domingo, 7 de junho de 2009

TERIA NOÉ APORTADO NO NOVO MUNDO?

PERPLEXIDADE DAS AMÉRICAS
Em uma época de transição entre a religião e a ciência, a descoberta do Novo Mundo gerou animais imaginários e as mais bizarras teorias

POR CHRISTIAN FAUSTO MORAES DOS SANTOS*


O impacto que a “descoberta” do Novo Mundo representou para a cultura e conhecimento da natureza do Velho Continente é algo que até hoje estamos tentando computar. A total perplexidade diante do inusitado e as analogias estabelecidas num primeiro momento resultaram na restauração do etnocentrismo europeu. Permaneceram, contudo, as lacunas, esperando por reflexões científicas, para serem solucionadas. Isto posto, o grande compromisso da investigação era de os fi- lósofos naturalistas se superarem uns aos outros, nas discussões sobre o território americano e seus habitantes, o que resultou, entre outras coisas, em novos métodos para as narrativas e descrições do mundo natural.
Ilustração de um Grifo, animal mitológico com cabeça e asas de águia, e um corpo de leão. A figura foi feita por Sir John Tenniel, para uma das edições de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll

Até o fim do século XVI, a semelhança, como recurso metodológico e teórico para descrever e classificar os seres, irá desempenhar um papel fundamental na construção do saber ocidental. É pela semelhança que ele é organizado e disponibilizado. As idéias do médico e naturalista francês Pierre Belon, em 1555, exemplificam como se versava o mundo natural tendo como linguagem a figura das semelhanças (ou similitudes), pois este, ao traçar a primeira tábua comparada do esqueleto humano com o dos pássaros, nos mostra: “A ponta da asa chamada apêndice, que está em proporção com a asa, com o polegar, com a mão; a extremidade da ponta da asa, que é como nossos dedos (...); o osso, tido como pernas para os pássaros, correspondendo ao nosso calcanhar; assim como temos quatro dedos pequenos nos pés, assim os pássaros têm quatro dedos, dos quais o de trás tem proporção semelhante ao dedo grande do nosso pé”.

Até o fim do século XVI, a semelhança irá desempenhar um papel fundamental na construção do saber ocidental

A Expulsão de Adão e Eva do Jardim do Paraíso, em óleo sobre tela feita por Alexandre Cabanel, pertence atualmente a uma coleção particular

Assim vemos, por exemplo, que o conhecimento no século XVI era constituído por uma instável mistura de saber racional, de noções que derivavam da prática da magia e de toda uma herança cultural que se pautava nos poderes da autoridade e na redescoberta de textos antigos. Os signos que se interpretavam em fins da Idade Média como ocultos só são designados como tal na medida em que a ele se assemelhavam, e estes signos não atuarão sobre o oculto sem também atuar sobre o que é, por eles (os signos), secretamente indicado.

Por essa época, quando se tinha de fazer a história de um animal, era inútil escolher entre o ofício de naturalista e o de compilador: para se lidar com o mundo natural, era preciso, numa única e mesma forma de saber, recolher tudo o que fora contado pela natureza e pelos homens, pelas tradições, pelos contos e cantos acerca daquela espécie em questão. Conhecer então um animal ou uma planta era especular e recolher todo e qualquer signo que sobre eles repousasse. A dissociação que hoje fazemos entre mito, ciência e literatura era algo inconcebível àquela época, e o leão que repousava sob o brasão do senhor feudal era o mesmo que ocupava as savanas africanas.

O PROBLEMA DE NOÉ
Nesse ponto, relembramos que, principalmente entre os séculos XVI e XVIII, preocupações como a origem do homem americano tomavam o tempo de autoridades, fossem elas eclesiásticas ou não. Uma das principais querelas levantadas era se realmente a humanidade havia se originado de dois progenitores que eram comuns à espécie humana: Adão e Eva. Afinal, o continente americano não é adjacente a nenhum outro (ao menos isso era o que admitia a maioria dos letrados), ao mesmo tempo, tal continente é povoado por seres humanos e uma ampla gama de animais e plantas que em muito diferem dos pertencentes aos outros continentes. As difi- culdades em se explicar o que aquelas pessoas, animais e plantas estavam fazendo “isolados” ali deram brecha a várias teses de conteúdo sacrílego, como as da eternidade do mundo (logo, o livro Gênese estava errado) e a teoria de que a vida poderia originar-se da matéria.

