domingo, 28 de novembro de 2010

A revolução nos cafés

Edouard Manet
Au Café (1878)
A revolução nos cafés
Ao sabor de doces e quentes goles de chá e café, conspirações viraram revoluções, conversas tornaram-se vanguardas artísticas e clientes assíduos, heróis políticos lembrados até hoje
por Lia Hama
Armado com duas pistolas, o revolucionário Camille Desmoulins dirige-se inflamado à multidão: “Às armas, cidadãos!”. O cenário é o Café de Foy, em Paris, um dos muitos locais onde os iluministas – os intelectuais que estabeleceram o racionalismo e os ideais democráticos da Europa do século 18 – se encontravam para articular a ação contra o regime monárquico francês. Dois dias depois, em 14 de julho de 1789, os parisienses tomaram a Bastilha, onde ficavam os prisioneiros políticos do Antigo Regime. E tem início a Revolução Francesa. Bastidores de acontecimentos históricos como esse, os cafés europeus se tornaram ao longo dos séculos 17 e 18 um ponto de encontro e troca de idéias entre políticos, escritores, cientistas e homens de negócios. Foi ao redor de suas mesas que Danton, líder da Revolução Francesa, ou Lênin, o maior líder comunista da Rússia, conheceram seus companheiros e tramaram ações. E onde freqüentadores comuns, ao preço de uma xícara de café, podiam se informar sobre as últimas fofocas da corte, ler notícias de outros países, assistir a palestras científicas, fechar negócios e discutir política e literatura. Os cafés eram, enfim, um inédito espaço público onde a informação circulava livremente.
Diferentemente das tabernas, onde se vendiam bebidas alcoólicas, os cafés eram ambientes de sobriedade, muitas vezes decorados com prateleiras de livros. “Em meados do século 17, não apenas o chá – o primeiro a ser popular – mas também o chocolate e o café se tornaram bebidas comuns pelo menos entre as camadas mais altas da população”, afirmou, no livro Mudança Estrutural da Esfera Pública, o filósofo alemão Jürgen Habermas, ele próprio um assíduo freqüentador das casas. Originário da Etiópia, o café foi rapidamente assimilado pelos europeus. Era, por excelência, a bebida do racionalismo, tão em voga naquela época. Sóbrias e tranqüilas, as casas de café propiciavam conversas e discussões polidas em contraste com a vulgaridade do ambiente das tabernas. Clérigos, escritores e empresários viram no consumo da bebida uma ótima forma de estimular a atividade mental.
Na primeira década do século 18, Londres já tinha cerca de 3 mil coffee houses, todas com seus círculos de freqüentadores, sempre homens. Cada estabelecimento atraía um tipo de clientela, geralmente de acordo com a localização. Os cafés em torno do Palácio de Westminster, a sede do Parlamento Britânico, eram freqüentados por políticos; os de perto da Catedral St. Paul, por clérigos e teólogos; os vizinhos da Bolsa de Valores, por homens de negócios. Em torno do Lloyd’s se reuniam donos de navios, capitães e mercadores, que iam ao local para saber das últimas novidades do comércio marítimo. Edward Lloyd, dono do estabelecimento, começou a reunir as informações numa espécie de jornalzinho distribuído para assinantes. Bem informado sobre as oportunidades do negócio, ele decidiu fundar, em 1688, uma seguradora que dava cobertura aos mercadores que perdiam seus navios no mar. Com mais de três séculos de existência, a Lloyd’s é hoje uma gigante do setor.
