Fundador da Mangueira, autor de alguns dos mais belos sambas da música brasileira... A face conhecida do grande compositor esconde o homem reservado, que adorava a poesia de Bilac, lia Drummond e Padre Vieira, encantava Villa-Lobos, ensinou e aprendeu com Noel Rosa, mas retratava as pessoas e o cotidiano em que vivia. Sua obra sofisticada está mais viva e conhecida 30 anos depois de sua morte
Por Frédi Vasconcelos
A frase de Nelson Sargento, afirmando que "Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve", talvez corasse o reservado e tímido Angenor de Oliveira, que passou para a história da MPB como Cartola por causa do chapéu-coco que o pedreiro usava para livrar-se do cimento no cabelo. Aliás, curiosidade sobre seu nome é que se chamava Agenor até o dia em que teve de tirar papéis para o casamento e descobriu o “N” a mais em sua certidão, obra de um escrevente criativo. Para, em suas próprias palavras, não ter de mudar toda a papelada, acabou assumindo o novo nome.
As histórias curiosas do jovem nascido no Catete, em 1908, que na sua juventude dizia ser o “pretinho mais bem-vestido de Laranjeiras”, bairro de classe média para o qual se mudou ainda criança, não param aí. Poucos sabem, mas Cartola nasceu no início do século num bairro de classe média por ser neto do cozinheiro do senador Nilo Peçanha, que se tornaria depois presidente e levaria seu avô para o Palácio do Catete. O pai, que era primo da mãe, veio de Campos para se casar e na hora de assinar os documentos teve de confessar à frente do juiz que era analfabeto. Segundo a amiga e biógrafa de Cartola, Marília Barboza, nesse momento declarou que nunca mais passaria tal vexame na frente de outra pessoa. Matriculou-se no Liceu de Artes e Ofícios, aprendeu português, francês e música, e tomou gosto pela poesia. Paixões que passou para o filho, que com ele aprendeu os rudimentos de violão e tomou gosto por poetas que o acompanharam pela vida.
Com a morte do avô, os pais não conseguem manter o padrão de vida e a família acaba se mudando para perto do morro da Mangueira, onde o compositor começa a escrever sua história mais conhecida. Aos 17 anos, ele rompe com o pai, que foi embora da Mangueira e com quem só voltou a se encontrar muitos anos depois. Mas o gosto pela poesia permaneceu. Marília lembra que Cartola tinha um desejo imenso de aprender e lia Olavo Bilac, Guerra Junqueira, Carlos Drummond de Andrade e autores como Padre Vieira. E essa curiosidade também esteve presente num encontro decisivo para a música brasileira, o de Cartola com Noel Rosa, que ia para sua casa no morro. Segundo a biógrafa, Noel pegou a malandragem do ritmo e a melodia do samba do criador da Mangueira. Cartola conversava e observava as letras do Noel e passou também a falar do cotidiano, estilo do compositor de Vila Isabel.
Dessa época, final dos anos 1920 e começo dos anos 1930, há dois fatos marcantes na vida de Cartola. A primeira gravação de um samba seu, “Que Infeliz Sorte”, comprado por Mário Reis, mas gravado por Francisco Alves. E o primeiro samba com que a Mangueira desfilou, “Chega de Demanda”. Há ainda o encontro com outro personagem essencial da música brasileira, Pixinguinha. Embora nunca tenham composto juntos, eram amigos. E o principal assunto entre eles nada tinha a ver com música, mas sim com o fato de que os dois não podiam ter filhos e haviam adotado crianças. Admiravam-se como compositores, mas a diferença entre o samba-canção de Cartola e o choro de Pixinguinha provavelmente não permitiu a parceria.
Mas os dois gênios da MPB estiveram juntos em outro momento, mais precisamente em 1940, quando foram levados por Villa-Lobos para mostrar suas músicas para um dos mais famosos maestros do mundo à época, Leopold Stokowski. Nesse encontro, a bordo do navio SS Uruguai, ancorado no porto do Rio, foram gravadas dezenas de faixas, das quais 16 acabaram lançadas nos Estados Unidos no álbum duplo Brazilian Native Music. Cartola compareceu nessa seleção com “Quem Me Vê Sorrindo”, entoada por ele e algumas pastoras da Mangueira. Provavelmente, o primeiro registro de uma música sua, com sua voz. No Brasil, isso só viria a acontecer em 1968.
