domingo, 3 de maio de 2009

O bibliotecário de d. João VI

A vida de Luiz Joaquim dos Santos Marrocos mostra o cotidiano no Rio de Janeiro do início do século XIX...e como uma esposa e um bom cargo público levaram um português a defender a independência da colônia que desprezava
por Jean Marcel Carvalho França
Retrato de d. João VI, óleo sobre tela, Jean-Baptiste Debret, século XIX, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro

A vinda de d.João VI em 1808 trouxe muitos imigrantes portugueses para instalar a burocracia da corte

Em junho de 1811, lá pelo dia 15, entrou no porto do Rio de Janeiro uma fragata portuguesa de nome Princesa Carlota. A fragata, que saíra de Lisboa em meados de março e passara por maus momentos durante a viagem – ventos contrários, calmarias prolongadas e tempestades –, estava caindo aos pedaços, e tanto a tripulação quanto os passageiros vinham esfomeados ou doentes.

Em meio aos desafortunados viajantes, encontrava-se um homem de 30 anos, chamado Luiz Joaquim dos Santos Marrocos. O português, como muitos de sua geração, vinha de Lisboa com um emprego garantido na burocracia estatal, o de bibliotecário da Real Biblioteca, e, também como muitos de seus contemporâneos, vinha com o declarado e firme propósito de melhorar de condição e retornar para junto da sua amada família na terrinha. A vida, porém, pregou uma peça neste rabugento bibliotecário. Uma vez estabelecido no Rio de Janeiro, a terra pareceu-lhe cada dia menos hostil e ele acabou por deixar-se ficar na cidade, contrariando o que escrevera ao pai poucos meses depois do seu desembarque: “Creia (...), se Sua Alteza Real me enchesse de benefícios tais que me visse elevado a um grau sublime de representação e abundância, nada faria desvanecer da minha idéia o constrangimento em que vivo e o sumo desejo de me retirar de tão mau país. Deus permita não terminar meus dias debaixo deste horizonte (...)”.

Esse imigrante português era filho de Francisco José dos Santos Marrocos, um professor de filosofia que também exercia, na Biblioteca Real da Ajuda, em Lisboa, o cargo de bibliotecário. Pouco se sabe sobre a sua vida antes de desembarcar no Brasil. Nascido na capital portuguesa, em 1781, desde 1802 ocupava a função de ajudante das Reais Bibliotecas. Durante a invasão francesa, havia servido na Junta de Direção Geral dos provimentos de boca para o exército e, pouco depois, foi nomeado capitão de uma das companhias das Legiões Nacionais para a defesa de Lisboa.


Rua Direita, Rio de Janeiro, aquarela sobre papel, Félix-Emile Taunay, 1823, coleção particular

O Rio de Janeiro para o mal-humorado imigrante Marrocos era sujo, perigoso, cheio de negros, com clima terrível e repleto de doenças: uma cidade sem divertimentos que corrompia as jovens lisboetas. Ainda assim, aqui ele ficou até à morte e fez fortuna

Esse bibliotecário mediamente culto e empenhado, depois de se transferir para o Brasil, em 1811, progrediu muito e rapidamente. “Eu aqui principiei a adotar o sistema de Maria vai com as outras”, escreveu Marrocos em 1812. O sistema parece ter dado excelentes resultados, pois, ao morrer em 1838, com apenas 47 anos, ele exercia a importante função de Oficial-maior da Secretaria de Estado dos Negócios do Império, um cargo nada desprezível para quem, vinte e poucos anos antes, desembarcara na cidade como simples funcionário da Real Biblioteca.

Além de tamanho progresso profissional, o país que a princípio lhe parecera tão desagradável proporcionou-lhe pelo menos uma outra grata surpresa: uma esposa. Em 22 de setembro de 1814, Marrocos, farto de estar só e doente em terra estranha, como comentou com o pai, casou-se com dona Ana Maria de Santiago Sousa, uma carioca de 22 anos de idade, filha de pai português e mãe brasileira, gente muito limpa, honesta e abastada, como explicou aos seus familiares.

Apesar das suas explicações, a união parece ter sido muitíssimo contestada pelos parentes, que queriam vê-lo casado com uma lisboeta. Já em 1815, reclamava que não lhe agradavam as expressões irônicas que o pai usava em carta para se referir a sua esposa e que o tratamento que lhe dispensavam deixava patente a falta de sinceridade com que era tratado desde suas núpcias.

