domingo, 28 de novembro de 2010

O perfil instituinte do movimento das beguinas, na Baixa Idade Média

Alder Julio Ferreira Calado

Desafio de monta é o de investigar certas questões relativas à Idade Média. E já foi ainda mais complicado! De fato, vários tópicos desse período histórico se apresentam como terreno escorregadio, cheio de armadilhas à pesquisa historiográfica. Os pesquisadores e pesquisadoras mais experientes são os primeiros a reconhecê-lo. Graças a significativos avanços investigativos recentes – aliás, não apenas no campo historiográfico ; também no campo interdisciplinar -, alguns entraves vêm sendo contornados.

Mas, isso é apenas um primeiro passo. Muitos obstáculos restam a ser enfrentados e vencidos. De um extenso elenco, aqui destacaria apenas dois: a dificuldade de se trabalhar com escritos e documentos imunes a alterações, após terem sido manuseados e copiados por diferentes pessoas, em épocas de intensa censura e perseguição, como a da Inquisição; e a necessidade de se decodificar adequadamente os diferentes discursos, em seus distintos contextos histórico, econômico, político, cultural

Um exemplo emblemático de se lidar com tais desafios incide nos estudos e pesquisas de textos de autoria feminina (suposta ou efetiva) ou que versem sobre seu protagonismo, precisamente numa época tão marcada por práticas e concepções misóginas. (Ver, por ex., FRANCO JÚNIOR, 1986; MACEDO, 1990)

As mulheres não constituíam certamente o único segmento estigmatizado. A elas se somavam todos os contingentes que viviam à margem e que ousavam transgredir os códigos dominantes: camponeses, pobres, doentes, mendigos, errantes, trovadores, críticos e contestadores da ordem imperante… Dificilmente, porém, se contesta terem sido as mulheres as maiores vítimas do período, até porque elas se faziam presentes nos demais segmentos estigmatizados.

Por outro lado, quanto mais se mergulha na pesquisa sobre a Idade Média, mais se dissipam velhos chavões homogeneizadores desse período milenar. Descobrem-se singularidades surpreendentes. Enquanto se navegava tranqüilamente em águas seguras de superfície, mantinha-se a tendência de se confirmar antigos estigmas sobre esse longo «período de trevas». No momento em que se decide revisitar esse «óbvio» por outros ângulos – os propiciados pela navegação das correntezas subterrâneas -, então, vai-se deparar com cenários surpreendentes.

É, por exemplo, o caso dos movimentos sociais de protesto e de contestação àquela ordem hegemônica. (Ver, por ex., CALADO, 1999). Quantos movimentos sociais, grupos e personagens medievais souberam expressar corajosamente a sua palavra dissonante, ainda que por isso tenham pago com a própria vida! Em determinadas circustâncias históricas e existenciais, é a única opção de se afirmar a vida com liberdade e dignidade, na medida em que se constata que a vida dos Humanos, impregnada de natureza e cultura, distingue-se e transcende a vida de outros viventes. (cf., por ex., COMBLIN, 1999). Para os Humanos dotados de consciência e chamados à liberdade, não serve qualquer tipo de vida. Daí a disposição de se lutar e de se resistir à opressão, sob as mais variadas formas.

Da chamada baixa Idade Média, sobretudo do século XII ao século XV, podemos recolher muitas lições de resistência propositiva. Num período em que a nobreza e a alta hierarquia eclesiástica encarnavam a expressão de um sistema totalitário, nas diferentes dimensões da realidade social, é de se perguntar: de onde suas principais vítimas extraíam tanta força para opor-lhes resistência?

