domingo, 16 de janeiro de 2011

Da breve Perestroika à eterna era Putin


Análises traçam paralelos entre a União Soviética e a Rússia atual. Entre os pontos mais evidentes, estariam a burocracia, o sistema de partido único, o desrespeito aos preceitos democráticos e o renascimento de um “imperialismo russo”. No entanto, o período Putin está longe de se parecer com estagnação da era Brejnev.

por Vladislav Inozemtsev

Rússia de 2010 não é a União Soviética do fim dos anos 1970. Mas é verdade que as duas têm muito em comum: lá, onde reinava absoluto o Partido Comunista da União Soviética (PCUS), encontra-se desde então o Partido Rússia Unida, presidido por Vladimir Putin e constituído por 46% de funcionários de diversas hierarquias. O Soviete Supremo foi substituído pela Duma, a Assembleia Nacional, cujos deputados são eleitos a partir de listas de partidos formuladas pelo Kremlin – os partidos que estiverem fora de seu controle não são elegíveis. Toda manifestação de oposição é reprimida, a televisão é censurada e os tribunais costumam dar ganho de causa ao Estado. No âmbito da economia, tem-se agora o “neosovietismo”: na época de Leonid Brejnev, presidente de 1977 a 1982, os hidrocarbonetos e as matérias-primas constituíam 55% das exportações; hoje representam 80%. O número de funcionários públicos aumentou, assim como os efetivos das forças de segurança. As grandes empresas estão sob o controle do Estado e, em termos de política externa, o desaparecimento da União Soviética é percebido, segundo Putin1, como “a maior catástrofe geopolítica do século XX”.

Mas, ao mesmo tempo, a Rússia atual é radicalmente diferente do que foi a União Soviética. Monstruoso sob vários aspectos, o regime no poder governa uma nação paradoxalmente livre. Para uma classe de privilegiados, hoje é possível sair e entrar no país quando quiser. Assim, mais de cinco milhões de russos vivem no exterior, mas conservando sua cidadania original. A economia do país está aberta para o mundo: em 2009, o volume do comércio exterior representou 40,7% do seu PIB (Produto Interno Bruto), contra 18,3% nos Estados Unidos. Sua cultura e suas redes de informação são difundidas para fora dos limites territoriais. Encontram-se hoje no país jornais ocidentais e, nas grandes cidades, há retransmissoras de televisões estrangeiras. Ao contrário da China, a Rússia não censura a internet. Alguns veículos criticam abertamente o regime político, ainda que com um saldo de assassinatos escandalosos de vários jornalistas. O exercício da atividade comercial é livre – o país conta, hoje, com 1,5 milhão de pequenas e médias empresas – e os cidadãos podem se tornar proprietários de seus apartamentos ou casas, sem qualquer limitação prévia de área dos terrenos. Enquanto isso, brotam bancos privados e companhias industriais.

Esse sistema é único. Um misto de “quase soviético” e “pseudo-ocidental”, ele tem produzido uma situação tal que, segundo palavras do historiador russo, Aleksei Miller, “a pessoa chega a se sentir livre dentro de uma Rússia radicalmente diversa dos padrões democráticos”2. Ao menos em dois aspectos, o modelo de Putin é indiscutivelmente mais bem-sucedido que o de Brejnev.

No que diz respeito à política, na época soviética, o poder era exercido num vácuo, no interior de fronteiras impermeáveis e acompanhado por uma ideologia considerada brutal e simplista pelo Ocidente, ainda que apoiada por muitos russos. Era dentro desse contexto que o PCUS mantinha sua “verticalidade do poder” e lutava contra todo o pensamento alternativo e qualquer iniciativa que ameaçasse seu papel de “farol”. Essa ideologia entrou em colapso em favor de um capitalismo livre de qualquer princípio. As fronteiras estão abertas, os russos podem viajar para o exterior, criticar o poder, além de receber e difundir as informações que quiserem. Por isso, ainda que na última década vários princípios autoritários, característicos da era Brejnev, tenham reaparecido, eles não despertaram muita resistência dentro da população.