BESTIALIDADE DE A A Z *

Um bestiário, ou Bestiarum vocabulum, é um compêndio de bestas, popularizado na Idade Média em volumes ilustrados. Descreviam centenas de animais, plantas, pedras, todos com características sobrenaturais sob a perspectiva atual; não sob a da época, vale ressaltar. As pessoas realmente acreditaram, por exemplo, nos dragões. Além da história, uma espécie de lição moral acompanhava cada ser. Particularmente conhecidos na Inglaterra e na França em torno do século XII, esses livros eram compilações de outros textos, desde a Grécia do século II, como é o caso do Physiologus, que por sua vez também sintetiza conhecimentos anteriores, até os trabalhos do também conhecido Plínio, O Ancião.

Acompanhe a seguir os principais animais imaginários do folclore medieval europeu.


RECRIAÇÃO ASSOMBROSA *


A influência da mitologia oriental no registro de seres fantásticos não foi menos rica ou fascinante. Pelo contrário, fundiu-se ao imaginário europeu com grande força. Isso é notado claramente na obra de Jorge Luis Borges, O livro dos seres imaginários (Globo, 208 págs.). O autor, com a colaboração de Margarita Guerrero, mescla referências gregas e latinas com as orientais (como o budismo), até a literatura, o folclore europeu ou os monstros ameaçadores de tradições latino-americanas indígenas. Trata-se de uma visão literária sobre um moderno bestiário, rica em referências. Sem poder se ignorar o fato de ser um texto de Borges, o grande expoente da literatura fantástica, capaz de fazer demonstrações únicas sobre o estranho, o mágico.


BONNACON *


Uma besta com chifres como os de um búfalo, mas curvados para dentro, o que os faz inúteis. Possivelmente um mito inspirado no bisão (animal encontrado na Ásia), consta em diversos bestiários medievais europeus. Quando perseguido, o bonnacon expele fezes a uma distância de até dois acres de terra, e esses dejetos incineram tudo o que tocarem.

JACULUS *


Também conhecida como Javelot, ou Serpente Voadora, essa criatura se esconde em árvores até avistar sua presa e desferir um ataque derradeiro.

CATOPLEBAS *


Cabeça tão pesada que o animal olha só para baixo, com franjas que encobrem os olhos sempre vermelhos e injetados, hálito perigoso devido a uma dieta de plantas venenosas: o quadrúpede catoplebas (do grego, “aquele que olha para baixo”) não é afeito a encarar. Quem o fizer, morre instantaneamente por tê-lo feito.

ANTÍLOPE *


O antílope dos bestiários e outros livros medievais não é o animal que recebe esse nome hoje. Escritores da época não tinham certeza sobre suas origens. Possuidor de chifres cortantes, ora retratados minimamente, ora exageradamente grandes, representou a possibilidade de desligamento dos vícios, no Velho e no Novo Testamento. Foi usado como símbolo por reis e senhores feudais na Inglaterra. De tão selvagem, não podia ser pego. Só quando ia satisfazer sua sede no Rio Eufrates, ficava com os chifres presos em arbustos e assim poderia ser morto por um caçador à espreita do bicho.

DRAGÃO *


“Uma corpulenta e alta serpente com garras e asas talvez seja a descrição mais fiel do dragão. Pode ser negro, mas convém que também seja resplandecente; costuma-se exigir igualmente que exale baforadas de fogo e de fumaça”, cita Borges. Continua: “No Ocidente o dragão sempre foi concebido como malvado. Uma das façanhas dos heróis (Hércules, Sigurd, São Miguel, São Jorge) era vencê-lo e matálo. Nas lendas germânicas, o dragão custodia objetos preciosos. Assim, na Gesta de Beowulf, composta na Inglaterra por volta do século VIII, há um dragão que durante trezentos anos é guardião de um tesouro. Um escravo fugitivo se esconde em sua caverna e leva consigo um jarro. O dragão desperta, percebe o roubo e decide matar o ladrão. De quando em quando desce à caverna e a revista bem. (Admirável ter ocorrido ao poeta atribuir ao monstro essa insegurança tão humana.) O dragão começa a devastar o reino; Beowulf o procura, trava combate com ele e o mata.”

UNICÓRNIO *


“Um cavalinho branco com as patas traseiras de antílope, barba de cabrito e um chifre longo e retorcido na testa é a representação habitual desse animal fantástico”, afirma Borges. E acrescenta: “Leonardo da Vinci atribui a captura do unicórnio a sua sensualidade; esta o faz esquecer sua ferocidade e recostar-se no regaço da donzela, e assim o aprisionam os caçadores.”