E, no entanto, lá estavam os Goliardos, jovens rebeldes – tidos por uns como vagabundos, por outros como subversivos da ordem social em vigor – a percorrerem os caminhos da Europa Ocidental, com seus poemas iconoclastas, com suas sátiras mordazes, mas também com suas canções de amor, todos reunidos numa coletânea: os famosos Carmina Burana…[1] Os Goliardos fizeram da poesia sua arma principal, uma forma própria de afirmar seu espírito de liberdade, como mostram as linhas abaixo citadas de um de seus poemas, intitulado “Versos sobre o dinheiro”:

O dinheiro reina, soberano, sobre a terra/ É admirado por reis e pelos grandes/ A ordem episcopal, venal, lhe rende homenagem/ O dinheiro é o juiz dos grandes concílios/ O dinheiro faz a guerra, e quando quer, obtém a paz/ O dinheiro é que faz os processos, para que sua conclusão dele dependa/ O dinheiro compra e vende tudo, dá e toma de volta o que deu/ (…) Graças ao dinheiro, o idiota se torna incontestável falante/ O dinheiro compra médicos, adquire amigos prestimosos/ (…) torna barato o que é caro, e suave o que é amargo.”[2] (ap. Wolff, 1995:62).

Qualquer semelhança com situações e personagens contemporâneas não é mera coincidência! A exemplo desta, são muitas as poesias de protesto da época. Outra, por exemplo, conhecida como “Canção da camisa”, atribuída a Chrétien de Troyes, por volta de 1180, levanta seu grito contra a situação de exploração de que são vítimas as mulheres tecelãs:

“Nós estamos sempre a tecer panos de seda/ E nem por isso seremos melhor vestidas/ (…) Mas, os nossos salários enricam/ Aquele para quem nós trabalhamos.” (Le Goff, 1983:65)

Há um leque consideravelmente amplo de grupos e movimentos medievais que apresentam variadas formas de resistência. Além dos já mencionados, há muitos outros, dentre os quais: os Cátaros, os Valdenses, os Begardos, as Beguinas, os Espirituais franciscanos, os Dolcinianos, os seguidores de Wycliffe e Huss, os Anabatistas…

Séculos depois das denúncias das tecelãs inglesas, a situação das classes populares inglesas continuava tão ou ainda mais grave. Não sendo ouvidos em suas denúncias, os camponeses e os artesãos ingleses não tiveram outra saída, a não ser organizar um levante contra seus cruéis senhores, marchando sobre as principais sedes do poder feudo-monárquico-clerical, tal como ocorreu ao Movimento dos Trabalhadores da Inglaterra, em 1381, fato precipitado pela famigerada poll-tax, uma decisão do Parlamento inglês de sobretaxar de novo a massa dos trabalhadores. Nessas incursões sediciosas, destacaram-se, entre outras, as figuras de Tylor Wat, que comandou a marcha sobre a Cantuária, e John Ball, um missionário popular ou um pregador itinerante, conhecido por seus sermões inflamados de enorme repercussão popular. Costumava reunir o povo, aos domingos, e pregar assim:

Minha gente, as coisas não podem ir bem na Inglaterra, nem irão melhorar, enquanto as riquezas não forem postas em comum, enquanto houver nobres e servos, e enquanto a gente não se unir.” (…) “Quando Adão cavava a terra com a enxada e Eva tecia, onde é que estavam os nobres?” (Wolff, 1993:192-194).

Nesse período da Idade Média houve, com efeito, não poucos grupos e figuras humanas que preferiram o sacrifício de suas vidas à submissão à tirania. Desse círculo de resistância fazem parte vários protagonistas – coletivos, individuais, mulheres e homens -, dentre os quais: o franciscanismo radicalizado, os cátaros, albigenses, os goliardos, as beguinas.

Aqui elegemos apenas o Movimento das Beguinas como alvo desta reflexão. Nosso propósito se restringe aos seguintes passos: destamos alguns leves traços sócio-históricos do período contemplado (século XII a século XIV); caracterizamos aspectos centrais do Movimento das Beguinas e, como terceiro passo, buscaremos explicitar seus principais traços instituintes, a partir de elementos biobibliográficos relativos a duas figuras expressivas desse Movimento: Hildegard de Bingen e Marguerite Porète. Por último, tratamos de recolher alguns ensinamentos do Movimento das Beguinas, que podem ecoar em algumas experiências da atualidade.

