sexta-feira, 8 de abril de 2011

Lenin: sonhador e pragmático


Comandante da Revolução Russa e criador de toda uma corrente do marxismo, Lenin não abria mão de sonhar - mas sempre com os pés muito bem fincados no chão
por Mariana Sgarioni

"Sonhos, acredite neles.” Talvez esta frase seja um breve resumo do principal legado que Vladimir Ilitch Ulianov, apelidado de Lenin, tenha deixado para a humanidade. Até porque foi muito mais que o líder da Revolução Russa. Intelectual e pensador, ele criou uma corrente teórica que influenciou os partidos comunistas do mundo inteiro – o chamado marxismo-leninismo. Seu carisma era tamanho que, mesmo após sua morte, em 1924, o governo stalinista continuou se apoiando em seu nome e sua autoridade.

O grande porta-voz dos oprimidos, na verdade, era um membro da elite. Sim, Lenin vinha de uma família razoavelmente abastada. Seu pai era um inspetor de escolas, simpatizante do czar Alexandre II, enquanto sua mãe era filha de um médico e proprietário de terras judeu. “O passado nobre de Lenin foi ignorado por muito tempo por se tratar de um incômodo para o regime stalinista. Tanto que, na maior parte das biografias da época, dava-se maior ênfase a seu avô, filho de um servo que trabalhou como alfaiate”, afirma o historiador Orlando Figes, professor de História da Universidade de Londres, no livro A Tragédia de um Povo. “Esse avô tinha origens mongóis, como se vê nos traços de Lenin.”

Cárcere produtivo

Nascido em 1870 na cidade de Simbirsk, em uma província do sudoeste da Rússia, Lenin entrou relativamente tarde para a política. Aos 16 anos, ainda era um garoto extremamente religioso, que gostava de literatura e lingüística. Como escreve Figes: “Na juventude, Lenin orgulhava-se de ser filho de um nobre. Uma vez, descreveu-se na polícia como ‘Vladimir Ulianov, de nobre família’. Após a morte do pai, toda a família passou a viver confortavelmente dos arrendamentos e da venda das terras de sua mãe”.

O gosto pelo ativismo político foi herdado do irmão mais velho, Alexander Ulianov, que se envolveu com grupos terroristas revolucionários. Por ter sido cúmplice da tentativa de assassinato do czar Alexandre III, acabou condenado à morte em 1887. Este evento foi um marco na vida de Lenin, que decidiu começar seus estudos de Direito no mesmo ano, na cidade de Kazan. Aos 17 anos, já na universidade, conheceu integrantes de alguns grupos revolucionários e tornou-se marxista.

O Lenin estudante – assim como o escritor, o revolucionário e o futuro dirigente da URSS – era austero. Estudava e trabalhava obsessivamente em cima daquilo que considerava fundamental: entender o desenvolvimento capitalista na Rússia como precondição necessária para o florescimento do socialismo. Para ele, somente um país industrializado e com trabalho assalariado teria condições de elevar a consciência do povo e derrubar o governo opressor czarista. Essas idéias estão no livro O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, considerado um clássico da economia. A obra foi escrita na prisão, assim como a maior parte de seu pensamento (ora produzido atrás das grades, ora no exílio). Lenin foi mandado inúmeras vezes para a Sibéria antes da revolução de 1917, pois era perseguido pelo regime. Na maioria delas, acabava fugindo para a Europa. Durante um desses exílios, em uma região às margens do Rio Lena, ganhou o apelido que ficaria famoso – apenas um dos mais de 160 codinomes que o revolucionário acumulou durante a vida.

Bomba-relógio ambulante

Além do apelido “Lenin” e da oportunidade de pensar à vontade sobre a revolução, o exílio ainda rendeu ao revolucionário um casamento: em uma de suas estadas na Sibéria, ele conheceu a professora e dirigente operária Nadia Krupskaia, sua companheira por toda a vida. “Seu casamento com Nadia nunca implicou sentimentos românticos profundos da parte dele, ou mesmo dela, e deve ter havido ocasiões em que outras mulheres bolcheviques devem tê-lo atraído fortemente”, escreve o historiador britânico Robert Service. Tudo leva a crer que Lenin gostava – e muito! – de mulheres. Especialmente de Inessa Armand, a amante que manteve durante os anos que passou no exílio em Paris. Inessa era uma charmosa intelectual, ótima pianista, fluente em russo, francês e inglês e engajada na facção bolchevique francesa. “Ele jamais teria amado uma mulher de cujas opiniões discordasse e que não fosse uma camarada em seu trabalho”, disse Nadia sobre a amante do marido, após a morte de Lenin.