Mesmo Santo Agostinho (bispo entre 396 e 430), em seu De civitate Dei (A cidade de Deus, 413–426/427), também se preocupa com a questão envolvendo a origem e dispersão dos seres vivos, chegando à conclusão de que Noé tivera de transportar em sua arca todas as espécies de animais, sem exceção. Ele chega a tal conclusão pelas seguintes razões: em primeiro lugar, porque, para seus contemporâneos maniqueístas, os animais e plantas não haviam sido criados por Deus, haja vista serem animais destinados à corrupção e à morte. Deus havia criado somente os seres do universo supralunar aristotélico (como o Sol, a Lua, os planetas e as estrelas fixas), o éter, os anjos e a alma humana — ou, seja tudo aquilo que é perfeito, belo e imperecível. Todo o resto, destinado à degeneração e à corrupção, perecível, só podia ter sido criado por um poder maligno oposto a Deus. Desse modo, se Santo Agostinho admitisse que Noé houvesse deixado de fora da arca certo número de animais, os maniqueístas automaticamente teriam em mãos os argumentos para comprovar suas teorias de que, entre outras coisas, os animais não haviam sido criados por Deus e que teriam morrido, juntamente com os pecadores, durante o dilúvio. Outra razão importante, para Santo Agostinho admitir que todos os animais haviam sido transportados na arca, se encontrava no fato de que eles simbolizavam os povos da Terra, ou seja, toda e qualquer nação tinha o direito à salvação na nova arca que era a Igreja cristã. Assim, Noé teve de levar na arca casais de todas as espécies, até mesmo as aquáticas e nascidas por meio de geração espontânea, para demonstrar que todo e qualquer povo não seria abandonado pela Igreja “católica” (termo que em grego significa “para todos”, “universal”).


Torre de Babel, pintura a óleo de Lodewyk Toeput (1550-1603/05), pintor flamenco, faz parte de coleção privada. Alegoria bíblica que explica a existência de diversas línguas e raças no mundo

Pomba Enviada da Arca, por Gustave Doré (1832-1883). A alegoria da embarcação atravessou as eras, o desenvolvimento da Ciência, e influenciou diferentes artistas ao longo do tempo

O PROBLEMA DO UNIVERSO
Em 1662, Edward Stillingfleet na obra Origenes sacra, no capítulo intitulado Of the origins of universe [“Das origens do universo”], discute as várias doutrinas (formuladas em diferentes momentos históricos) que versam sobre a origem do universo e que se contrapõem — sem que haja a mínima possibilidade de conciliação — à tese de Moisés de que o mundo teria sido criado do nada pelo Verbo de Deus. Segundo Stillingfleet, tais doutrinas sacrílegas poderiam ser enumeradas em quatro:

Athanasius Kircher (1602-1680), retratado em seu livro Mundus Subterraneus, de 1664. Kircher foi um alemão jesuíta, matemático, físico, alquimista e inventor, particularmente conhecedor das ciências naturais

1 - A que afirma que o mundo é eterno (Aristóteles);
2 - A que atribui a formação do mundo a Deus, mas sustenta a preexistência e a eternidade da matéria (os estóicos);
3 - A que nega a eternidade do mundo, mas explica sua origem como um encontro casual de átomos (os epicuristas);
4 - Por fim, a que tenta explicar a origem do universo e de todos os fenômenos naturais, exclusivamente com base nas leis mecânicas do movimento da matéria (Descartes).

Noé teve de levar na arca casais de todas as espécies, para demonstrar que ninguém seria abandonado

O que Stillingfleet pretende é discutir e rechaçar todos esses pontos. Entretanto, ele sente também uma certa obrigação de condenação moral a essas teorias, pois, para ele, o verdadeiro entendimento do mundo tem “notável influência sobre as crenças dos homens e sobre tudo o que daí resulta com relação à palavra de Deus”. Se fosse mesmo verdadeira a tese que afirmava ser o mundo eterno, então “toda a religião de Moisés cai por terra, todos os seus milagres são imposturas, todas as esperanças fundadas sobre a divina Providência são vãs e sem frutos”. Se a existência do mundo só se daria por uma necessidade, então a conclusão seria de que Deus não é um agente livre. E, se isso fosse verdade, “então todas as religiões estabelecidas não têm objetivo, e não pode haver remissão nem temor algum da punição divina”. Não ter um Deus para se temer, isso, sim, era temerário.

