sexta-feira, 20 de março de 2009

Guerra dos Emboabas - Amor à terra?


Sempre considerada um levante nativista, a Guerra dos Emboabas, na verdade, opunha dois grupos que queriam as mesmas coisas: ouro e poder político
Adriana Romeiro

O episódio é famoso. Bandeirantes paulistas descobrem enormes jazidas de ouro na região de Minas Gerais e reclamam exclusividade em sua exploração. Os achados atraem muitos portugueses e pessoas de todas as partes do Brasil. Esses forasteiros são pejorativamente chamados de “emboabas” – para alguns, a palavra designava o indivíduo que cobria as pernas para protegê-las dos perigos dos sertões. As tensões entre os dois grupos culminam em um conflito armado que ficou conhecido como Guerra dos Emboabas. Há exatos 300 anos.

O confronto entre paulistas e emboabas já foi tema de um sem-número de livros e estudos. No entanto, pouco se avançou no conhecimento do episódio. Ao longo dos anos, houve um debate acalorado e polarizado que nada mais fez do que mascarar as reais motivações da guerra. Ao contrário do que se defendeu por muito tempo, o fato é que nem os bandeirantes nem os emboabas eram movidos pelo amor à terra.

O levante emboaba entraria para os anais da história mineira e para a memória local como o evento mais formidável das origens da capitania. Prova disso é o poema épico “Vila Rica”, no qual Manuel da Costa narra o nascimento da vila mineira partindo do conflito entre paulistas e emboabas:

Levados de fervor, que o peito encerra
Vê os Paulistas, animosa gente,
Que ao Rei procuram o metal luzente
Co’as próprias mãos enriquecer o erário.

Mas ainda no século XIX deixa de ser um conflito local em torno da posse das minas de ouro para se tornar um capítulo memorável na biografia da jovem nação. Na pena de historiadores como Affonso de E. Taunay, J. Soares de Mello, Capistrano de Abreu e Isaías Golgher, a Guerra dos Emboabas ganha grandes proporções e se transforma em uma luta sangrenta e implacável do povo brasileiro em nome da liberdade contra o domínio tirânico da metrópole.

Esse tipo de interpretação floresceu em torno do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), preocupado em estudar e valorizar os processos que levaram à independência do país. Ao cunhar a expressão “revoltas nativistas”, aqueles historiadores pretendiam designar os conflitos coloniais marcados por um incipiente sentimento nacionalista. Mas, ao contrário de outros episódios do gênero – como a Revolta de Beckman, a Guerra dos Mascates, o Motim do Maneta e a Revolta de Vila Rica –, a Guerra dos Emboabas apresentava uma dificuldade: qual era, afinal, o grupo social imbuído desse caráter autonomista ou nacionalista? Quem seriam os verdadeiros defensores da causa nacional? A questão ainda dividia a historiografia no século XX: de um lado ficaram os partidários dos paulistas; de outro, os dos emboabas.

Os pró-paulistas, engajados na exaltação da figura do bandeirante, dominaram os estudos sobre a Guerra dos Emboabas entre os anos 1920 e 1940. Para autores como Alfredo Ellis Júnior, Teodoro Sampaio e Taunay, o episódio foi, antes de tudo, o “noviciado da liberdade para a terra de Santa Cruz”. Os homens do Planalto de Piratininga seriam os legítimos representantes da nação brasileira, os defensores da pátria contra a cobiça de Portugal.

Apesar de dominante, essa não foi a única interpretação a respeito do conflito. Em uma chave oposta, outra corrente historiográfica defendeu uma interpretação inteiramente oposta: identificavam na causa emboaba as sementes do sentimento nacional. Seus argumentos: os rebelados aclamaram Nunes Viana como governador local, em franca desobediência à Coroa portuguesa. O ato seria uma afirmação de projeto autonomista, pondo em xeque o domínio metropolitano. O historiador Isaías Golgher, russo radicado em Belo Horizonte, é o grande defensor desta tese. Para ele, a Guerra dos Emboabas foi “a primeira guerra civil nas Américas”, um movimento de resistência que culminaria mais tarde com Tiradentes.

Mas, afinal, quem tem razão? Teriam sido os emboabas os precursores da liberdade contra o domínio metropolitano, como quis Golgher? Não exatamente. Desde o início do conflito, o partido emboaba se apresentou como representante legítimo dos interesses de Portugal contra a turba de paulistas insubmissos e rebeldes. Inspirados no exemplo de Portugal sob o domínio da Espanha entre os anos de 1580 e 1640, os emboabas comparavam a libertação das Minas Gerais com a Restauração lusitana. Segundo eles, em ambos os casos era o povo português que se insurgia contra a opressão em nome da liberdade.

É revelador, por exemplo, o fato de o Conselho Ultramarino, órgão responsável pela administração colonial, ter simpatizado com a luta dos emboabas. O governador Antônio de Albuquerque, enviado para promover a pacificação dos sertões, chegou a ser orientado para que fosse em tudo favorável aos emboabas. E assim, apesar de Nunes Viana ter deixado seu cargo, a grande maioria dos emboabas foi mantida em seus postos. Em 1709, a geração heróica dos descobridores paulistas abandonaria a cena mineira para buscar ouro nos sertões de Goiás e Mato Grosso.