Apesar de ter um temperamento azedo, Marrocos não se mostrou insensível a tamanhos benefícios propiciados pelo Brasil e, com o correr dos anos, mudou um pouco a sua visão do país. Prova disso são as diferentes reações que teve quando, em duas ocasiões, se viu diante da possibilidade de trazer os parentes lisboetas para o Rio de Janeiro. Em 1812, respondendo a uma indagação do pai, que queria, ao que tudo indica, imigrar com o resto da família, o bibliotecário, depois de explicar os horrores que passariam na viagem, arrematou com a seguinte advertência: “Reflita na qualidade da terra; porque há nela sempre uma contínua epidemia de moléstias, pelos vapores crassos e corruptos do terreno e humores pestilentos da negraria e escravatura, que aqui chega da costa leste; (...) além disso, a cidade é de pouca extensão e muito semelhante ao sítio de Alfama ou, fazendo-lhe muito favor, ao bairro Alto nos seus distritos mais porcos e imundos. Ora, quem vem de Lisboa, aqui desmaia e esmorece”.



Passeio público, aquarela, atribuído a Franz Josef Frübeck, c.1817-1818, coleção particular

Passeio Público, próximo à casa do bibliotecário: “melhor sítio da cidade”

Isso disse Marrocos em 1811, poucos meses após desembarcar. Mais tarde, em meados de 1819, depois de ter se casado, se adaptado à terra e, sobretudo, progredido bastante, é o próprio bibliotecário quem retorna a idéia. Determinado a convencer os seus familiares a virem para o Brasil, escreve-lhes uma longa carta, enumerando as vantagens de imigrarem. Antes de exaltar as virtudes da terra, lembra ao pai que a família levava uma vida miserável em Lisboa e que o patriotismo era um frívolo pretexto de gente caduca, ainda mais se a pátria em questão era uma terra ingrata como Portugal. Em seguida, exalta as qualidades da vida que passara a levar depois que viera para o Brasil, vida cômoda e aprazível: morava em uma casa grande e bem localizada, tinha diversos escravos para servi-lo, comia do bom e do melhor, vestia-se com dignidade, enfim, estava numa situação muito confortável e poderia – garante ao pai – proporcionar o mesmo a ele, à mãe, à irmã e à tia.

Logo adiante, na mesma carta, para arrematar o seu insistente convite, Marrocos destaca as qualidades do lugar onde morava e não esconde o quanto mudara a sua visão do Rio de Janeiro: “o sítio (...) é magnífico, e talvez o melhor da cidade, não só por ser lavado de bons ares, mas em uma rua muito larga e asseada, tendo no princípio um formoso chafariz, e no fim o Passeio Público (...); temos próximas 3 igrejas e 2 capelas, uma praça de hortaliças e o matadouro com açougue, além de mil outras comodidades (...); sendo de não menos vantagem a proximidade do mar para limpeza e despejo da casa (...)”.

Tudo isso que sabemos sobre Marrocos quem nos conta é ele próprio. Ao longo da primeira das quase três décadas em que viveu no Brasil (1811-1838), o português escreveu à sua família, sobretudo ao pai, relatando o seu cotidiano. Foram 186 cartas que chegaram até nós, redigidas entre junho de 1811 e março de 1821. A última, remetida meses antes de d. João VI deixar o Brasil, dá conta de seu rompimento com a família, que parece, como referimos, não ter aceitado muito bem o seu casamento e gradativo abrasileiramento.

Ainda que uma boa parte dessas quase duas centenas de cartas trate de suas atribuições na Biblioteca Real, do seu progresso profissional, da falta que sentia de notícias da família e das mazelas dos políticos e funcionários que cercavam d. João VI – quase todos pintados como corruptos, ignorantes, levianos e incapazes de pensar no bem comum –, Marrocos encontrou tempo para tecer comentários ligeiros um pouco sobre tudo, da saúde dos membros da família real ao enervante espírito patriótico que tomava conta dos brasileiros.


Primeiras ocupações da manhã, aquarela sobre papel, Jean-Baptiste Debret, 1826, Museus Castro Maya, Rio de Janeiro

Marrocos apreciava possuir escravos, mas não gostava do barulho dos negros nas ruas

VIOLÊNCIA URBANA

Luiz também estava constantemente atento ao estado da saúde pública do Rio de Janeiro. A cidade, que crescera desmedida e rapidamente, era imunda, rodea da de águas podres e com um clima que o bibliotecário reputava pavoroso: “Mais pestífero do que Cacheu, Caconda, Moçambique, e todos os mais da costa de Leste; (...) aqui anda sempre o são Viá tico por casa dos enfermos, de dia e de noite; e há pouco soube que só na igreja da Misericórdia desta cidade se enterraram no ano de 1811 para cima de 300 pessoas naturais de Lisboa!”.