Propriedade privada


No aspecto socioeconômico, o sistema soviético dizia fundamentar-se pela distribuição de bens básicos para a sobrevivência. Com a Perestroika, política introduzida em 1985 para reestruturar a economia soviética, os reformistas russos e os ocidentais que aconselharam o primeiro governo democrático do país se convenceram de que o acesso à propriedade privada evitaria o retorno do autoritarismo e da dependência para com o Estado. Mas isso não ocorreu. O crescimento econômico dos anos 2000 provocou o enriquecimento de muitos cidadãos e, ao mesmo tempo, garantiu sua lealdade ao novo regime. Custe o que custar, as classes média e alta tentam assegurar a perenidade de seu status.

O ex-presidente e atual primeiro ministro, Vladimir Putin, ainda atrai aplausos daqueles que consideram que esse foi o principal serviço que ele prestou ao país. Para sustentar essa estabilidade econômica, o governo defende a produção nacional com medidas protecionistas e oferece a dezenas de milhares de companhias russas uma situação de quase monopólio sobre as mercadorias. O aumento bruto dos custos3 está elevando os preços no varejo, mesmo sobre a mercadoria europeia, mas isso é compensado destinando-se aos mais pobres parte dos dividendos obtidos com o petróleo.

Desta forma, os dirigentes russos foram muito bem-sucedidos ao utilizar um modelo de governo que seus antecessores comunistas nem mesmo ousaram sonhar. Eles melhoraram o nível de vida dos trabalhadores, ao mesmo tempo que adiaram as eleições livres e suprimiram o direito de greve e manifestações. Puseram a justiça a serviço da burocracia e isolaram-se do povo.

Espaço social


Como resultado, temos uma sociedade livre sob o controle de um poder autoritário, uma simbiose impossível segundo os critérios sociológicos ocidentais. Se a Rússia pode aceitar tudo em prol de sua liberdade, defendida apaixonadamente durante a Perestroika, é porque a noção de ação coletiva é amplamente desacreditada. O segredo da Rússia de Putin deve-se a um rápido crescimento do espaço social, onde o cidadão tem a sensação de poder resolver as contradições do sistema individualmente.

A magnitude e a força da Perestroika de 1985 se explicam pela origem social múltipla de seus adeptos, que apenas em circunstâncias especiais conseguiriam agir em conjunto. O sistema soviético não tolerava a emergência de grupos sociais muito numerosos; ele também censurava opiniões divergentes, sufocava culturas alternativas, reprimia a vida religiosa; os russos não tinham acesso à história autêntica de seu país e não deveriam manifestar nacionalismo. Um professor universitário ateu ou um camponês religioso ortodoxo tinha as mesmas razões de descontentamento com relação ao sistema. As “respostas individuais” aos desafios existentes eram impossíveis. A isso, juntou-se uma economia rudimentar, privilegiando a expansão da indústria militar antes de responder às necessidades básicas dos cidadãos, que já se encontravam esmagados por um sistema burocrático, por sua vez engessado pelo partido.

Desde que Mikhail Gorbatchev lançou a ideia de mudança, atraiu milhões de simpatizantes. Alguns queriam reformas e a modernização do sistema; outros, sua destruição total. Todos, de qualquer modo, sabiam que a resolução individual dos problemas passaria por profundas transformações. Daí a grande variedade de cidadãos convertidos à Perestroika: os mineradores (que hoje morrem dentro dos poços, porque seus dirigentes se recusam a investir em segurança) lutaram com o mesmo entusiasmo dos primeiros empresários privados pelas mudanças radicais, que apoiados pelos burocratas locais e não tendo outra opção, desistiram de suas carteirinhas do Partido Comunista e proclamaram a independência das repúblicas nacionais.

