domingo, 9 de janeiro de 2011

Ainda há lugar para o jeitinho brasileiro?


Roberto Sabato Moreira


O que há de comum entre a mamãe que estaciona em fila dupla para pegar o filhinho na porta da escola e o indivíduo que se vale de um cargo para mandar voltar um avião que ele perdeu? Em se tratando do Brasil, mais do que se poderia imaginar.

As duas situações têm em comum o que ficou consagrado, para o bem ou para o mal, como o jeitinho brasileiro, uma das marcas distintivas de nossa identidade, associada à idéia de malandragem.

A malandragem, assim como a preguiça, a cordialidade e o jeitinho foram ou têm sido alguns dos atributos aplicados para qualificar o modo de ser do brasileiro.

Do mesmo modo que a feijoada, o carnaval, a mulata, o samba, a cachaça e o futebol foram elementos da cultura popular apropriados pelas elites para forjar símbolos nacionais.

Na origem, está a estrutura escravista que domina quatro séculos da história brasileira e que torna longo o aparecimento de uma sociedade de classes onde antes só havia, a rigor, o proprietário de terras e o escravo.

No Império, o homem livre, nem senhor nem escravo, é o agregado, vivendo do favor, retratado pela literatura do século XIX. Nos primeiros anos do século XX, feitas a Abolição e a República, esse legado da escravidão se traduz no desprezo ao trabalho.

Mas nessa nova ordem, de passagem do mundo rural e agrário ao contexto urbano e de nascente industrialização, surge a necessidade de constrição da mão de obra, desafeita ao valor do trabalho.

Era preciso quebrar as resistências ao trabalho em meio a uma população que não via sua finalidade moral ou prática.

O ambiente aqui é o Rio de Janeiro, maior cidade e capital do país, passando por transformações urbanas que a tornariam uma cidade civilizada e o veículo da malandragem não é mais a literatura, mas a música popular.

No interstício entre o capital e o trabalho, surge o espaço do malandro. O compositor popular urbano – ele mesmo localizado nesse interstício – capta com intuição a pouca vantagem do trabalho e exalta a malandragem como possibilidade de liberdade e prazer.

Além de estar interessado em subordinar o proletariado à disciplina do trabalho, o governo se empenhava na construção de uma imagem ufanista do país. Outros grupos tinham interesse na valorização da nossa ginga e do nosso jeitinho.

A capacidade de se safar de situações difíceis é um modo de driblar uma estrutura onde ainda predominam o favor, o apadrinhamento e a relação pessoal sobre as normas universais de conduta.

Isso é valorizado, ganhando expressões emblemáticas no futebol e em outras áreas em que a habilidade tornou-se motivo de orgulho patriótico.

Consolidada a ordem social competitiva, não sobraria mais espaço ao elogio da malandragem, mas ela permanece como símbolo de identidade.

Mais tarde, a malandragem serviu de discurso cifrado para driblar a censura e a repressão.

Passado o estado autoritário, vem outro momento de sua negação, em que os apelos à ética e à cidadania se fazem mais fortes e o comportamento cotidiano do indivíduo é igualmente criticado.

Aqui, a mesma habilidade e jeitinho, antes valorizados, são vistos como burla da lei e da ordem cuja debilidade se lamenta.

Hoje, o brasileiro não parece muito inclinado a valorizar a malandragem, que remeteria à corrupção das elites e às fraudes na esfera pública ou à violência da empresa do narcotráfico.

Chico Buarque na Ópera do Malandro já falava do malandro oficial, com gravata e capital, que substitui o malandro que aposentou a navalha.

Enfim, o orgulho ou a vergonha quanto à esperteza no escapar de situações constrangedoras, o jeitinho que supre ou agrava a falta de exercício de uma cidadania plena, no fundo expressam o que se poderia chamar de um dilema brasileiro.

A ambigüidade que parece permanecer como substrato da nossa mentalidade. Em um momento, invejamos o modelo das sociedades centrais e negamos os elementos de nossa formação histórica.

Em outro, valorizamos talvez exageradamente algumas de nossas características, como algo absolutamente original que nos orgulha.

Isso tem nos enredado em contradições como, por exemplo, ao nos negarmos, cultivamos como que um complexo de inferioridade e quando, ao contrário, nos orgulhamos da nossa malandragem, alimentamos a impossibilidade de construir uma ordem social mais justa, equilibrada, orientada por valores universais.

O jeitinho pode ser simpático, gerando nossa fama de amáveis, gentis e criativos. Pode até ser estratégia de sobrevivência de uma população desassistida em suas necessidades básicas. Mas sempre será uma quebra da ordem, da norma, uma apropriação do público em benefício do privado.
(UnB Agência, 4/4)

Roberto Sabato Moreira é sociólogo e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UnB. Artigo publicado na “Agência UnB”:
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência

4 comentários:

  1. Blog impecável. Parabéns pelo conteúdo e organização. Me torno seguidor desde já.

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  2. Olá Eduardo :)
    Faço link... com votos de um 2011 cheio de energia, saúde e continuação de excelentes post's.
    Abraço enorme deste lado do oceano :)

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  3. Artigo excelente, só um detalhe: o futebol começou como um esporte de elite no Brasil, e foi adotado pelas classes populares. Abraço!

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