Antes, na fase áurea do rádio, vendeu sambas que acabaram gravados por Francisco Alves, Mário Reis, Carmen Miranda, entre outros. Cabe destacar que Cartola, diferentemente de outros compositores, vendia os direitos comerciais de disco, mas fazia questão que seu nome permanecesse. Segundo Marília Barboza, a novidade que interessou a essas estrelas do rádio é que Cartola fazia um samba diferente do maxixe de compositores como Donga. “Havia cansaço de todo mundo em gravar músicas como ‘Pelo Telefone’. Cartola aparece com um samba diferente, que vinha da tradição dos negros bantos, que só apareceram depois da abolição e começaram a botar letra profana no batuque da macumba. Isso era novidade”, afirma.
Passada essa fase, em meados dos anos 1940, quase se vai embora a carreira de Angenor. Depois de ter vendido vários sambas, ganhado pouco dinheiro e nunca gravado um disco, Cartola enfrenta uma série de problemas pessoais, como a morte da primeira mulher. Desentende-se com o pessoal da Mangueira, vai morar em outro bairro e fica “sumido” por quase uma década. Chegaram a dizer que estava morto. E quase, porque nesse período enfrentou uma meningite, foi lavar carros e “tomar conta de um prédio”. Acabou “redescoberto”, em 1956, quando foi tomar café num bar e encontrou com o jornalista Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, que lhe perguntou se não era o grande Cartola. Com a confirmação, Sérgio prometeu tirá-lo daquela vida, o levou para algumas rádios. Cartola voltou a ser visto e reconhecido, embora sem ainda ganhar dinheiro suficiente para viver com sua música. Pouco depois, voltou a trabalhar como contínuo.
O estudioso e autor do Dicionário Houaiss de Música Popular Brasileira, Ricardo Cravo Albin, diz que Cartola foi durante quarenta anos o maior desperdício da música popular, ficou alijado da carreira por conta de uma série de preconceitos. “Pelo fato de morar em morro, ter empregos apequenados ante a visão da aristocracia, viver nos botequins da cidade, ele não teve carreira como Noel, Ary Barroso, Lamartine Babo, Dorival Caymmi, que são seus contemporâneos,” analisa.
Nos início dos anos 1960, fato marcante é a abertura do restaurante Zicartola, na Rua da Carioca, no Centro do Rio, com sua segunda mulher, Zica. Ela comandava a cozinha; Cartola, as músicas. Foi um espaço para a sociedade brasileira ver e rever músicos como Ismael Silva, Nelson Cavaquinho, Zé Ketti, também esquecidos, e jovens iniciantes como Paulinho da Viola e Elton Medeiros, que viria a se tornar parceiro de Angenor. Paulinho, ao recordar esse tempo, emociona-se. “Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Nelson Cavaquinho, essas pessoas não morrem, é o que eu sinto do fundo da alma. Não estou falando da morte física, é claro.”
Ele lembra que já conhecia Cartola de nome e de algumas músicas quando o compositor Hermínio Bello de Carvalho o convidou para ir ao Zicartola. “Na época, não era interessado em composição, queria ser músico, acompanhar outros artistas. “Cartola, Zé Ketti e Elton Medeiros é que me influenciaram e incentivaram a compor. Eles me estimularam e deram muita força”, relata. E o mestre deve ter gostado do que se transformou a criatura, pois sempre que questionado referia-se a Paulinho como seu descendente, aquele cuja música mais se assemelharia à sua.
“Com certeza tenho a influência dele, porque minha admiração era muito grande. Isso é algo do fundo do meu coração, que falei hoje com um amigo. Eu me acho com muita honra um vassalo de Pixinguinha, Cartola, Roberto Silva, Ciro Monteiro... A gente fica teorizando, bota um acorde aqui e ali, mas isso é uma continuação. Sinto-me orgulhoso de fazer parte da linhagem dessas pessoas.”