Embates sócio-históricos da chamada Baixa Idade Média

Com semelhanças e singularidades também características de outros tempos e lugares, o período conhecido como «Baixa Idade Média» ocidental, que se estende do século XIII ao século XV, também comporta traços relevantes, nas diferentes esferas da realidade social. Sua principal marca é a de constituir um período de transição do Feudalismo para o nascente Capitalismo comercial. Entram em profunda crise as estruturas feudais. As alterações se davam em todos os planos: da economia à cultura, passando pela demografia, pela política…

Tempo de crescente ambiência urbana (os burgos), época de significativas invenções tecnológicas, na área agrícola (aprimoramento do arado, do moinho hidráulico…). Também na parte econômica, as atividades comerciais conheceram um surto promissor, resultante inclusive de saques de mercadorias trazidas do Oriente, permitindo o surgimento de uma nova classe (a burguesia), empenhada em suas atividades comerciais, impulsionadas inclusive pelas feiras, influindo na formação dos burgos, no processo de urbanização, no êxodo rural, no crescimento demográfico, no surgimento das universidades, o que implicaria modificações no velho sistema feudal em decadência.

Não menos afetada é a grade de valores. Sopra um vento de liberalização de certos valores, afetando o controle rígido das estruturas religiosas ainda em vigor. Mas, os privilégios ainda reinavam, largamente. E de maneira ainda mais visível, despontavam as desigualdades sociais:

O ambiente em que essas novas heresias surgiram era essencialmente urbano. O desenvolvimento das cidades, após o século XI, colocou em evidência as profundas desigualdades sociais e econômicas existentes entre pobres e ricos. Aos olhos dos leigos ficou visível a diferença entre o que os representantes da Igreja pregavam (humildade, amor, fraternidade) e o que faziam (acúmulo de bens, riqueza material. (MACEDO, 1996, pp. 25-26).

Tempo também de retorno das heresias, agora com nova motivação. Se as heresias que haviam marcado o período que se estendeu do séculos IV ao século VII restringiam-se ao dissenso doutrinário, os movimentos pauperísticos medievais levantam-se para combater a alta hierarquia e seus aliados da nobreza, pelo fosso gritante entre suas prédicas e suas práticas…

Misturam-se, por outro lado, situações e ocorrências de intensa dominação por parte de setores hegemonizados principalmente pelas forças da alta hierarquia eclesiástica e seus aliados, mas, ao mesmo tempo, ainda que com intensidade e ritmo diferenciados, fatos e situações marcados pelo protagonismo, pela capacidade de resistência e pela inventividade, em diferentes domínios, por parte dos setores subalternizados, compostos por mulheres, camponeses, trovadores, mendigos, em resumo, os que compunham as maiorias mantidas à margem daquela ordem social.

Não se trata, por conseguinte, de sucumbir a uma leitura determinista, incapaz de dar conta da diversidade de cenários e de tantos segmentos sociais que se opunham, sob vários aspectos, àquele modelo imperante.

Com efeito, trata-se de um período em que a organização eclesiástica se impunha cada vez mais, a modelar suas estratégias de dominação, inclusive por meio da imposição de sua rigorosa grade de valores. Pela secular expropriação dos bens culturais do conjunto da sociedade, os setores da alta hierarquia eclesiástica iam, a ferro e fogo, consolidando seus privilégios. Tudo em nome de Deus… Escândalos se multiplicavam. E para se manterem e ampliar seu controle sobre o conjunto da sociedade daquele período europeu, os setores privilegiados não hesitavam em recorrer aos instrumentos mais cruéis de tortura e perseguição, de que a Inquisição seria o ponto exponencial.