Para se tentar explicar a existência e as diferenças encontradas nos nativos americanos, por exemplo, chegou-se a afirmar que “não tem sua origem em Adão ou, pelo menos, não se originam de Noé [...] mas são aborígines e multiplicaram- se de uma cepa comum, diversa da que nos fala a história mosaica”.

Em 1679, o jesuíta alemão Athanasius Kircher publica a obra Turris Babel, na qual se ocupa com a questão da origem e diversidade das raças humanas. Segundo Kircher, o mundo teria sido criado em 4053 a.C., ou seja, no ano do mundo de 1657.

A Arca de Noé, obra de 1846, feita pelo pintor Edward Hicks (1780-1849), artista folk e naïve (primitivo) norte-americano, devoto Quaker (membro da Sociedade Religiosa de Amigos)

OS AMERICANOS
Tratando da questão acerca da diversidade das raças humanas levantada por Kircher na Turris Babel, este afirmava que após o dilúvio universal, apenas oito seres humanos teriam sobrevivido. Noé, como patriarca, teria ensinado toda a sua sabedoria antes mesmo que descessem o monte Ararat. Na seqüência, os filhos de Noé repovoaram toda a terra; curiosamente Kircher demonstra que em apenas cem anos a população de seres humanos poderia ter chegado a 2 milhões de indivíduos, estes também receberiam os ensinamentos de Noé, já que, segundo a Bíblia, ele vivera mais 350 anos depois do dilúvio. Todos então falavam o hebraico, que nessa época era considerada a primeira língua da humanidade.

Voltando à questão da ocupação humana do Novo Mundo, o continente americano, segundo algumas autoridades religiosas como o padre Joseph d´Acosta, estaria interligado ao continente europeu. Afinal d’Acosta é um dos primeiros a se debruçar sobre a questão da origem dos homens e dos animais do Novo Mundo, pois, em 1590, ele publicava sua Historia natural y moral de las Índias, na qual levantava a hipótese de que o continente americano deveria estar ligado, em algum lugar, ao Velho Mundo: “(...) tenho para mim, há días, que uma terra a outra em alguma parte se juntam e continuam, ou ao menos se avizinham e aproximam muito (...)”.

Imagem do Estreito de Bering, a separar a Sibéria do Alasca, no Norte do Oceano Pacífico, em uma imagem da agência aeroespacial norteamericana (Nasa), feita pelo satélite MISR


Acreditava que tanto animais quanto seres humanos teriam passado em épocas remotas por terra à América, através de um pequeno estreito de mar, em algum lugar desconhecido na época e que talvez se localizasse na parte setentrional da América do Norte, região pouquíssimo explorada e esquadrinhada pela cartografia do século XVI. Anos depois, tal estreito ficaria conhecido como o Estreito de Bering.

Há na América e Peru muitas feras como são os leões; há tigres e muito cruéis, há ursos, há raposas inumeráveis

Nicholas Hilliard (1547-1619), ourives e pintor britânico famoso por seus retratos ovais em miniatura. Foi figura central do período elisabetano e também possui sua representação da Arca de Noé

A FAUNA NÃO NADA: A CIÊNCIA DOS CURIOSOS
Já com referência aos animais, d’Acosta, no capítulo 21 de seu Livro I, reforça sua hipótese ao considerar a distribuição dos mesmos em terra firme; pois, segundo ele, não se encontravam animais em ilhas distantes da terra firme mais de quatro jornadas, o que só podia significar uma coisa: tais animais só poderiam ter vindo por terra e jamais transportados em naus, ou nadando:“Há na América e Peru muitas feras, como são os leões (…); há tigres e muito cruéis (…); há ursos, ainda que nem tantos, há raposas inumeráveis. De todos esses gêneros de animais, se quisermos buscá-los na ilha de Cuba ou na de Espanhola ou em Jamaica, ou em Margarita ou na Dominica, não encontrará nenhum”.

D’Acosta também irá se preocupar em comparar a fauna do Velho e do Novo Mundo, procurando, desse modo, observar quais espécies eram as relacionadas e quais as isoladas. Esse estudo chamou muita atenção e, provavelmente, inspirou alguns dos escritos do naturalista Francês Conde de Buff on, que, no século XVIII, produziu uma das teorias mais influentes a respeito da natureza do Novo Mundo.