Além de ponto de encontro, muitos cafés funcionavam como endereço para correspondências dos leitores. Era o caso de Richard Steele, editor do jornal britânico Tatler. Steele usava o café Grecian como seu escritório e era lá onde recebia suas cartas. Quando a primeira edição do Tatler foi publicada, em 1709, os cafés na Europa eram tão numerosos e os círculos de seus freqüentadores tão amplos, que os contatos entre esses milhares de grupos só podiam ser feitos por meio de jornais. Foi a partir dessa necessidade que muitos deles surgiram. Rapidamente os artigos de jornais se tornaram objeto de discussão do público das casas. Ao mesmo tempo, refletiam os debates que aconteciam nesses locais. “No Tatler, no Spectator e no Guardian o público tinha um espelho de si mesmo”, afirmou Habermas, em Mudança Estrutural na Esfera Pública. Como bem definiu a revista britânica The Economist, essa rede de troca de informações entre os cafés europeus formava “a internet da era iluminista”.
Revolução e espionagem
Em Paris, esse ambiente de discussões acaloradas suscitou a desconfiança do poder. Para acompanhar o que se fazia e o que se falava nos cafés, o rei Luís XVI enviava espiões em busca de possíveis complôs contra ele. Qualquer um que exagerasse ao falar contra o Estado corria o risco de ser arrastado para a Bastilha, cujos arquivos reuniam centenas de conversas colhidas por informantes. A desconfiança não era sem fundamento. “O clube dos jacobinos [o maior e mais radical partido político da Revolução] tomava decisões nesses locais. Reunidos, eles escreviam textos que saíam publicados nos cadernos da Enciclopédia e lançavam verbetes críticos ao Antigo Regime”, afirma a historiadora Vera Lúcia Vieira, da PUC de São Paulo.
Mas Luís XVI deveria ter se preocupado mais com as conversas dos cafés parisienses. Se tivesse agido assim em 1789, poucos meses antes da queda da Bastilha, talvez não fosse guilhotinado, três anos depois, a mando de assíduos freqüentadores de cafés, como Danton, Marat e Robespierre. Quando eram advogados ou estudantes, esses líderes da Revolução Francesa, temidos por toda a Europa aristocrática, travaram seus ideais no Le Procope. Fundada em 1686 e tida como a mais antiga de Paris, essa casa tornou-se um quartel-general dos jacobinos. “Aqueles que se reuniam no Le Procope viram, com um brilho penetrante no fundo de sua bebida preta, a iluminação do ano da revolução”, afirmou o historiador francês Jules Michelet em História da Revolução Francesa.
No século 20, os cafés parisienses voltariam a abrigar revolucionários de calibre. Exilado pelo regime czarista antes da Revolução Russa, Lênin passou os anos de 1909 e 1910 na cidade, freqüentando a Biblioteca Nacional da França e os cafés da margem esquerda do rio Sena, como o Rotunda e o Dôme. Passava noites nessas casas, discutindo com Leon Trotsky, outro comunista exilado, os rumos da Rússia e as brechas do governo do czar Nicolau II. Suas idéias foram colocadas em prática a partir da Revolução de 1917.
Vanguardas
Com a ampliação das ruas de Paris e a construção das grandes avenidas e bulevares, os cafés cairiam de vez na moda, de onde não sairiam mais. Tantas pessoas ficavam nas mesas observando o movimento da rua que o fenômeno inspirou o comentário do escritor francês Émile Zola sobre “as grandes multidões silenciosas vendo a rua viver”. Esse novo impulso dos cafés acompanhou a ascensão das vanguardas artísticas, cujos representantes tinham tempo e dinheiro de sobra. Na década de 20, as atrações dos cafés passaram a ser surrealistas como Salvador Dalí e o poeta Jean Cocteau. Mas o principal quartel-general dos vanguardistas estava em Zurique, na Suíça: o Cabaré Voltaire, fundado em 1916 pelo poeta alemão Hugo Ball. O local foi o celeiro do dadaísmo, movimento artístico liderado pelo poeta romeno Tristan Tzara, que pregava uma arte livre das amarras do racionalismo. Como o revolucionário Camille Desmoulins, que dois séculos antes conclamou seus ouvintes a saírem às ruas, Tzara gritava manifestos contra o funcionalismo e pela liberdade da arte. Ao sabor de goles quentes de café.

