sábado, 12 de março de 2011

O homem que mudou a interpretação do Brasil


Caio Prado Júnior deixou, além de uma monumental contribuição à historiografia nacional, uma herança de ativismo político e preocupação com os destinos do país

Por Moriti Neto

Era 23 de novembro de 1990 quando a intelectualidade brasileira sentiu a morte de um dos maiores nomes da história nacional. Naquela data, falecia Caio Prado Júnior, aos 83 anos. Historiador, advogado, geógrafo, escritor, político e editor, ele se destacou como um dos grandes intérpretes do país no sentido contemporâneo, enfatizando a colonização como elemento chave para o entendimento do desenvolvimento brasileiro.

Nascido em São Paulo, veio de classe social elevada e teve formação escolar bem fundamentada, orientado por professores particulares, como era comum entre as elites na época. Ingressou no colégio jesuíta São Luís, onde permaneceu até a conclusão da formação secundária. No ensino superior, estudou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, formando-se bacharel em ciências jurídicas e sociais. Logo depois, exerceu advocacia, mas por pouco tempo.

Durante a formação universitária e prática advocatícia, vivenciou toda a efervescência política, social e cultural no Brasil, nas décadas de 20 e 30. É então que Caio inicia a vida de ativista político, ingressando no extinto Partido Democrático de São Paulo e, posteriormente, participa efetivamente da Revolução de 30, já filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB).

“Ele se forma na área do Direito, vindo de uma classe abastada, em algum momento até considerava que não estava preparado para pensar a sociedade brasileira. Estava errado, claro. A obra dele tem enorme relevância para o entendimento do país e é contribuição definitiva para a historiografia nacional”, avalia a professora de história da Universidade de São Paulo (USP) Maria Aparecida de Aquino.

A sua primeira obra, Evolução Política do Brasil, é publicada em 1933, e após uma viagem de estudos à União Soviética, que resulta no livro URSS, um novo mundo, Caio Prado Jr. fortalece as convicções políticas e o consequente ativismo. “Ele assume a vice-presidência da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e, exatamente por isso, passa dois anos preso. Depois, exila-se na Europa, mas, de volta ao Brasil, lança a obra mais importante, Formação do Brasil Contemporâneo, um clássico da historiografia brasileira, tratando a formação histórica do país”, conta o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) João Antonio de Paula.

Seguindo o caminho do ativismo político, não restrito à teoria, Caio Prado se elegeu deputado estadual, em 1945, pelo PCB e, em 1947, deputado da Assembleia Nacional Constituinte. Porém, esse mandato seria cassado no ano seguinte, na sequência do cancelamento do registro do partido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

“O Caio foi um homem muito atuante. Em algumas áreas, inclusive, ele não é tão lembrado. Por exemplo, foi um grande editor também, sempre cumprindo o papel de debater o Brasil. Junto com Monteiro Lobato, fundou a Editora Brasiliense, na qual lançou, posteriormente, a Revista Brasiliense”, lembra João Antonio.

Com o golpe militar e os anos de chumbo, o pensador sofreu novas perseguições, ainda assim, em 1966, foi eleito o intelectual do ano pela União Brasileira de Escritores, devido à publicação de A Revolução Brasileira. Contudo, a Revista Brasiliense é fechada pela ditadura e Caio Prado tem os direitos políticos cassados. Exila-se no Chile e volta ao Brasil, em 1971. Preso e condenado por subversão pelo Superior Tribunal Militar (STM) só consegue habeas corpus no ano seguinte, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) em votação unânime.

Influências na abordagem histórica

Partindo de uma observação marxista, a obra do autor se desenvolve com especificidade histórica, completamente distinta dos países capitalistas que tiveram origem num modelo de sociedade feudal e inova ao reconhecer que a particularidade brasileira se relacionava ao sentido da colonização e ao direcionamento ao comércio exterior.

“Ele concebe a possibilidade de interpretação da realidade brasileira somente tendo como ponto de partida a história. Para o autor, a identificação de um país somente pode ser devidamente caracterizada a partir do momento em que a análise histórica se faça presente. Foi a continuidade temporal de uma simultaneidade de processos que determinaram a formação econômica e não fatos isolados”, diz o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Aquilas Mendes.

Em contribuição essencial ao entendimento da formação econômica do brasileira, Caio Prado Jr. demonstrou a ênfase que o país deu ao exterior. “A ideia geral pode ser tomada como um dos determinantes no rumo da nação brasileira e seu desenvolvimento. Caio teve sempre o objetivo de compreender a linha mestra que conduziria a sociedade brasileira. Para efetivá-la, voltou aos pormenores da história do Brasil colônia e, como afirmou o historiador Fernando Novais, fez isso de forma sui generis, ao conseguir uma análise livre de anacronismos, ou seja, observou a colônia no devido tempo e espaço. Isso possibilitou que a análise captasse o Brasil como parte de um mundo em franca transformação. A colônia cumpriria o papel de fornecer recursos naturais ao comércio europeu”, ressalta Mendes.