O sistema atual não reproduz os erros do anterior. Ele soube se livrar a tempo de milhões de cidadãos muito ativos – que saíram do país nos anos 1990 –, cujos posicionamentos políticos teriam, sem dúvida, criado um novo tipo de dissidência. Para a maioria dos cidadãos, o sistema também deu acesso a diversas formas de enriquecimento e autonomia graças ao desenvolvimento do comércio, às possibilidades de mobilidade social (por vezes vertical e horizontal) e ao direito de cruzar fronteiras. O sistema também soube encontrar um equilíbrio judiciário entre interesses e potencial: às pessoas talentosas e determinadas, ele ofereceu posições lucrativas nos negócios e, para as outras, postos dentro de uma burocracia gangrenada pela corrupção.

O sistema soviético gastou uma energia colossal para convencer os cidadãos de sua superioridade em todas as áreas. Agora, isso parece um desperdício. A sociedade russa é uma sociedade “sem cidadãos”: como ela pôde se transformar nessa estrutura leve e desagregada? A resposta, sem dúvida, deve ser buscada dentro das especificidades de sua elite e nos seus trampolins sociais. Na maioria das sociedades que se modernizam, existem vários tipos de elite – política, empresarial, intelectual, militar. No caso da Rússia, essas divisões foram apagadas durante o período de transição para o capitalismo. As elites universitárias e militares foram consideradas inúteis e seus trabalhos praticamente pararam de ser remunerados. Ao mesmo tempo, a esfera material absorveu o conjunto de valores sociais, e as elites políticas se viram tête-à-tête com o povo, que reclamava suas riquezas. O mundo dos negócios começou, então, a definir os valores sociais e a penetrar, de acordo com sua própria expansão, as estruturas do poder. Nesta primeira etapa – até o início dos anos 2000 –, o aparelho do Estado dependia em grande parte desta esfera econômica, e ainda estava longe de se ater a qualquer princípio ideológico.

A situação se deteriorou muito ao longo dos últimos dez anos. A chegada de Putin foi acompanhada por uma nova categoria de personalidades cada vez mais jovens, sem outro desejo além do enriquecimento pessoal e aceitando de bom grado as incríveis possibilidades que lhes oferecem os dirigentes políticos. Os homens de negócios que tenham tido algum poder no período anterior foram imediatamente declarados indesejáveis. O Estado se estruturou aos poucos como uma empresa em escala nacional (nos primeiros anos, um bom número de grandes empresas fora devolvido ao controle do poder), e os funcionários, em nível regional e federal, também entraram para o mundo dos negócios. Nos anos 1990, ninguém se surpreendia ao saber que um governador de uma região pudesse estar à frente de um grupo bancário ou industrial; em 2000, todos achavam normal que a indicação para o cargo de governador ou ministro passasse por amigos ou parentes de diretores de alguma empresa comercial da região.


A ascensão dos siloviki, representantes das forças públicas nos ministérios do Interior, da Defesa e da Segurança, deu-se no mesmo cenário, levando a um recorde de corrupção. A privatização dos bens da indústria militar, postos em liquidação, fez com que os funcionários do Ministério da Defesa ganhassem milhões – o preço dos equipamentos militares foi multiplicado por oito ou nove na última década. No final dos anos 2000, as bases da nova realidade russa foram estabelecidas: livre conversão do poder em moeda e em bens, e vice-versa. A elite consolidada considerava sua atividade não como um serviço prestado à nação, mas como uma forma particular de transação comercial. Paradoxalmente, ela é muito aberta: cooptação regular de novas normas e possibilidade de abandonar o navio para se dedicar exclusivamente aos negócios. Os ocidentais tendem a pensar que a burocracia russa é ineficaz, mas ela é realmente bem eficiente – há, simplesmente, outros critérios de eficiência e outra visão de deveres.

Modelo exclusivo


A Rússia, nessa situação inédita, funciona segundo leis e códigos próprios. O país não é uma pálida réplica da democracia europeia, não é uma ditadura oriental revista e corrigida graças às ligações que teve com a história da Europa. Tampouco é a União Soviética ressuscitada dentro de sua ideologia de toda poderosa, nem um modelo de “transição autoritária”, já que sua economia não está evoluindo da acumulação de bens para o pós-industrial, mas segundo o esquema inverso.