O revolucionário tinha um gênio forte e intempestivo. Era uma bomba-relógio ambulante: suas explosões de raiva tornaram-se lendárias no Partido Comunista. “Pessoalmente, não tinha qualquer ambição por matar, mutilar ou testemunhar qualquer barbaridade. Por outro lado, sentia um prazer cruel em recomendar tal violência”, afirma Service. O historiador ainda observa que Lenin raramente sorria e reprimia a diversão. Detestava o cinema e chegou a proibir seus companheiros de “gastar energia em coisa tão inútil”. Era um homem de hábitos simples. Tinha apenas uma empregada, dormia em um quarto reservado a serviçais no Kremlin e negava-se a queimar madeira para se aquecer no frio. Tinha horror à idéia de se transformar em mito – não permitia sequer que um retrato seu fosse colocado na parede.

A saúde de Lenin, ao contrário de sua personalidade, era muito frágil. Ele tinha úlcera, enxaqueca, erisipela e insônia crônica. Nos últimos dois anos de vida, sofreu vários derrames, que o incapacitaram de falar e escrever. A causa oficial de sua morte, em 1924, foi arteriosclerose cerebral. Mas estudos posteriores apontam que ele pode ter morrido de sífilis – um fato supostamente escamoteado por Stálin, cuja intenção era torná-lo uma lenda. Lenin, provavelmente, não se incomodaria com tal revelação. Afinal, ele odiava mitos. Gostava de ser considerado um homem como outro qualquer, simplesmente humano, que tinha virtudes, fraquezas e sonhos. Em suas próprias palavras: “É preciso sonhar, mas com a condição de observar atentamente a vida real”.


Saiba mais

Lenin – A Biografia Definitiva, Robert Service, Difel, 2006
Valendo-se de arquivos recentemente liberados, o autor uniu a vida particular e a atividade pública de Lenin – um retrato minucioso do fundador da URSS.


Líder eterno
Giovana Sanchez

Avesso a adorações e cultos de qualquer espécie, Lenin desejava ser enterrado em um cemitério modesto de Petrogrado, ao lado da mãe. Mas quando morreu, vítima de uma seqüência de derrames, em janeiro de 1924, seus herdeiros no comando da recém-criada URSS tiveram uma idéia muito mais original. Múmias estavam na moda. Um ano antes, a de Tutancâmon havia sido encontrada no Egito pelo britânico Howard Carter, naquela que seria considerada a maior descoberta arqueológica de todos os tempos. “Ora”, devem ter pensado os comunistas, “por que não eternizar nosso herói, tal qual um faraó?”. Dito e feito. Lenin acabou tendo seu corpo embalsamado e exposto permanentemente à visitação pública, em um mausoléu construído só para ele na Praça Vermelha, em Moscou. Hoje, quase 85 anos depois, sua múmia é a maior atração turística da cidade e umas das principais de toda a Rússia.

O processo de mumificação jamais foi revelado e permanece guardado a sete chaves, como um verdadeiro segredo de Estado. Mas sabe-se que algumas das técnicas empregadas podem ter sido as mesmas utilizadas em outras múmias modernas, como a do líder vietnamita Ho Chi Minh e a da ex-primeira-dama argentina Evita Péron. Os fluidos corporais, entre eles o sangue, foram drenados, enquanto uma solução capaz de alterar a estrutura das proteínas e eliminar bactérias provavelmente foi injetada nas artérias. Sabe-se também que a múmia de Lenin recebe banhos químicos anuais, com produtos a base de glicerol e acetato de potássio, que evitam a decomposição do corpo e mantêm a elasticidade da pele. As mãos e o rosto passam por retoques diários, que garantem uma aparência mais “viva” a essas partes do corpo. E as roupas, 100% esterilizadas, são trocadas periodicamente.
Soldados vigiam a movimentação dentro e fora do mausoléu 24 horas por dia. O controle sobre os visitantes é rígido. “Ninguém pode parar diante do caixão nem tirar fotos”, conta o estudante brasileiro Gustavo Schmidt, que morou na Rússia durante um ano e foi ver a múmia de perto duas vezes. “Um cordão de isolamento mantém as pessoas a cerca de 1,5 metro de Lenin”. Para o administrador de empresas Rodrigo Souza, que esteve em Moscou em junho de 2007 e também visitou o mausoléu, o que mais impressiona é o estado de conservação do corpo. “Nem parece real, de tão perfeito que está.” Os cientistas russos responsáveis pela manutenção da múmia garantem: se depender apenas de seus cuidados, ela continuará exatamente assim – perfeita – por pelo menos mais um século.

Revista Aventuras na História

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