O pânico em relação às condições de higiene e saúde do Rio de Janeiro não diminuiu com os anos. Ao contrário, de tempos em tempos, Marrocos reportava ao pai e à irmã que a cidade estava sendo assolada por uma epidemia e que a sua saúde não ia bem. Há cartas que são verdadeiros obituários, com nomes e nomes de portugueses mortos em alguma epidemia. Em 1816, por exemplo, comunica à família que padeceu com as hemorróidas – neste país são mais ativas que em Portugal –, que perdeu 2 negros para as bexigas e que todos em sua casa sofreram nesta estação de epidemias que têm grassado por toda a cidade, causando grande mortandade.

Outro tema igualmente presente nas missivas é a violência urbana. O centro do Rio de Janeiro e os seus subúrbios, narra o bibliotecário, estavam infestados de ladrões, que roubavam, sem qualquer constrangimento, logo ao princípio da noite. Em 1813, Marrocos conta ao pai que tinham sido registrados 22 assassinatos na cidade em apenas cinco dias, muitos deles executados de forma bárbara. A situação era tal que o chefe de polícia tinha sido não somente roubado, mas ainda esbofeteado, pois trazia consigo pouco dinheiro.

O bibliotecário também contou à família sobre as dezenas de comemorações que o intendente Paulo Fernandes vinha organizando para homenagear a família real e trazer o povo entretido. Pelo que narra Marrocos, comemorava-se de tudo, de casamentos e batizados ao restabelecimento de um príncipe ou princesa doente, sempre com muita pompa e circunstância, com missa e festança que se espalhava por toda a cidade.

O Rio de Janeiro pintado por Marrocos, no entanto, não obstante essas comemorações cívicas e outras de caráter religioso é uma cidade carente de divertimentos, em que os que tinham um par de patacas promoviam em sua casa partidas noturnas, por não haverem outros entretenimentos.

Malgrado, no entanto, essa carência de divertimentos, de vida social, Marrocos comenta que o Brasil é denominado com razão de terra dos vícios e da perdição e que muitas moças de Lisboa, quando se mudavam para o Rio de Janeiro, adotavam um mau procedimento e passavam a levar uma vida viciosa. Muitos cariocas, lamenta o bibliotecário, olhavam com desconfiança as moças de Lisboa, que já tinham no Rio de Janeiro a mesma reputação – má reputação – que as brasileiras tinham em Portugal.

Dizer mal dos portugueses, a propósito, tornava-se um hábito cada vez mais comum entre os brasileiros que, de dia para dia, observa Marrocos, estavam mais impertinentes no seu patriotismo. Em 1815, quando o Brasil foi promovido a Reino Unido de Portugal e Algarves, tal impertinência, segundo o bibliotecário, tornou-se excessiva, insuportável.

“Pelas gazetas que ultimamente remeti a vossa mercê, lhe será constante o brado que aqui se ouviu pela elevação destes Estados a Reino (...). O senado, que em tudo se quer distinguir, em tudo dá a conhecer que é Senado do Brasil e por isso fez a função mais porca, que eu não esperava ver. Em despique à mesquinhez do Senado, o Corpo do Comércio, todo bazófia, reserva para depois da Páscoa a sua função alusiva ao mesmo objeto, e em que prometem o maior aparato e grandeza, à imitação das Festas Reais de Lisboa.”

Esse lusitanismo ressentido de Marrocos aquiesceu com o passar do tempo, ao ponto de o imigrante romper com a família, apoiar o processo de Independência e, pelo que se infere da sua rápida ascensão nos quadros burocráticos do Brasil de d. Pedro I, abraçar de corpo e alma a nova pátria. O seu mau humor em relação a certos aspectos da vida carioca, contudo, não diminuiu. Enquanto durou a sua correspondência com os parentes lisboetas, o português não poupou censuras aos brasileiros, a quem tinha na conta de uma gente indigníssima, soberba, vaidosa e libertina. O país, também, nunca chegou a agradar-lhe completamente: as comidas típicas provocavam-lhe náuseas, os animais e insetos despertavam-lhe um verdadeiro horror, o alarido das ruas povoadas por negros desgostava-o.

Apesar de tudo isso, Marrocos foi ficando e nunca mais mencionou retornar para Portugal, país que também não tinha em alta conta. Ao descer ao túmulo em dezembro de 1838, o ex-bibliotecário era um homem realizado: tinha família grande, era Oficial-maior de Secretaria, pertencia à Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula e seu enterro tinha sido prestigiado por grande número de pessoas, entre as quais, certamente, muita gente graúda.

Jean Marcel Carvalho França é professor do Departamento de História da Unesp e autor, entre outros livros, de Literatura e sociedade no Rio de Janeiro oitocentista (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999) e Outras visões do Rio de Janeiro colonial (José Olympio, 2000).

Revista Historia Viva

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