nos transmite através do seu traço em algumas dezenas de charges?

A glória: suas farpas incomodaram também outra ditadura. O poderoso chefão da propaganda hitlerista, Goebbels, brandindo um maço de desenhos de Belmonte, berrava pelo rádio que ele tinha sido comprado pelos americanos e ingleses. Melhor que qualquer prêmio.

Trinta anos de batente. Caricaturista, desenhista (frisava sempre que eram coisas diferentes. Acho que tinha mais pretensões como desenhista, mas vai ficar na história como grande caricaturista), historiador (No tempo dos Bandeirantes), escritor, pintor, jornalista. Boêmio até onde deu. Uma voz que nunca se calou contra a prepotência e o fascismo, sina de humorista.

Criou Juca Pato, tão paulistano quanto o Viaduto do Chá. Deu corpo ao Jeca Tatu, feliz parceria com Monteiro Lobato. Juca e Jeca, indispensáveis e fundamentais para a compreensão do homem brasileiro.

Valeu.

Jaguar é escritor e cartunista e é autor da introdução do livro BELMONTE, Caricatura dos Tempo. Melhoramentos/Círculo do Livro, 1982.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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