O Antigo Regime pela visão de Alexis de Tocqueville
José Miguel Nanni Soares
As pessoas de todas as épocas carão espantadas ao ver as ruínas dessa grande casa de França que parecera destinada a estender-se por toda a Europa; mas os que lerem atentamente sua história compreenderão sem dificuldade sua queda… Quase todos os vícios, quase todos os erros, quase todos os preconceitos funestos que acabo de descrever deveram, quer seu nascimento, quer sua duração, quer ainda seu desenvolvimento, à arte que a maioria de nossos reis teve em dividir os homens, a m de governá-los mais absolutamente.”
Cunhado pelos franceses nos primórdios da Revolução de 1789 para demarcar a abrupta e radical ruptura efetuada na ordem do tempo – o início de uma nova era de liberdade e de igualdade em oposição ao passado de “despotismo” (monárquico) e de “privilégios” (da aristocracia/nobreza) que se buscava abolir -, o termo “Antigo Regime” recebeu seu primeiro grande tratamento historiográ fico na obra-prima do conservador-liberal Alexis de Tocqueville (1805-1859), O Antigo Regime e a Revolução, lançada em 1856.
É certo que antes de Tocqueville os historiadores liberais da Restauração (como Adolphe Thiers, Augustin Thierry e François Guizot) voltaram-se para o passado monárquico absolutista da França, visto como uma fase de transição entre o feudalismo e o sistema representativo, e cuja dinâmica interna fora marcada pela aliança entre a monarquia e o Terceiro Estado (vale dizer, a burguesia) contra a nobreza.
Sobretudo nas obras de Thierry e de Guizot, autores amplamente conhecidos por Tocqueville, a história da França era abordada sob o prisma da “evolução”, de modo que a Revolução de 1789 representava o coroamento do longo trabalho de ascensão política e social da burguesia, com a consequente adoção do regime representativo, sob os auspícios da monarquia francesa. Ou melhor, a Revolução fora acima de tudo uma necessária correção de rota ante a “reação nobiliárquica” do século XVIII (iniciada após a morte de Luís XIV, estendeu-se até a Revolução e explicaria o radicalismo da mesma), cuja repetição tratava-se de evitar durante a Restauração.
No entanto, essa historiogra fia liberal enfrentava sérias di ficuldades para responder ao retorno agravado do despotismo em 1793, 1799 e 1851, algo que não se enquadrava no seu modelo analítico filosó fico expresso no conceito de “luta de classes” e vitória das “classes-médias” (portadoras da liberdade política).
Se o terror e a ditadura revolucionários de 1793-4 podiam ser atribuídos à ameaça de invasão externa e à resistência contrarrevolucionária interna, o mesmo não podia ser dito sobre os dois momentos posteriores, quando o sistema liberal-representativo da classe-média sucumbira novamente ao despotismo político.
Diante disso, além de problematizar algumas interpretações historiográ ficas que, na esteira do discurso revolucionário, de finiam a Revolução como uma ruptura
completa com o passado, Tocqueville enxergava no Antigo Regime um fator subversivo das relações sociais e políticas na história francesa, na medida em que corrompeu o princípio aristocrático do feudalismo sem extingui-lo.
Como sabem os leitores de O Antigo Regime e a Revolução, a subversão em questão foi a que o Estado monárquico operou sobre a velha sociedade feudal, quando o poder político, então indistinto da superioridade social, passou a concentrar-se nas mãos do rei por meio do avanço da centralização administrativa. Nas palavras de Tocqueville:
“É a realeza que nada mais tem em comum com a realeza da Idade Média, possui outras prerrogativas, ocupa outro lugar, tem outro espírito, inspira outros sentimentos; é a administração do Estado que se estende por toda parte sobre os escombros dos poderes locais; é a hierarquia dos funcionários que substitui progressivamente o governo dos nobres. Todos estes novos poderes obedecem a procedimentos, seguem preceitos que os homens da Idade Média ignoravam ou reprovavam e que se relacionam com um estado social do qual eles nem sequer tinham ideia.”
Revista Filosofia
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