Hoje, a Rússia é um sistema resultante do rápido colapso de todas as orientações morais e de todos os ideais de uma sociedade, dentro de um mundo dominado por motivações materialistas. Ela traçou seu próprio caminho. Ela não existiria se os europeus se recusassem a comprar petróleo de empresas semicriminosas, se seus dirigentes não se alegrassem em fazer parte das atividades da Gazprom – a maior fornecedora de gás natural do mundo –, se os investidores não estivessem em busca de bolhas especulativas nos mercados de valores mobiliários e imobiliários russos. Ela não existiria sem as sociedades off-shore, através das quais os empresários possuem abertamente (e os funcionários russos também, mas secretamente) 70% das grandes indústrias do país. O modelo russo seguiu um desenvolvimento lógico, que ainda pode perdurar por muito tempo, já que o descontentamento social não é evidente. Os cidadãos que o contestam são livres para se expressar dentro de esferas que não seja a política. Até mesmo os que querem brincar de desordeiros não são impedidos: simplesmente não têm plateia, nem mobilizam ninguém.

A sociedade russa, portanto, integrou o cinismo que a preside sob uma forma mais discreta, funcionando como qualquer comunidade ocidental: primazia pelo dinheiro e consumo, nivelamento de normas culturais, docilidade das populações, difusão maciça de tecnologias alienantes. O único problema desse sistema é sua incapacidade em formar uma classe intelectual e, portanto, para produzir conhecimentos indispensáveis. Os intelectuais permanecem supérfluos num país dedicado à exploração de seus recursos naturais, mas poderiam ser muito úteis quando as rivalidades econômicas mundiais se revelarem duras. O presidente Dmitri Medvedev entendeu bem isso. Ele não tem nenhuma intenção de desmontar o regime existente, mas sabe que é incompatível com o progresso tecnológico. Será que ele irá lançar reformas verdadeiras? Se for o caso, será que poderia mudar o sistema sem provocar sua destruição? Seja qual for a orientação política, democratas ou liberais, as chances dessas reformas acontecerem são obviamente maiores na Rússia de hoje do que seriam na União Soviética do passado.

Vladislav Inozemtsev é diretor do Centro de Pesquisas sobre Sociedade Pós-industrial e redator-chefe da revista Svobodnaïa Mysl


1 Comunicado à Assembleia Nacional, 25 de abril de 2005, disponível em: http://archive.kremlin.ru/text/appears/2005/04/87049.html
2 Aleksei Miller, “Da democracia do século XIX à do século XXI, e o que vem depois?”, em Vladislav Inozemtsev, Démocratie et modernisation: Débats sur lês défis du XXIè siècle, Evropa, Moscou, 2010, p.101 (em russo).
3 Na Rússia, o preço dos metais e materiais de construção é um dos mais elevados do mundo. O quilômetro de estrada entre Moscou e São Petersburgo custou 23 milhões de euros, e o custo de extração de gás foi multiplicado por sete entre 2000 e 2009. Vedomosti, Moscou, 14 de agosto de 2009, 14 de abril, 31 de maio e 1º de junho de 2010.
Le Monde Diplomatique Brasil

2 comentários:

  1. Caro Eduardo,
    Para além da saudação calorosa que o História Viva sempre me merece, desta vez quero, também, enviar-lhe e a todo o Brasil, a maior e mais sentida solidariedade pela catástrofe que os Tristes Rios de Janeiro têm provocado no vosso país!
    Um grande abraço e votos de muito sucesso na recuperação...
    Ana Paula Fitas

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  2. Eduardo,
    ... esqueci-me de referir que vou fazer link deste post... com o gosto de sempre pela qualidade inovadora da reflexão :)
    Abraço, meu amigo.

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