Conversa de botequim
No Brasil, tabernas e cafés se uniram em um só lugar: os bares de esquina
Se os cafés são parte essencial da vida social na Europa, o que dizer dos botequins no Brasil? Boa parte da história e da cultura brasileira está ligada aos bares espalhados pelas ruas do país. “O bar sempre foi o local onde se realizam trocas sociais. É onde as pessoas falam sobre a vida privada e sobre a política local. Como o café, é o espaço da troca de informação, da vida pública e da sociabilidade por excelência”, diz a socióloga Lúcia Helena Gama, autora de Nos Bares da Vida. A diferença é que, no Brasil, o álcool não foi empecilho para discussões políticas como na Europa. Pelo contrário. Por aqui, os botecos de esquina uniram o ambiente despojado das tabernas com a importância social dos cafés europeus. É caso do Riviera, em São Paulo, o principal ponto de encontro de bêbados e futuros presidentes da década de 60. Estava instalado num ponto perfeito para a juventude da época: a esquina da avenida Paulista com a rua da Consolação, em frente ao Cine Belas Artes e perto da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, então no bairro de Higienópolis. Sentaram nas cadeiras do Riviera, hoje decadente, mandachuvas da política e músicos como Fernando Henrique Cardoso, José Dirceu, Caetano Veloso e Chico Buarque. O bar formou até personagens tradicionais. Baseado nos seus clientes, o cartunista Angeli criou a Rê Bordosa, a balzaquiana carente dos quadrinhos.
A ditadura também rendeu histórias em botecos cariocas, como o ...De Fora, no bairro do Jardim Botânico. Comportando apenas cinco pessoas em pé, era freqüentado por artistas e jornalistas de esqueda. O próprio nome foi dado por um dos clientes, a atriz Leila Diniz. Certo dia, com um copo de batida de maracujá na mão, ela se cansou da falta de espaço: “Porra, quando a gente bebe aqui, fica com a bunda para fora!” “A frase pegou tanto que o Brandão, o dono, mandou botar no letreiro. Acontece que os milicos – estávamos em plena ditadura militar – não gostaram. No dia seguinte, mandaram mudar o nome.
O português botou ‘B. de Fora’. Os milicos acharam pouco e finalmente ficou ‘... de Fora’”, afirma o cartunista Jaguar em Confesso que Bebi.Muito antes da ditadura, os bares cariocas abrigaram a invenção do principal estilo musical brasileiro: o samba. Neles, muitas das primeiras letras de samba foram escritas, como Conversa de Botequim, de Noel Rosa. Um dos principais compositores do estilo, Noel conheceu num bar da Lapa a dançarina Ceci, que inspirou canções como Pra que Mentir e Último Desejo. Ele só largou os bares cariocas em 1935, quando, tubercoloso, foi tratar-se em Belo Horizonte. Mas tornou-se um cliente assíduo dos bares mineiros.

Saiba mais
Livros
Mudança Estrutural da Esfera Pública, Jürgen Habermas, Tempo Brasileiro, 2003 - Descrição do espaço público como local de formação de opinião contra ou a favor dos governantes
História da Vida Privada – Da Renascença ao Século das Luzes, Philippe Ariés e Roger Charier, Companhia das Letras, 1991 - Compêndio revelador e preciso sobre a mudança dos costumes e seu significado histórico
Confesso que Bebi – Memórias de um Amnésico Alcoólico, Jaguar, Record, 2001 - Contando suas experiências nos bares, Jaguar mostra a importância deles na oposição à ditadura
Nos Bares da Vida – Produção Cultural e Sociabilidade em São Paulo – 1940-1950, Lúcia Helena Gama, Senac, São Paulo, 1998 - Estudo acadêmico sobre a importância dos bares como espaço público informal do Brasil

Revista Aventuras na História

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