sábado, 12 de fevereiro de 2011

Podres no coreto


Podres no coreto
No romance ‘Incidente em Antares’, mortos-vivos pestilentos espalham pânico e denunciam a podridão da política brasileira
Maria da Glória Bordini

Como denunciar a repressão política sem correr o risco de punição? Erico Verissimo encontrou uma solução perfeita para esse dilema em seu último romance, Incidente em Antares (1971). Criou um enredo em que sete cadáveres que não foram devidamente sepultados assombravam a cidade, mais vivos do que mortos, desmascarando a hipocrisia da classe dominante e o abuso de poder dos governantes. Só mesmo personagens como esses, protegidos da repressão por seu próprio e acelerado processo de decomposição, poderiam servir de porta-vozes para as críticas políticas do autor ao governo ditatorial e opressivo do Brasil nos anos 1970. Mesmo hoje, quase 40 anos após sua publicação, o romance continua, em certa medida, espelhando o contexto político do país, em que a maioria dos casos de corrupção é rapidamente varrida para debaixo do tapete e esquecida.

Erico Verissimo começou a escrever a obra, cujo título seria A hora do sétimo anjo, em 1969. Queria denunciar o “baile de máscaras” da vida burguesa numa grande cidade. Esboçava a trama do livro quando a fotografia de uma greve de coveiros em Nova York, publicada na revista Life, despertou sua atenção. A imagem o fascinou, mas ele achou que não cabia incorporar um evento como aquele à narrativa, já que o Brasil estava sob a ditadura militar e greves seriam inverossímeis.

O país passava por um período de exceção. O governo do general Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), iniciado em 1969, difundia slogans políticos como o célebre “Brasil, ame-o ou deixe-o”, investia no futebol e prometia um crescimento econômico que se provou ilusório. O povo pouco sabia das guerrilhas e dos movimentos de resistência, e o mundo literário estava amordaçado, impedido de propagar ideias “subversivas” que ameaçassem o regime e corrompessem os valores tradicionais, como a família, a religião católica e a propriedade. Tentativas de rebelião eram reprimidas à força e pessoas desapareciam na calada da noite. Os jornais nada podiam noticiar, para que a população não se sentisse num país inseguro.

No dia 8 de maio de 1970, enquanto caminhava com Mafalda, sua mulher, nas colinas de Petrópolis, em Porto Alegre, Verissimo retomou a ideia da greve de coveiros. Entre um passo e outro, foi esboçando a história e, com ela, o título, Incidente em Antares. Em casa, sentou-se à escrivaninha, aceitando ou recusando os personagens que sua imaginação apresentava. Dividiu o romance em duas partes. A primeira, composta de 79 capítulos, relaciona os primórdios da cidade fictícia de Antares, os acontecimentos que ali se desenrolam e o cenário político brasileiro desde a primeira metade do século XIX até os anos 1960. A segunda, com 102 capítulos, apresenta o incidente dos mortos, que, reanimados, viriam atormentar os vivos na sexta-feira, 13 de dezembro de 1963.

A história de Antares remonta ao período Pleistoceno, quando criaturas antediluvianas, como gliptodontes e megatérios, andavam nas margens do que seria o futuro Rio Uruguai. Não é gratuita sua posição geográfica, acima da cidade de São Borja, mais para os lados da rude e machista campanha do que para o Leste, mais civilizado. Inicialmente chamado de Povinho da Caveira, o povoado é chefiado por Chico Vacariano. O fictício naturalista francês Gaston Gontran d’Auberville visita o local em 1830, apresentando a constelação do Escorpião e a estrela Antares ao proprietário de terras Vacariano, que entende o significado do nome como “lugar onde existem muitas antas”. Encantado, assim batiza a vila em 1853. A ironia e o humor ácido se fazem presentes desde o início do romance.

Antares é uma cidade mais truculenta e modernizada do que a também fictícia Santa Fé, da trilogia O tempo e o vento, que narra a história do Rio Grande do Sul de 1680 (quando foi estabelecida a Colônia de Sacramento) a 1945 (fim do Estado Novo). Como nos romances O Continente (1945), O Retrato (1951), O Arquipélago (1962), em que os Terra combatem os Amaral, há na cidade duas famílias poderosas, os Campolargo e os Vacariano.

A cidade fora fundada por Chico Vacariano, que se tornara sua autoridade inconteste como proprietário das terras em que o Povinho da Caveira se formara. Quando Anacleto Campolargo, rico pecuarista, resolve se estabelecer no povoado, Vacariano sente sua soberania ameaçada. Ao encontrá-lo, quase enfrenta o intruso em duelo. Diz o texto: “Foi assim que entre as duas dinastias antarenses, a dos Vacarianos e a dos Campolargos, começou uma feroz rivalidade, que deveria durar quase sete decênios”.

Essa inimizade inicial vai aos poucos se atenuando, até ambas se aliarem para preservar suas terras e manter seus privilégios. Também chama atenção a presença do sociólogo Martim Francisco Terra e sua equipe de pesquisadores jovens, com função semelhante à do médico Carl Winter de O Continente, ou seja, de escrever sobre a cidade a partir de um olhar de fora.

