sexta-feira, 20 de março de 2009

Emboabas - A guerra da memória



Na região dos Emboabas, poucos marcos remetem hoje ao episódio histórico ocorrido há 300 anos. No imaginário popular, persistem as lendas
Lorenzo Aldé

A descoberta do ouro. A saga dos bandeirantes. Grandes deslocamentos humanos. Dois anos de combates sangrentos. A dificuldade da Coroa em organizar a ocupação daquela terra de ninguém. O nascimento de uma nova economia na Colônia. Um marco inaugural para o desenvolvimento de Minas Gerais.

Não faltam motivos para eleger a Guerra dos Emboabas como um episódio marcante para o Brasil. O que falta é mais pesquisa histórica.

Em 1990, um político de São João Del Rey decidiu que era preciso valorizar um acontecimento que, para muitos, determinou o fim dos combates: no episódio conhecido como “Capão da Traição”, um grupo de cerca de 200 paulistas acreditou numa falsa proposta de rendição e foi massacrado pelos emboabas. No bairro de Matosinhos, o tal político fez inaugurar uma singela placa em memória do trágico evento. Seria uma louvável iniciativa, não fosse por um detalhe: o lugar não tem nada a ver com o massacre. Só o nome. Mas a Matosinhos de 1709 sequer ficava na área da atual São João Del Rey.

É o que garante o presidente do Instituto Histórico e Geográfico do município, João Antônio de Ávila Sacramento. Contrariado por constatar que a história local é tão mal contada, ele escreveu um artigo em 2006 explicando por que considera o lugar da placa “mera ficção”. Com base em um dos poucos relatos da época – o do sargento-mor português José Álvares de Oliveira –, calculou que o verdadeiro Capão da Traição ocorreu a cerca de 10 quilômetros dali (“coisa de légua e meia ao rumo do Norte”, segundo o documento), no atual município de Coronel Xavier Chaves. E foi além: em visita à fazenda que hoje esconderia, por baixo de vegetação nativa, o histórico Capão, ele viu com os próprios olhos os resquícios de uma antiga mureta. Como a região nunca foi habitada, sua teoria, reforçada por relatos de moradores, é que existe ali um cemitério de covas rasas.

A hipótese chegou a ser publicada no jornal O Estado de Minas, mas não deu em nada. Nem o Iphan, nem o Iepha (órgão estadual de proteção ao patrimônio), nem o Instituto Estrada Real responderam aos seus pedidos de uma nova pesquisa no local. José Antônio pensou até em, junto com seus pares, tirar a dúvida por conta própria. “Mas preferimos não arriscar. Não temos recursos para fazer a escavação e a datação. Corremos o risco de profanar um patrimônio arqueológico de fundamental importância para Minas Gerais e para o Brasil”, explica.

E assim permanece obscuro o lugar onde a Guerra dos Emboabas se encaminhou para o fim, com a morte de 50 paulistas de uma só tacada. Cinqüenta, duzentos, trezentos? O número de vítimas fatais no Capão da Traição também continua obscuro. Alguns pesquisadores falam até em mil mortos.

Tanta incerteza se deve à escassez de registros escritos e de resquícios concretos. Os primeiros ocupantes da região eram quase nômades. Armavam acampamentos provisórios para tentar explorar o ouro, ao mesmo tempo em que se empenhavam no combate aos inimigos. Mesmo pela via da história oral é difícil encontrar pistas que enriqueçam o conhecimento sobre a Guerra dos Emboabas. Afinal, lá se vão 300 anos. “Já ouvi falar dessa guerra, minha avó me contava”, foi uma resposta muito ouvida por Márcia Conceição Bárbara durante as pesquisas para o mestrado em Turismo e Meio Ambiente (obtido no Centro Universitário UNA, de Belo Horizonte, em 2006). Seu objetivo era conhecer a cultura popular ligada à Guerra, para propor o aproveitamento turístico desse passado histórico. Embora pouco concreta, a memória daqueles distantes episódios continua no ar. O nome “Emboabas” inspira bares, restaurantes e até uma emissora de rádio FM. Algumas lendas sobrevivem no imaginário local.

Acredita-se, por exemplo, que a cor escuríssima da água do Rio das Mortes se deve à quantidade de cadáveres que foram jogados lá. Em Sabará, os moradores não ligam para os nomes modernos inventados para duas ruas separadas pelo Rio das Velhas – elas continuam sendo chamadas de Rua do Fogo e Rua Fogo Apagou. Seria outra herança dos tempos dos emboabas, que certa vez convenceram índios a atacar com flechas incendiárias um grupo de paulistas que acampava na beira do rio. As cabanas arderam em chamas e o fogo, ao chegar à beira do rio, é claro que... apagou, batizando para sempre os dois lados da rua.

Histórias como esta, imaginárias ou não, foram recolhidas por Márcia Bárbara em entrevistas com antigos moradores de seis municípios. “Existe uma memória coletiva, mas ela é generalista, não específica, pois isso não foi trabalhado nem pelos antepassados nem pelas escolas formais. Todos os livros de História que falam de Minas Gerais dedicam só meia página aos Emboabas. Pela falta de registros, não dão muita importância”, lamenta.

A cidade que cultiva um pouco melhor esse passado emboaba é Caeté, onde ocorreram os primeiros conflitos. Lá tem estátua em memória da guerra e pelo menos uma certeza geográfica: foi no alto do Morro Vermelho que ocorreu “a primeira eleição das Américas”, como alguns gostam de proclamar – à revelia de Portugal e contra os bandeirantes paulistas, os emboabas elegeram Manuel Nunes Viana governador de Minas Gerais.

Mas ainda parece pouco. Assuntos para novas pesquisas estão aí, à espera de quem os adote. Márcia tem seus palpites. Em Conceição dos Ouros, moradores acreditam ter encontrado vestígios de armamentos da época. Guardada numa igreja de Cachoeira do Campo (distrito de Ouro Preto), repousa uma bússola, supostamente deixada por bandeirantes, também aguardando datação histórica. “O livro História antiga das Minas Gerais (1904), de Diogo de Vasconcelos, pode ajudar a traçar a genealogia das famílias da região. E talvez em Portugal os arquivos possam revelar mais informações sobre a guerra”, especula.

Sem falar no suposto cemitério do Capão da Traição, investigado por José Antônio Ávila. “Não é questão de ter interesse ou não: os órgãos de proteção ao patrimônio têm obrigação de pesquisar. Precisam saber se é ou se não é, e acabar com a polêmica”, encerra ele.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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