Chega de Saudade - É o marco zero do movimento. Saiu primeiro em maio de 1958, na voz de Elizeth Cardoso, com João Gilberto no violão, num disco todo feito de parcerias entre Tom Jobim e Vinicius de Moraes, o famoso 'Canção do Amor Demais'. Foi a primeira vez que se ouviu a tal batida da bossa nova: o violão único de João, que todo os jovens músicos da época tentaram imitar.
Mas o próprio João Gilberto, que não saiu nos créditos do disco da Elizeth, teimava - ainda bem - em fazer a sua própria versão de 'Chega de Saudade', Com a ajuda de Tom Jobim, acabou gravando um histórico compacto em 1958, que trazia 'Chega de Saudade' de um lado, e do outro 'Bim Bom' (uma rara composição do próprio João). Foi a primeira vez que se ouviu a tal da batida casada à interpretação única de João Gilberto - e que depois todo mundo quis imitar também. Depois desse compacto, pode-se dizer que a bossa nova estava de fato inaugurada.
A gravação do compacto foi uma verdadeira epopéia. João Gilberto ainda não era famoso, mas já era o perfeccionista até hoje capaz de enlouquecer técnicos e orquestra. Houve brigas com os músicos, com os técnicos e também com Tom Jobim, como narra Ruy Castro. Houve até um motim, quando os músicos se recusaram a continuar a gravação. Depois foram acalmados, mas aí foi a vez de João se recusar a cantar... Ou seja, 'Chega de Saudade', de quebra, inaugura também parte do vasto folclore que cerca João Gilberto, síntese maior da bossa nova.
Garota de Ipanema - Estreou em 1962, no histórico show do Bon Gourmet, no Rio, que reuniu Tom Jobim, Vinicius de Moraes e João Gilberto. O impacto da música foi tamanho que, conta Ruy Castro em 'Chega de Saudade', ninguém lembra que na mesma noite também estrearam outros clássicos absolutos: 'Só Danço Samba', 'Samba do Avião' e 'Samba da Bênção'.
Não, a música não foi composta no bar Veloso, depois rebatizado Garota de Ipanema, esquina da Prudente de Moraes com Montenegro (depois rebatizada Rua Vinicius de Moraes). Castro conta que Tom fez a melodia em sua própria casa para uma comédia muscial que nunca saiu do papel. Vinicius pôs a letra em Petrópolis.
Mas é fato que foi no Veloso que a dupla viu a menina passar, várias vezes, nem sempre a caminho do mar. Aliás, era este o título original: 'Menina que Passa'. A menina, como se sabe, era a Helô Pinheiro, então com 19 anos. Morava na Montenegro e costumava passar pelo Veloso para comprar cigarro para a mãe.
Isso hoje é notório. Mas em 1962 poucos sabiam quem era a musa inspiradora da canção. Só em 1965 Tom e Vinicius revelaram tratar-se de Helô, já com 22 anos.
'Garota de Ipanema' foi um estouro: no Brasil, depois nos Estados Unidos, depois no mundo todo. Teve mais de 40 gravações nos dois primeiros anos, segundo Ruy Castro. Virou uma espécie de Monalisa da música brasileira. Com 'Yesterday', dos Beatles, disputa o posto de música mais tocada no mundo. Ganhou um sem número de interpretações e versões. O estadao.com.br apresenta aqui trechos de 98 versões compiladas pela própria garota de Ipanema .
Águas de Março - A bossa nova já era coisa do passado quando saiu o 'Disco de Bolso - O Tom de Antonio Carlos Jobim e o Tal de Joao Bosco', encartado numa edição do semanário 'Pasquim' de 1972. Continha de um lado 'Águas de Março', cantada pelo próprio Tom, do outro 'Agnus Sei', do estreante João Bosco. Mas a versão definitiva de 'Águas de Março' é o dueto que consta do antológico 'Elis e Tom', de 1974, recentemente remasterizado. Música e álbum são constantemente citados entre os melhores de toda a música, e, eventualmente, os melhores.
Influência do Jazz - Diz a letra: 'Que o samba balança de um lado pro outro / O jazz é diferente pra frente, pra trás / E o samba meio morto, ficou meio torto / Influência do Jazz'. É uma resposta - que acaba irônica - à polêmica sem fim que credita a bossa nova à música americana e ignora a importância do samba para sua gênese. Mas para além da ironia, 'Influência do Jazz', como parte do ótimo terceiro disco de Carlinhos Lyra, 'Depois do Carnaval', de 1963, ilustra também uma guinada para alguns dos mais nomes notórios da bossa nova: do asfalto ao morro, do idílio ao engajamento político. 'Conheci Cartola, Zé Keti, Nelson Cavaquinho, Elton Medeiros e João do Vale e aproximei a música do morro e a música rural da música da classe média', diz Lyra, em texto auto-biográfico, disponível em seu site. Nara Leão, musa do movimento, também acabou deixando 'o amor, o sorriso e a flor' para trás e, no ano seguinte, estreava em disco com 'Opinião de Nara', cantando os sambas de Zé Kéti e João do Vale.
Corcovado - No original, seu primeiro verso quase pôs a música toda a se perder: 'Um cigarro, um violão...'. Até que João Gilberto, incomodado, propôs a Tom Jobim reformulá-la. 'Um cantinho, um violão/este amor, uma canção' acabou tornando-se um dos versos mais conhecidos do repertório nacional. Foi com 'Corcovado', em português e em inglês ('quiet nights of quiet stars'), que Tom Jobim cativou a pláteia norte-americana no histórico show do Carnegie Hall, que em 1962 projetou a turma da bossa nova no exterior.
