quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Filósofo do samba

Morreu aos 26 anos, mas foi um divisor de águas na canção popular urbana no Brasil. Livro recém-lançado analisa o uso estratégico do humor e da ironia na obra de Noel Rosa.

Por: Gabriela Reznik


Livro explora sambas em que Noel Rosa usava humor e ironia para falar de coisa séria. A obra é temperada por histórias e curiosidades do universo artístico da época. (imagem: Luiz Fernando Reis/ CC BY 2.0 sobre caricatura de Guilherme Bandeira)


"Vivo escravo do meu samba / muito embora vagabundo". Se no imaginário popular da década de 1920 o malandro era aquele que não queria saber de trabalho, vivia do jogo e na orgia, na obra do cantor e compositor Noel Rosa (1910-1937) – autor dos versos acima –, o personagem recebe outra roupagem. Em sua música, ele está associado à imagem do sambista, que usa do humor e da ironia para expor sua condição marginal na sociedade e criticar os valores dominantes da época.


A  análise é da especialista em educação Mayra Pinto, da Universidade de São Paulo (USP), autora do livro Noel Rosa: o humor na canção, lançado em maio deste ano, mês que marcou os 75 anos de morte do compositor.

Para quem busca uma leitura leve, o livro pode não ser o mais indicado. A autora faz uma análise aprofundada de canções do poeta da Vila, que perpassam sua trajetória musical nos sete anos de intensa produção, até sua morte prematura por tuberculose aos 26.

Por ser uma adaptação da pesquisa de doutorado de Mayra Pinto, o livro traz resquícios da linguagem e organização acadêmica – com introdução, desenvolvimento e conclusão –, tornando-se, muitas vezes, um tanto hermético para os não familiarizados com termos técnicos empregados na análise musical e literária.

Com base nos conceitos filosóficos do pensador russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), a autora foca o papel da ironia na poesia de Noel, explorando os sambas em que apresenta uma abordagem crítica sobre a condição social do sambista, seu jeito “falado” de cantar e sua contribuição para uma nova formatação da canção popular urbana.
A autora foca o papel da ironia na poesia de Noel, seu jeito “falado” de cantar e sua contribuição para uma nova formatação da canção popular urbana

A autora enriquece a leitura com detalhes históricos e curiosidades do universo artístico no qual Noel viveu ao lado dos sambistas do Estácio, cujos principais representantes foram os compositores Ismael Silva (1905-1978) e Nilton Bastos (1899-1931).

Mayra Pinto avalia que o período foi um divisor de águas na trajetória do samba, cujo legado se estende aos dias de hoje. Com pé no samba de roda e no carnaval, o grupo do Estácio revolucionou o estilo da canção, “em que um estribilho fixo era cantado por todos enquanto um solista fazia os improvisos com letras variantes”. Antes, nos sambas tradicionais, não havia uma estrutura única.

No canto, Noel se destaca pelo domínio do discurso falado, cujo maior exemplo, segundo a pesquisadora, é a interpretação da canção ‘Gago apaixonado’. Contrariando o estilo usual da voz impostada, influenciada pelo canto de ópera, “ele se filia ao tipo de interpretação criada magistralmente por Mário Reis, que igualmente tinha uma voz não tão potente e primou por um canto mais ‘falado’”, conta a autora em trecho do livro.


O riso que denuncia

Noel Rosa trocou o futuro “promissor” de médico – cursou um ano da faculdade de medicina – pelo de sambista aos 20 anos de idade. A escolha teria sido determinante para que o samba assumisse um “centro emanente de positividade” na obra do poeta.
“Noel fundou uma voz que canta, amargamente, as vicissitudes de se produzir arte num país em que o reconhecimento do artista pobre não é algo fácil de ser conquistado”

“Noel fundou uma voz que canta, amargamente, as vicissitudes de se produzir arte num país em que o reconhecimento do artista pobre não é algo fácil de ser conquistado”, afirma a pesquisadora. “Mas canta alegremente, e com o orgulho de produzi-la apesar disso.”

Se os versos de Noel provocam riso, também deflagram tensões existentes entre o universo de pobreza e marginalidade do malandro e o mundo do trabalho formal. Segundo a autora, é nesse sentido que o humor se configura como uma estratégia de ‘disfarce’ ao permitir que um viés crítico permeasse suas canções sem deixar margem para censura – que se fazia fortemente presente naquele período

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Na cena-estátua que homenageia o poeta, fincada em Vila Isabel, Noel é servido por um garçom. Apesar da morte precoce aos 26 anos, o compositor tem obra extensa, que marca a história do samba. (foto: Wikimedia Commons/ Junius – CC BY-SA 3.0)

No fim das contas, o livro é uma homenagem ao sambista que, em tão pouco tempo de vida, marcou significativamente a canção popular. Reconhecimento expresso nos versos póstumos compostos por Cartola: “Era o rei da filosofia / Fez da musa o que queria / Zombou da inspiração / Os seus versos ritmados / Por ele mesmo cantados / Tinham bela entoação”.

Noel Rosa: o humor na canção
Mayra Pinto
São Paulo, 2012, Ateliê Editorial
216 páginas

REVISTA CIÊNCIA HOJE

Um comentário:

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