sábado, 26 de março de 2011

Churchill, o militar e o mito


Leandro Antonio de Almeida
9 de fevereiro de 2011
Nas comemorações, em Londres, dos 60 anos da Segunda Guerra Mundial em 2005, a leitura artística de discursos do primeiro-ministro britânico da época, Winston Churchill, foi uma das movimentadas atrações. A associação de seu nome com a atuação da Grã-Bretanha no conflito é tão latente que até hoje gera uma enxurrada de biografias, com tons que variam entre o enaltecimento pela defesa da ilha e a responsabilização pelas inúmeras mortes de soldados ingleses. Todas configuram fios da trama que tornam Churchill mundialmente um dos mitos políticos e militares do século XX.

Winston Churchill nasceu em 1874, filho de mãe norte-americana e pai da aristocracia inglesa. Randolph Churchill atuou como político na Câmara dos Comuns pelo Partido -Conservador e foi membro de gabinete de governo no reinado da rainha Vitória. Por não corresponder às expectativas do pai nos estudos, em vez de curso universitário, o jovem Winston seguiu carreira militar, passando no exame para cadete na Real Academia Militar em 1893, promovendo-se em 1895 para os 40 Hussardos da Rainha, um renomado regimento de cavalaria.

Tanto Randolph quanto Winston participaram do expansionismo britânico pelo mundo, quando o “império onde o sol nunca se punha” atingiu sua maior extensão. No gabinete, Randolph viu a Grã-Bretanha reforçar seu poder em todos os continentes, como a anexação da Birmânia, em 1885, e a ocupação de territórios africanos, do Egito à África do Sul. Já o jovem Winston Churchill participou de campanha contra tribos afegãs em 1897, da expedição para reconquista do Sudão em 1898 e, no ano seguinte, foi preso no conflito entre os ingleses e os bôeres holandeses na África do Sul. A presença nesses episódios reforçou nele um sentimento difundido em fins do século XIX e início do XX, que pregava um papel civilizatório para as nações europeias, via conquista militar ou predomínio econômico sobre o globo. Winston Churchill foi um ferrenho defensor do imperialismo e do colonialismo britânico, até mesmo quando essa postura já soava inconveniente, a exemplo da questão sobre a autonomia da Índia nos anos 1930, atacando abertamente Mahatma Gandhi no movimento que tornaria o líder hindu outro mito mundial do século XX, símbolo da não violência.

A fuga da prisão na África do Sul, o esconderijo por dois dias no poço de uma mina, o transporte de trem para Moçambique no meio de fardos de lã, e o retorno para a atuação no Exército britânico, descrita por meio de reportagens, valeram a Churchill prestígio para impulsionar sua eleição ao Parlamento em 1900. A partir daí iniciou uma carreira política de altos e baixos, com discursos memoráveis, opiniões controversas, mudanças de partido, impetuosidade nas ações em gabinetes de governo que lhe valiam prestígio ou períodos de isolamento. A carreira política de Churchill não o afastou das relações com os militares. Em 1905 ocupou seu primeiro cargo como vice-ministro para as Colônias, e em 1911 foi nomeado primeiro lorde do Almirantado (ministro da Marinha), participou da organização de tropas britânicas na Primeira Guerra Mundial e foi nomeado ministro das Colônias em 1921. Seus contatos no governo e nas Forças Armadas o mantinham bem informado das questões militares no mundo. Churchill alertou para o que se passava com a Alemanha nazista e advogou pelo rearmamento do país, na contramão dos cortes de gastos militares para investimentos sociais pelo gabinete dos anos 1930, em meio à crise econômica mundial e dolorosas lembranças das mortes do conflito entre 1914 e 1918.