Incidente em Antares não trata da ditadura no Brasil diretamente, mas, por meio da paródia, sugere como esta se tornou possível. Antares é a consequência do contexto político de Santa Fé, nos anos 1960, narrado no volume O arquipélago, que integra O tempo e o vento, preparando o golpe militar através da repressão e da corrupção que já existiam durante a ditadura Vargas, nos anos 1940. O romance espelha o cenário político brasileiro passando pelo inculto Povinho da Caveira, pelos conflitos sangrentos entre os patriarcas da cidade rural até chegar aos industrializados anos 1960, com sua prefeitura corrupta. O comportamento dos governantes, cuidando de seus interesses, sem a menor ideia de bem comum, explica a revolta dos operários, que resultaria numa greve geral e no incidente propriamente dito.

Terminada a história da formação da cidade antarense, o palco está preparado para o acontecimento macabro narrado na segunda parte do livro. Ao serem deixados em seus caixões à espera do enterro por coveiros grevistas, os mortos literalmente despertam. A matriarca dos Campolargo, Dona Quitéria, o advogado Dr. Cícero Branco, o sapateiro “Barcelona”, o maestro Menandro Olinda, o jovem operário João Paz, a prostituta Erotildes e o ébrio “Pudim de Cachaça” não se comportam como zumbis: possuem memória, continuam pensando e falando.

Embora com origens sociais diferentes, os mortos-vivos se unem em torno de um mesmo propósito. Indignados diante do descaso dos governantes, espalham sua pestilência pela cidade, visitando seus entes queridos (que nem sempre o são, como vêm a descobrir os da classe alta). Como a greve continua sem solução, ocupam o coreto da praça central, fazendo um comício público em que a podridão moral da sociedade e da política antarense é denunciada diante da população horrorizada com a decomposição progressiva dos defuntos. “A Matriz está ainda cheia de fiéis que rezam, não de joelhos, mas sentados, com os pés erguidos, por causa dos ratos que passam por baixo dos bancos e, como emissários de Satanás, escalam, irreverentes, o altar-mor”, narra Verissimo.

O autor relaciona as visitas dos mortos com as reações dos vivos, as reuniões políticas para resolver o problema, a cobertura jornalística e as tentativas das autoridades de se imporem pela força (sem efeito, já que estão combatendo cadáveres). Verissimo se vale de diversas técnicas de apresentação do enredo. O relato dos acontecimentos é feito por meio dos diálogos entre vivos e mortos, das reportagens pernósticas do jornalista Lucas Faia, do diário dolorido do progressista padre Pedro Paulo e do jornal íntimo do professor Martim Francisco Terra, autor do diagnóstico científico da cidade no livro Anatomia duma cidade gaúcha de fronteira.
“Testemunhas visuais (e olfativas!) do fato são unânimes em afirmar que os defuntos se moviam de maneira rígida, como bonecos de mola a que alguém – Deus ou o diabo? – tivesse dado corda”, reportava o personagem Lucas Faia.

O Incidente provoca posições ideológicas ora convergentes, ora divergentes. Dá-se a palavra a segmentos oprimidos da população, mas os poderosos não a ouvem, perpetuando a hipocrisia. É realizado aquilo que na sociedade brasileira seria impensável numa situação de exceção: a livre exposição de ideias e de crítica. Mas os governantes de Antares conseguem apagar o evento e suas repercussões com o que chamam de “Operação Borracha”, reprimindo com ameaças qualquer manifestação que lembre os mortos-vivos e proporcionando ao povo muita distração e festa. Martim Francisco chega a receber uma carta anônima “em que um Amigo Desinteressado lhe declarava que sua vida estava em perigo”.

Incidente em Antares é um romance de levada histórica, mas absurdo no seu cerne. A ficção oferece ao leitor um retrato de seu próprio contexto, mas como se este não estivesse ali implicado. Ao mesmo tempo, faz lembrar que os incidentes de corrupção ainda acontecem e tudo o que vai mal continua sendo apagado, se não pela censura, pela sucessão de escândalos que tudo banaliza, como fazem os líderes políticos de Antares com a Operação Borracha.


Saiba Mais - Bibliografia

CANDIDO, Antonio. “Erico Verissimo de 1930 a 1970”. In: BORDINI, Maria da Glória (org.). Caderno de pauta simples: Erico Verissimo e a Crítica Literária. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 2005. pp. 65-78.
MARZOLA, Norma. “Ninguém escapa à História”. In: VERISSIMO, Erico. A liberdade de escrever: entrevistas sobre literatura e política. Org. Maria da Glória Bordini. São Paulo: Globo, 1999. p.91-105.
SILVA, Márcia Ivana de Lima e. A gênese de Incidente em Antares. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.

Saiba Mais - DVD

VERISSIMO, Erico; NADOTTI, Nelson; PEIXOTO, Charles. “Incidente em Antares”. Minissérie em 12 capítulos, exibida em 1994. Direção geral de Paulo José. Rio de Janeiro: Rede Globo, 1994.

Revista de História da Biblioteca Nacional

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