Seriam então os paulistas os precursores da Independência brasileira? Também não é bem isso. Apesar da força avassaladora das interpretações tradicionais, os paulistas não nutriam um ódio especial pelos portugueses. Para eles, emboaba era, sobretudo, o forasteiro, fosse ele carioca, pernambucano, baiano ou português. Tampouco se bateram por um ideal de libertação nacional ou pela contestação da opressão metropolitana. O que estava realmente em jogo era a convicção de que, como responsáveis pela descoberta e pelo povoamento dos sertões, eles mereciam privilégios e prerrogativas especiais na administração da região.

Para se ter uma idéia, em 1705, quando a supremacia política dos paulistas começava a se enfraquecer ante o avanço dos forasteiros, o prestigiado sertanista Garcia Rodrigues Pais chegou a escrever ao rei implorando, em tom ressentido, que os cargos ficassem nas mãos de seus patrícios. Pouco antes, a Câmara da Vila de São Paulo também se dirigira ao rei para pedir o monopólio das terras a serem repartidas na região mineradora. Os paulistas reivindicavam mesmo era o controle político. Não porque fossem vassalos rebeldes em luta contra o poder metropolitano, mas pelo chamado “direito de conquista”, uma noção jurídica tradicional do Antigo Regime português, que assegurava aos descobridores um tratamento privilegiado por parte da Coroa.

Entre uma e outra versão, o que se percebe é que muito do que se escreveu até recentemente sobre a guerra deriva quase exclusivamente das interpretações divulgadas por paulistas e emboabas ainda no século XVIII. Assim foram se perpetuando as acusações de lusofobia da parte dos paulistas e as alegações de que os emboabas seriam movidos pela cobiça desenfreada. Ambas as visões são pra lá de parciais e tendenciosas, o que acabou polarizando o conflito.

O que se pode concluir de tanta discórdia é que, na verdade, a Guerra dos Emboabas não foi, de modo algum, uma revolta nativista. Ponto final. Mesmo se restringirmos o conceito de nativismo à acepção corrente no século XVIII, isto é, de sentimento de amor à pátria, ainda assim a palavra não se aplica ao conflito. Nem paulistas nem emboabas pareciam movidos pela afeição à terra. O aprisionamento do conflito nesse rótulo nativista impediu gerações de historiadores de perceberem que, por trás das divergências entre os dois grupos, o que existia na época era uma cultura política peculiar. Uma política herdeira tanto das doutrinas que no século anterior tinham legitimado a insurreição de Portugal contra o domínio espanhol quanto do conturbado processo de negociação entre os descobridores e a Coroa em torno da exploração das riquezas minerais.

Paulistas e emboabas eram todos igualmente forasteiros numa terra recém-descoberta. Juntos formavam uma multidão de 50 mil pessoas que fervilhavam à beira dos rios e caminhos, nos sertões distantes e inóspitos, e disputavam lado a lado as lavras e datas minerais. E ali, em meio a essa “multidão vaga e tumultuária”, no dizer dos contemporâneos, confluíam valores e concepções políticas forjados em experiências históricas muito diferentes.

Como bem sabiam os observadores, a guerra era tão-somente uma questão de tempo...

ADRIANA ROMEIRO É PROFESSORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS E AUTORA DO LIVRO PAULISTAS E EMBOABAS NO CORAÇÃO DAS MINAS: IDÉIAS, PRÁTICAS E IMAGINÁRIO POLÍTICO NO SÉCULO XVIII (UFMG, 2008).

Saiba Mais - Bibliografia:

GOLGHER, Isaías. Guerra dos Emboabas: a primeira guerra civil nas Américas. 2a. edição. Belo Horizonte: Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais, 1982.
MELLO, J. Soares de. Emboabas: crônica de uma revolução nativista – documentos inéditos. São Paulo: São Paulo Editora, 1929.
SUANNES, S. Os emboabas. São Paulo: Brasiliense, 1959.

Em busca do ouro

A Guerra dos Emboabas foi um confronto travado entre 1708 e 1709 pelo direito de exploração das recém-descobertas jazidas de ouro no sertão das Minas Gerais. Responsáveis pelos achados, os paulistas se instalaram na incipiente estrutura administrativa ali montada e reivindicaram o direito exclusivo de exploração. No entanto, logo que a notícia da descoberta se espalhou, milhares de pessoas migraram para a região, ficando pejorativamente conhecidas como emboabas, em referência às aves de mesmo nome. O aumento considerável do contingente de forasteiros desequilibrou a frágil balança dos poderes locais, ameaçando o domínio dos paulistas. O conflito armado constitui o ápice de uma longa série de pequenos incidentes. Em outubro de 1708, os emboabas iniciam o levante com um ataque de surpresa ao arraial do Sabará sob o comando de Manuel Nunes Viana. Português de origem humilde, Nunes Viana seria logo aclamado governador. Uma afronta direta à Coroa, já que a região estava sob a jurisdição do governador do Rio de Janeiro, D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre. Ademais, a escolha dos governantes era prerrogativa do rei. Em agosto de 1709, menos de um ano depois do início do conflito, D. Antônio de Albuquerque, recém-nomeado governador do Rio de Janeiro, pisa em solo mineiro determinado a pôr fim à guerra. Ao contrário do seu antecessor, que havia tentado apaziguar os ânimos mas acabou sendo expulso e ameaçado de morte, Albuquerque alcança um êxito surpreendente. Ele destitui Nunes Viana, mas conserva a composição da estrutura administrativa emboaba. No fim, a guerra se encarregou de afastar os paulistas da região, abrindo caminho para a adoção de um novo projeto político.

Revista Nossa Historia - Biblioteca Nacional

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