Quando Hitler alcançou o poder pelo Partido Nazista em 1933, iniciou uma política belicista. A Alemanha tinha sofrido pesadas sanções com a derrota na Primeira Guerra, pois o Tratado de Versalhes a responsabilizava pelos prejuízos: pagou altas somas de dinheiro aos vitoriosos Inglaterra e França, perdeu territórios e foi desarmada. Hitler ignorou Versalhes, passou a rearmar o país e a expandir o território alemão. Ocupou a Renânia em 1936, anexou a Áustria em 1938, invadiu a Tchecoslováquia em março de 1939 e, após firmar acordo de não agressão com a URSS de Stalin, invadiu a Polônia em setembro. Como a Polônia era aliada da Inglaterra, esta declarou guerra ao Reich, deflagrando o conflito na Europa.

A construção do mito Churchill, o estadista visionário e determinado, aconteceu nesse contexto. Suas severas críticas aos “apaziguadores” reverteram a seu favor com a deflagração da guerra, valendo o retorno ao cargo de lorde do Almirantado em setembro de 1939 e sua nomeação para primeiro-ministro em maio de 1940. Dois meses depois teve de lidar com os momentos mais difíceis para a Inglaterra. As forças nazistas invadiram e ocuparam o norte do território francês, voltando-se para a ilha. Atacaram bases na costa e, não obtendo resultado, durante cinco meses bombardearam cidades, começando pela capital, Londres. Churchill manteve sua posição de resistir ao ataque alemão, apelando ao patriotismo e à luta em inflamados discursos: “Hitler sabe que ou nos dobra nesta ilha ou perde a guerra. Se pudermos resistir, a Europa poderá ser livre e o destino do mundo voltar-se para um futuro mais promissor iluminado ao sol. Mas, se falharmos, o mundo inteiro (…) mergulhará no abismo de uma nova Idade das Trevas”.

Para a opinião pública, o primeiro-ministro passou a simbolizar a resistência e a luta pela liberdade. Quando, em maio de 1941, Hitler trocou a frente ocidental pela opção de invadir a URSS, deixando de atacar a Inglaterra, seu prestígio estava consolidado, aumentando com a virada na guerra. Churchill procurou convencer o presidente Roosevelt da magnitude do conflito e, contendo seu empedernido anticomunismo, contatou Stalin. Os arranjos formalizaram, na Conferência de Teerã, em 1943, a coalizão entre URSS, Estados Unidos e Grã-Bretanha contra a Alemanha.

No final da Segunda Guerra Mundial, Churchill era uma personalidade de prestígio mundial, bem mais rico em razão do sucesso de seus livros, que lhe valeram o Nobel de Literatura em 1953. Mas, ao contrário do que imaginava, seu partido saiu derrotado das eleições de 1945, motivo pelo qual renunciou ao cargo de primeiro-ministro. Na esfera internacional, percebeu a emergência de uma ordem mundial na qual a Grã-Bretanha perdera o papel de principal potência, disputado agora por EUA e URSS na Guerra Fria. Responsável por difundir a imagem da Cortina de Ferro, reuniu esforços para a formação de uma união europeia. Antes de morrer e ser enterrado com honrarias de chefe de Estado, em 1965, ainda viu o Império se desfazer com a independência política das colônias.

Churchill era consciente do seu papel nos eventos da Segunda Guerra, como também na sua interpretação, ao ponto de ironicamente declarar que “a História será gentil comigo porque eu irei escrevê-la”. Não só escreveu suas Memórias da Segunda Guerra Mundial como seus documentos e discursos foram reunidos no Museu Churchill, em parte disponíveis em www.winstonchurchill.org. A parte mais pitoresca dessa churchilliana on-line apresenta e procura refutar “mitos” pessoais e históricos em torno do líder, como sua compulsão pela bebida ou, ao direcionar suprimentos para zonas de guerra, ter causado na fome de Bengala a morte de milhões de pessoas entre 1943 e 1945. Mas esse esforço não impede apropriações funestas. Em 2003, o chefe do Pentágono, ao planejar a “guerra defensiva” contra o Iraque, comparou Churchill ao presidente dos Estados Unidos. George W. Bush deve ter ficado lisonjeado, pois possuía um busto do estadista britânico em sua escrivaninha.

Leandro Antonio de Almeida é doutorando em História e professor da UFRB

Revista Carta na Escola

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