De acordo com a obra, a análise da estruturação da sociedade colonial baseada em três eixos – monocultura, grande propriedade e trabalho escravo – possibilita a compreensão do restante das atividades no país que, por sua vez, serviu como sustentáculo acessório da manutenção do trinômio.

Assim, Caio Prado Jr. contribuiu para a compreensão mais aprofundada do que denominou o sentido de colonização, num modelo que se formou voltado ao atendimento dos interesses alheios ao próprio desenvolvimento. “Não se pode falar em historiografia, no Brasil, sem mencionar Caio Prado, pois ele rompe com a tradição da análise histórica brasileira baseada no positivismo, em que os documentos falavam por si”, declara Maria Aparecida de Aquino.

Segundo a professora, a visão do pensador, de método investigativo e interpretativo, muda o próprio modelo de análise marxista brasileiro, produzindo uma nova leitura dos modos de produção. “Ele se mantém fiel ao método dialético marxista, mas faz uma adequação ao Brasil na sua leitura, utilizando Marx muito bem, como instrumento de interpretação do país”, argumenta.

A revolução brasileira: legado e atualidade

“Para o autor, o segredo da revolução está na história. Deve-se interpretar as contradições existentes na sociedade brasileira. A teoria da revolução brasileira está fundamentada em uma análise dos dilemas históricos de nossa sociedade. Caio Prado adverte que não é praticável propor reformas que constituam efetivamente solução para os problemas pendentes, sem a condição de que essas reformas propostas se apresentem nos próprios fatos investigados. Em outras palavras, de nada serviria, como tantas vezes se faz, trazer soluções ditadas pela boa vontade e imaginação dos reformadores, inspirados, embora na melhor das intenções, por mais perfeitas que, em princípio e teoricamente se apresentem, não encontram nos próprios fatos atuantes as circunstâncias capazes de as promover, impulsionar e realizar”, comenta Aquilas Mendes.

No livro A Revolução Brasileira, Caio Prado Jr. aponta que “é de Marx a observação tão justa e comprovada por todo o decorrer da História que os problemas sociais nunca se propõem sem que, ao mesmo tempo, se proponha a solução deles que não é, nem pode ser forjada por nenhum cérebro iluminado, mas se apresenta, e aí há de ser desvendada e assinalada, no próprio contexto do problema que se oferece, e na dinâmica do processo em que essa problemática se propõe".

De maneira mais geral, compreende-se disso que é importante entender os problemas da formação nacional brasileira, devendo ser demonstrada a ideia de um processo condicionado pelas contradições que emergiam entre a posição subalterna do país no sistema capitalista mundial e o esforço da sociedade de controlar o próprio destino. E, para que se busque a transição a nova alternativa é essencial garantir a reação contra o sentimento de profundo incômodo gerado pela situação de pobreza, desigualdade e instabilidade. “Para tanto é preciso perseguir o objetivo de criar as condições necessárias para a modernização que caracteriza a civilização ocidental, beneficiando o conjunto da população e não apenas uma pequena parcela de ricos e privilegiados”, explica Mendes.

O legado do autor aponta que a compreensão histórica é passo fundamental na busca do entendimento da realidade brasileira. Ele identificou o caso brasileiro como particular, diferente da evolução clássica existente no capitalismo europeu e expresso como capítulo da própria expansão do sistema global.

“Não se pode perder de vista a visão de A Revolução Brasileira. Trata-se de destacar que os problemas do país não serão resolvidos sem transformações econômicas, sociais e culturais profundas, que criem as bases de uma sociedade bem menos desigual.

No processo de transição do Brasil colonial do passado para o Brasil nação do futuro, a conjuntura atual caracteriza-se pelo fato de que a nova fase do capitalismo, sob o controle da dominância financeira, transformou em antagonismo aberto, contradição de vários séculos, entre o desenvolvimento desigual do sistema capitalista mundial e a formação do Brasil contemporâneo. De acordo com a interpretação de Caio Prado, pode-se dizer que o capitalismo dependente já não tem mais nada a oferecer à população brasileira”, define Aquilas Mendes.

Sobre a atualidade da produção, o professor João Antonio de Paula pondera: “a obra dele é válida até hoje, sem dúvida nenhuma. Ele se preocupava com a circulação entre metrópole/colônia e com o sentido da acumulação primitiva do capital e participação decisiva do colonialismo. Esse debate é bastante atual”.

Caio Prado Jr., homem com origem na elite, foi alguém que construiu uma obra monumental, mas, além disso, deixou viva uma história de luta, buscando trazer para o país instrumentos que possibilitassem estudos capazes de interpretar, refletir e propor uma sociedade organizada de acordo com as peculiaridades que aqui se configuram. “Caio era um homem sempre atualizado e informado em vários campos. Tinha a grande virtude de, apesar de ser uma pessoa que viajava muito pelo mundo, manter uma ligação fortíssima com o Brasil. Era preocupado com o Brasil”, finaliza João Antonio de Paula.

REVISTA FÓRUM

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