sábado, 26 de março de 2011

O Chile sombrio de El Rey


Elias Thomé Saliba
5 de novembro de 2010
Militante do partido que elegeu Salvador Allende narra três décadas de história do país a partir do golpe de 1973

Rememorar acontecimentos dolorosos, sobretudo aqueles com os quais tivemos maior envolvimento, é tarefa difícil. Exige um esforço de distanciamento construir um texto em que todos se reconheçam nas sombras do passado. Esta qualidade se destaca na narrativa de Heraldo Muñoz em A Sombra do Ditador – Memórias Políticas do Chile sob Pinochet (Jorge Zahar, 396 págs., R$ 59), uma reconstrução equilibrada da dramática história chilena, abrangendo o período que vai do golpe militar responsável por derrubar Salvador Allende, em 1973, até a eleição de Michelle Bachelet à Presidência, em 2006.

Militante do Partido Socialista, que elegeu Allende, Muñoz foi personagem engajado nessa conjuntura traumática. Escapou de ser preso e torturado porque o oficial em seu encalço errou de endereço e a corajosa vizinha, mesmo pressionada pela polícia, não o denunciou. Em quatro anos de exílio, meio forçado pelas circunstâncias, casou-se com uma norte-americana, formou-se na Graduate School of International Studies da Universidade de Denver. Foi colega de classe de Condoleezza Rice, chamada carinhosamente pelos colegas de “Condi” e empossada secretária de Estado do país entre 2005 e 2009. Retornou ao Chile e tomou parte ativa na coligação de oposicionistas a Augusto Pinochet até a derrota do ditador no Plebiscito de 1988, tornando-se peça central na área diplomática do governo de Ricardo Lagos. Atualmente responde pelo cargo de embaixador do país na Organização das Nações Unidas.

Sua história pessoal, contudo, aparece muito pouco no livro, perdendo para uma narrativa vibrante, calcada em fontes confidenciais, entrevistas, papéis de militantes e a vasta cobertura jornalística da época. Em 2001, como vice-ministro das Relações Exteriores do Chile, recebeu do governo americano caixas com milhares de documentos estatais das ações estratégicas dos EUA no Chile entre 1970 e 1990, recém-liberados ao acesso público graças às pressões realizadas no contexto da prisão de Pinochet em Londres. Com base nessa documentação, o livro reafirma o papel dos EUA, notadamente do presidente Richard Nixon e do secretário Henry Kissinger, no golpe contra Allende, reconstituindo inclusive os diálogos entre os dois personagens.

Nixon insistia que, se não tivesse agido contra Allende, Chile e Cuba teriam formado um “sanduíche vermelho” que poderia “colorir toda a América Latina”. A resposta de Kissinger é despida de quaisquer sutilezas: “Não vejo por que nós precisamos ficar passivos, olhando um país se tornar comunista por causa da irresponsabilidade do seu povo”. Os diálogos foram apenas os vestígios mais salientes da rede de ações ilegais, pagamentos secretos, informações distorcidas e encobrimento da verdade para desestabilizar Allende, que se transformaria em uma espécie de “Watergate da política externa” do governo Nixon.

Mesclado às muitas histórias da época, o livro também traz um instigante esboço da personalidade de Pinochet e da sua carreira militar. Como dissimulador, Pinochet era um artista, mas de capacidade intelectual limitada, quase sempre compensada com um sentido altamente perspicaz de autopreservação. Disfarçava mal apenas o seu irreprimível desejo de exercer tutela, que se revelava num dos pitorescos versos de El Rey, sua canção favorita, segundo o qual Com dinheiro ou sem dinheiro, eu sempre farei o que quiser, pois ainda sou o rei. Muñoz mostra que Pinochet nunca foi plenamente convertido ao evangelho do livre mercado, propagandeado e posto em prática no Chile pelos Chicago Boys e seu inspirador, Milton Friedman, já que era profundamente enraizado na mentalidade hierárquica do Exército. Ainda assim, o ditador não teve muita escolha, pois o remédio amargo prescrito pelos Chicago Boys apelava para os seus pendores autoritários. Quem já fora um dia prejudicado por uma boa dose de disciplina rígida?

Muñoz escreve páginas detalhadas, cheias de bonomia irônica, sobre os mais variados temas dos anos terríveis de Pinochet. Conta toda a história da Dina, sua polícia secreta que perseguia dissidentes no mundo todo e, mais importante, permitia que o ditador mantivesse, sob rédeas curtas, seus inúmeros inimigos dentro das Forças Armadas. Não esconde nada dos casos controversos, como os assassinatos do general Carlos Prats e de Orlando Letelier. Revela, em detalhes, as tentativas frustradas de matar Pinochet, incluindo a famosa emboscada em Cajon del Maipo, em 1986.

Impossível não perceber os níveis ridículos atingidos pela censura ditatorial de Pinochet nas muitas histórias minuciosamente narradas nesse livro. Até um jornal declaradamente pró-governo como o La Segunda chegou a ser fechado por um dia em razão de ter anunciado o aumento do preço dos cigarros na primeira página, e com isso “alterado a tranquilidade do povo”, segundo justificou o censor. Após o Plebiscito em 1988, o governista La Nación chegou às bancas com quase um dia de atraso, pois teve de substituir a página às pressas para reconhecer a vitoria do “não”. No mesmo dia saiu a manchete, quase humorística, do oposicionista Fortin Mapocho: “Ele concorreu sozinho e ainda chegou em segundo!”

O riso apenas encobria as tragédias. Por um capricho da natureza, também foi impossível esconder 21 corpos de oposicionistas (descobertos em 1989) enterrados no deserto do Atacama. Paradoxalmente, as condições extremamente secas do deserto os mantiveram bem preservados. Foram rapidamente identificados porque portavam carteiras de identidade e, alguns deles, cartas de despedida aos familiares. Muñoz ainda conta toda a história da Comissão Rettig, a “Comissão da Verdade”, que concluiu seu relatório em 1991 apresentando dados que chocaram a opinião pública internacional, desdobrando-se em inúmeros processos de reparação.

Além das muitas histórias documentadas, o livro é importante ao desmistificar o próprio regime de Pinochet, o qual, ao combinar medidas ferreamente autoritárias na política com medidas econômicas liberais orientadas para o mercado, chegou a ser apresentado ao mundo como um paradigma. Muñoz mostra que o modelo chileno criou dois países. Um, empresarial e moderno, caracterizado pela construção de arranha-céus e a florescente exportação de frutas, salmão e madeira. O outro, economicamente estagnado e quase socialmente isolado pelo autêntico apartheid econômico no qual o preço social pago pelos sacrifícios humanos talvez tenha sido muito alto. Ao analisar os fatos, o livro se aproxima da complexidade da história, sempre incompatível com o maniqueísmo simplista das memórias pessoais.

Revista Carta na Escola

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