O Barquinho - Roberto Menescal e turma chamavam de 'samba canseira' a música brasileira que antecedeu a bossa nova. 'Era tudo feito com palavras sofridas e não batia com uma geração feito a nossa, que vinha com a cabeça voltada para a natureza, para o dia, para o sol', diz, , na autobiografia que leva seu nome, da coleção 'Gente'. 'Nós (...) trouxemos o sal, o sol e o sul (...). E foi uma festa', lembra Roberto Menescal. 'O Barquinho', dele e Ronaldo Bôscoli, é sua música-síntese. Um dos maiores sucessos da bossa nova, 'O Barquinho' também ilustra certa predileção do movimento pelos diminutivos: a tardinha, o barquinho, o cantinho, o sambinha, o beijinho, o banquinho, etc.
Ah, sim. O barquinho em questão existiu mesmo. Era uma traineira (Tiago II) que Menescal, grande mergulhador, costumava alugar em Cabo Frio. Mas a música não foi composta em alto-mar, não. É uma das tantas que saíram dos encontros realizados no apartamento de Nara Leão, na Avenida Atlântica, Ipanema.
Meditação - É de 'Meditação' o verso que batiza o segundo álbum de João Gilberto, 'O Amor, o Sorriso e a Flor'. Diz que: 'Quem acreditou / No amor, no sorriso, na flor / Então sonhou, sonhou...'. O disco todo é como um marco da maioridade da bossa nova. Além de 'Meditação', aparecem mais duas parcerias dos amigos de infância Tom Jobim e Newton Mendonça ('Samba de uma Nota Só' e 'Discussão'), três só de Tom Jobim ('Corcovado', 'Outra Vez', 'Só em Teus Braços'), uma de Carlinhos Lyra e Ronaldo Bôscoli ('Se é Tarde Me Perdoa'), uma rara composição do próprio João Gilberto em homenagem ao amigo Luiz Bonfá ('Um Abraço no Bonfá') e ainda: 'O Pato' (Jayme Silva - Neusa Teixeira), 'Amor Certinho' (Roberto Guimarães), 'Trevo de Quatro Folhas' (M.Dixon - H.Woods) e 'Doralice' (Antônio Almeida - Dorival Caymmi).
Bim-Bom - João Gilberto, o intérprete, é figura central da bossa nova. Seu violão é a marca registrada do gênero, e ele mesmo tornou-se o ídolo de quase todos os ídolos do período. Já seu trabalho como compositor é uma espécie de lado B. Ele gravou apenas seis músicas de sua autoria: 'Hô-bá-lá-lá', 'Bim-Bom', 'Um Abraço no Bonfá', 'Undiú', 'João Marcello', 'Acapulco' e 'Valsa'. Vendeu os direitos das três primeiras a preço de banana: 307 dólares (em 1961), conta Ruy Castro.
Samba de Uma Nota Só - Clássico instantâneo da bossa nova e espécie de carta de intenções. Diz que bossa nova é samba (ou 'sambinha') e decreta que 'a base é uma só'. Mais uma da dupla Tom Jobim/Newton Mendonça.
Se todos fossem iguais a você - 'Se todos fossem iguais a você' antecipa a bossa nova. É de 1956, dois anos antes, portanto, da 'fundação' do gênero. Foi a primeira criação de uma das mais brilhantes e frutíferas parcerias do gênero: Tom e Vinicius. Foi feita no famoso sobrado da Nascimento Silva 107, e, Ipanema, onde, quatro depois, como cantado em 'Carta ao Tom 74', a dupla ensinaria a Elizeth Cardoso as canções da ' Canção do Amor Demais' - aí sim, inaugurando oficialmente a bossa nova.
'Se Todos Fossem Iguais a Você' foi composta para musical 'Orfeu da Conceição', que fez enorme sucesso logo na estréia, no Teatro Municipal, com Haroldo Costa e Dirce Paiva no elenco, e cenário de Oscar Niemeyer.
O Pato - João Gilberto já cantava 'O Pato' com os Garotos da Lua, muito antes da bossa nova, mas foi só no final dos anos 50 que a música tornou-se uma verdadeira obsessão. Passava horas seguidas tocando e cantando 'O Pato'. Vem daí a lenda de que seu gato, que morreu após cair do parapeito do apartamento, teria na verdade cometido suicídio porque não suportava mais escutar 'O Pato'. A música é um dos sucessos do segundo disco de João Gilberto, 'O Amor, O Sorriso e A Flor'.
Desafinado - Nasceu como uma brincadeira cruel dos parceiros Tom Jobim e Newton Mendonça: compor uma apologia dos cantores desafinados (que eles conheciam da noite) numa base musical complexa o bastante para embaraçá-los. Ficou praticamente pronta em uma só noite e consagrou a expressão que já era moda entre os jovens compositores: 'Isto é bossa nova, isto é muito natural'.
Boa noite
ResponderExcluirQue post magnífico! Só conhecia algumas das músicas apresentadas e agora fico a saber mais sobre a bossa nova, que tanto gosto!
Um abraço
Mil gracias por esta belleza. Muito, muito obrigado.
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