Outro “homem de letras” preocupado com a história do Novo Mundo foi o nobre Don Antonio de Herrera y Tordesillas, que, em 1601, escreveu a Historia central de los hechos de los castellanos entre islas i tierra firma del mar oceano, onde, no capítulo 10, Livro II, tratou da questão Sobre os antigos habitantes da Nova Espanha de como ali chegaram. Segundo ele, os primeiros habitantes das Índias Ocidentais também chegaram por terra “(...) apesar de a terra que une [o Velho e o Novo Mundo] não ter sido descoberta até o presente e de que, apesar de haver mar entre as duas, houve bestas ferozes que o puderam atravessar, e os homens em canoas”.

Após ter caído em desgraça perante a rainha Elizabeth I, Sir Walter Raleigh, navegador e descobridor britânico, ex-favorito da rainha, fundador da colônia americana da Virgínia e vencedor da armada espanhola, depois de ter sido encarcerado na Torre de Londres, resolveu escrever uma história universal, onde então relatou suas experiências, principalmente as passadas no Novo Mundo. Como homem que havia conhecido de perto a diversidade da fauna americana, acreditava que nem todas as espécies naquele período conhecidas poderiam ter cabido na arca de Noé. Raleigh então postulou a teoria de que somente as espécies do Velho Mundo teriam sido salvas na arca de Noé e, após o fim do dilúvio, algumas delas, pela dispersão, chegaram até o Novo Mundo, onde, sob a influência do clima e do tempo, foram se formando novas espécies. Esse também é um autor que irá exercer certa influência nas teorias de Buff on.

Sir Walter Raleigh acreditava que nem todas as espécies naquele período conhecidas poderiam ter cabido na arca de Noé

Como podermos ver, os pesquisadores nos séculos XVI e XVII, que eram chamados curiosi rerum naturae ou virtuosos, rapidamente ampliaram seu círculo, alcançando outros países da Europa. Na Inglaterra, a Royal Society for Promotion of Natural Knowledge, em 1660, com a instalação da monarquia inglesa; na França, em 1667, com a oficialização da primeira sociedade de pesquisadores, Académie Royale des Sciences. Os acadêmicos, assim, construíram seus espaços privilegiados de debate. Iniciados pelos virtuosi, estenderam-se para outros países, não sem alguns problemas com a Igreja, que não via os curiosi com bons olhos. Na segunda metade do século XVII, as associações de pesquisadores franceses preocuparam-se com a criação de um órgão divulgador das produções científicas e trabalhos originais e editaram o primeiro periódico Journal des Sçavans.

Para se tentar explicar as diferenças dos nativos americanos em relação aos europeus, afirmou-se que eles não tinham sua origem em Adão, ou em Noé

HIBRIDISMO SEGUNDO KIRCHER
Por fim, teremos a Arca Noë, um curioso livro de 1675, também publicado pelo jesuíta alemão Athanasius Kircher. Nele, Kircher tenta reafirmar a verdade divina diante das novas descobertas, o que implicava conseguir abrigar todos os animais em uma arca do formato de um paralelepípedo, sendo esta dividida em três andares de cubículos, que alcançava somente 198 metros de comprimento, 33 de largura e 19,8 de altura. Lembremo-nos de que tais dimensões utilizadas por Kircher para calcular o espaço destinado a todos os animais na arca encontram- se citadas no próprio livro do Gênese, sendo que tais medidas foram respeitadas pelo jesuíta.

Para tal proeza, Kircher se baseou em muitos conceitos acerca do mundo natural que, no século XVII, eram considerados fatos incontestáveis. Por exemplo, não haveria a necessidade de Noé ter se preocupado em levar para a arca as plantas e todos os organismos de origem aquática, bem como os insetos e outros seres que se geravam “espontaneamente”, pois, após o dilúvio, fatalmente tais organismos voltariam à vida sem necessariamente terem de se sujeitar à fecundação cruzada.

Animais levados por Noé, ou híbridos pós-diluvianos segundo Athanasius Kircher: A: cavalo; B: unicórnio ou monocerus; C: mulo; D: onagro.

Desse modo, Kircher eliminava de sua lista uma ampla gama de animais, que passava dos peixes, aos cetáceos, indo às aranhas, moscas, cobras, morcegos e ratos. Afinal, para a maioria dos “letrados” do século XVII, os vermes, os insetos e outras classes de animais eram considerados “seres imperfeitos” que nasciam da matéria em decomposição. A única exceção aceita por Kircher eram algumas serpentes que possuíam, na época, valor medicinal, bem como serviriam de alimento a bordo para os corvos e outras aves.