O Zicartola faliu pelo fato de seus donos serem muito melhores para cozinhar e compor músicas do que para administrar finanças. Cartola voltou a ser gravado por alguns cantores, participou em 1968 do antológico disco Fala Mangueira (sua primeira gravação no Brasil), junto com Odete Amaral, Clementina de Jesus, Nelson Cavaquinho e Carlos Cachaça. Mas sua estreia com voz e composições próprias só seria registrada em 1974, já com 65 anos de idade, pela gravadora Discos Marcos Pereira (veja discografia abaixo).
Marília Barboza diz que quando o disco, que se chama Cartola, foi lançado, “assustou os pesquisadores, os críticos e o público em geral com doze faixas que eram excelentes”. Depois, foram mais três LPs num período de cinco anos, mas muita coisa ainda ficou sem gravar. “Ele deixou comigo uma fita com quarenta músicas inéditas, que passei para a neta dele. Dali algumas coisas foram gravadas, mas poucas. O Nelson Sargento ficou com algumas de memória, mas além dessas novas, nos discos há várias composições maravilhosas que são pouco divulgadas.”
Hoje, 30 anos depois da morte, ele é mais conhecido que em vida. Suas músicas ainda podem ser ouvidas nas gravações de cantoras consagradas como Elis Regina, Nara Leão, de parceiros e amigos como Zé Ketti e Nelson Sargento, Paulinho da Viola, e sua influência é reconhecida em artistas que resgatam o samba, como as bandas Imperial e Republicana, Casuarina e uma série de novos cantores e cantoras.
Paulinho até hoje trata Cartola com deferência e exemplifica como é difícil cantar algumas músicas suas. “Em 1965, quando eu fazia entrevistas para um programa da TV Cultura, a gente recebeu o Cartola. Num dado momento ele tomou a frente e disse que queria cantar um samba novo. Aquilo não estava no roteiro, não sabia o que fazer, mas o diretor mandou seguir em frente. Foi a primeira vez que ouvi “As Rosas Não Falam”. Os que estavam ali presentes, os diretores, o pessoal da técnica, todos ficaram assim sem ter o que falar, comoveu todo mundo. Fiquei tão tocado que não conseguia cantar essa música, me emocionava sempre que tentava, e só consegui cantar e gravar há pouco tempo.”
A obra de Cartola, hoje, é divulgada pela internet, pela TV, pelo cinema, pelo teatro, mas para quem conviveu com ele o personagem era muito maior. Como disse Nelson Sargento, Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve. Homenagem que Sargento continuou a fazer ao compor, depois de sua morte, uma descrição do grande sambista a partir dos títulos e trechos de seus sambas. “Só um Peito vazio descobre que O mundo é um moinho/ E quando isso Acontece a Alegria vai embora/ E as Cordas de aço de um violão solam baixinho/ Uma canção que se chama Disfarça e chora,/ Eu confesso que Tive sim, um Amor proibido/Vai amigo e diz-lhe o quanto eu tenho sofrido/ Mas tudo se ajustará numa linda Alvorada/ O sol nascerá, Pouco importa depois/ Se estamos juntos Nós dois/ O nosso amor brilhará numa noite tão linda/ As Rosas não falam, mas podem enfeitar/ A grande Festa da vinda”.
Box - Cinco discos marcantes
As gravações originais de Cartola, com sua própria voz, aparecem em apenas cinco discos gravados no Brasil.
Fala Mangueira, de 1968, em que grava duas faixas.
Cartola, de 1974, com 12 músicas excepcionais, algumas delas guardadas por décadas como “Quem me Vê Sorrindo” e outras compostas depois, como o sucesso “O Sol Nascerá”, em parceria com Elton Medeiros.
Cartola, de 1976. A sofisticação só foi crescendo, com o lançamento de músicas inesquecíveis como “O Mundo é um Moinho”, “As Rosas Não Falam” e “Cordas de Aço”.
Verde Que Te Quero Rosa, de 1977, com direção artística do maestro Radamés Gnatalli, chamado a pedido do compositor, e músicas como “Autonomia”. Cartola 70 Anos, editado em 1979, um ano antes de sua morte.
REVISTA FÓRUM
Todas homenagens ao Mestre ainda são poucas, parabéns!
ResponderExcluirAbraços.
Muito bem desenvolvido o seu texto, gostei e estarei sempre visitando.
ResponderExcluirwww.vivendoteologia.blogspot.com