No entendimento do jesuíta Kircher, a explicação para a enorme diversidade da fauna encontrada no novo continente é que grande parte dos animais conhecidos pelo homem teria surgido após os fatos relatados no Gênese; e também, para o jesuíta, muitos deles teriam se originado do cruzamento entre diferentes espécies. Assim, a marmota teria se originado do cruzamento entre o esquilo e o texugo; o tatu, do acasalamento do ouriço com a tartaruga; já a avestruz teria se formado do cruzamento do pardal com o camelo; ao passo que a girafa não passaria do resultado do cruzamento entre o camelo e o pardo.

Kircher se baseou em muitos conceitos acerca do mundo natural que na época eram incontestáveis

A ânsia não somente de ler os relatos e descrições dos animais das terras distantes, mas também de colecionálos (vivos ou mortos) também tomava conta da nobreza européia. Acima podemos ver o esqueleto de um Dragão trazido da Ásia e vendido por uma pequena fortuna para compor o Bestiário de Luis XIV, rei da França (1643 a 1715). O dito dragão nada mais é que um esqueleto montado com a cabeça e vértebra de um gato doméstico e nadadeiras de peixe voador.


COMPLICANDO A BÍBLIA
Figuras como Athanasius Kircher nos trazem importantes informações acerca das teorias que procuravam explicar a diversidade da fauna do globo e, mais especificamente, a origem dos animais americanos. Esses “homens das letras” iam além das teorias fixistas, que eram até então amplamente aceitas e defendidas por seus contemporâneos (principalmente aqueles ligados a ordens religiosas). Assim, o que de certo modo propunha era que havia uma inconstância na natureza e que os seres vivos, de uma maneira ou de outra, modificavam-se com o passar do tempo. Desse modo, querendo defender as idéias da criação presentes nas sagradas escrituras, homens como Athanasius Kircher acabam por alterar a lógica divina, pois, segundo o Gênese, todos os animais (e podemos aí incluir o homem) foram criados por Deus de maneira acabada, ou seja, suas características foram dadas pelo criador no momento de sua concepção e não por meio do cruzamento com outras espécies ou pela influência do ambiente. Querendo defender a idéia de que o Novo Mundo não havia sido esquecido por Deus nem por Noé, Kircher e Joseph d’Acosta (muito provavelmente) involuntariamente colaboram com um conceito que mais tarde irá custar muito caro à Igreja: o da evolução.

Entretanto, não nos esqueçamos de que as “rupturas” epistemológicas nesses (delicados) casos podem levar bem mais que alguns anos e que homens como Joseph d’Acosta e Athanasius Kircher, muito provavelmente, ao darem maleabilidade à interpretação bíblica da origem do mundo e das espécies que o habitam, tentando desse modo adequá-la às novas realidades vislumbradas a partir do século XVI, não percebiam que estavam corroborando para seu enfraquecimento. De concessão em concessão, o relato do Gênese foi se transformando de verdade inquestionável para alegoria simbólica.

REFERÊNCIAS
D’ACOSTA, José de. Historia natural y moral de las Índias. México, FCE, 1985. JOSÉ OU JOSEPH?
BÍBLIA SAGRADA. Gênese. Tradução dos originais mediante versão dos monges de Maredsous (Bélgica). Ed. Ave Cristo. São Paulo, 1978.
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HERRERA y TORDESILLAS. Historia central de los hechos de los castellanos entre Islas i tierra firma del mar oceano. Escrita por Antonio de Herrera cronista mayor de Su Md. De las Indias y su cronista de Castilla. En Cuatro Decadas desde El Año de 1492, hasta el de 1531. Madri: Emprenta Real, 1601.
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SANTOS, Christian Fausto Moraes dos. Uma cosmologia do Novo Mundo: os diálogos geográficos de Joseph Barbosa de Sáa no ano de 1769. Rio de Janeiro, 2005. 364 f. Tese (Doutorado em História das Ciências) – Fundação Oswaldo Cruz – Casa de Oswaldo Cruz.

CHRISTIAN FAUSTO MORAES DOS SANTOS é Graduado em História e Mestre em Geografia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM–PR), Doutor em História das Ciências pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz–RJ), Pós-Doutorando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG–MG). Professor do Departamento de História e pesquisador do Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-História da Universidade Estadual de Maringá. chfausto@hotmail.com Atualmente trabalha na elaboração de um dicionário de Animais e Plantas da América Portuguesa no século XVI. Agradecimento especial ao Professor Dr. Nelson Papavero, pioneiro da História das Ciências no Brasil.

* Complemento da redação

Revista Leituras da Historia

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