Eram, em verdade, variados e eficazes os recursos e instrumentos de dominação, inclusive os de caráter ideológico, como o apelo ao controle do corpo – principalmente o corpo feminino, o corpo do camponês, o corpo do pobre, enfim. Armou-se uma vasta e complexa trama de castigos e punições, atingindo as raias da autopunição (cf., por ex.: MACEDO, 1996, pp. 64-71; COMBLIN, 2005), ocasião em que tais instrumentos e recursos alcançavam tal eficiência, que eram os próprios dominados a introjetarem as armas dos moninadores.

Foi asssim que o alto clero vai consolidando e ampliando seu poder, em detrimento do das mulheres, dos leigos, dos camponeses, dos artesãos, dos enfermos, dos prisioneiros, dos servos, etc.

Por outro lado, nunca se deve esquecer que, a despeito de toda vigência e de toda eficácia dessas estratégias, nunca faltaram sinais de resistência e de rebeldia por parte pelo menos de certos segmentos dominados, seja em âmbito individual, seja em âmbito coletivo. Disso é prova convincente o leque de movimentos sociais de resistência bem como de figuras que se rebelaram a essa ordem dominante.

Na esteira da resistência irrompem também as Beguinas

O período da Baixa Idade Média caracterizou-se, também, como tempos marcados pela resistência de grupos e de pessoas amantes da liberdade, que se opunham ao sistema totalitário controlado pelo alto clero e seus aliados. Nas palavras de um estudioso do referido período histórico,

Foram dezenas de seitas heréticas que surgiram durante os primeiros séculos da Baixa Idade Média, entre elas podemos citar os joaquinistas, os pseudo-apóstolos, os beguinos e beguinas também conhecidos como Irmãos Pobres da Penitência da Ordem de São Francisco, os arnaldistas, que pregavam uma reforma de clara tendência político-social, os flagelantes, os humilhados, todas elas defendendo uma nova ética cristã e diferindo da igreja na interpretação de algumas de suas doutrinas e dogmas. (PAIS, 1992, p. 58).

Nos diferentes cenários de atuação desses grupos, é considerável a participação das mulheres em quase todos os movimentos de resistência e de protesto contra a dominação totalitária exercida pela alta hierarquia da Igreja e seus aliados. É freqüente, por conseguinte, a presença feminina nos mais diversos movimentos de heresia: dos Cátaros aos “Fraticelli”; dos Valdenses e Albigenses aos Begardos e Beguinas, além de outros de caráter diferenciado, a exemplo dos Goliardos. Neles era notável o nível de participação das mulheres, em alguns dos quais – como no caso das Beguinas – tendo elas exercido um papel de reconhecida influência até sobre membros da hierarquia.

Nos estudos das fontes e documentos relativos a esse período histórico europeu, resulta impactante constatar o grau de protagonismo que se observa, no interior desses movimentos de heresias – alvo maior da perseguição movida pela alta hierarquia – por parte das mulheres, que aliás constituíam um contingente considerável, de variado espectro, incluindo solteiras, casadas, viúvas, camponesas, artesãs, pobres, ricas de nascimento tornadas pobres, sábias, mulheres das letras, leigas consagradas ao serviço dos pobres, entre outras características. (cf., por ex., LE GOFF, 1964; MACEDO, 1990).

Com efeito, nas mais diferentes expressões de resistência a toda aquela estrutura totalitária medieval, as mulheres tiveram um lugar destacado, seja do ponto de vista individual, seja também do ponto de vista coletivo. No que respeita à Baixa Idade Média da Europa Ocidental, por exemplo, elas estiveram presentes entre os membros da corrente radical do Franciscanismo, entre os Cátaros como entre os Valdenses e Albigenses. Protagonismo feminino também fortemente atuante no caso do Movimento das Beguinas, aqui tomado como alvo principal de nosso estudo.

O termo “Beguina” (“Begijnhof”, “Béguinage”) tem origem controvertida. Segundo alguns, estaria ligado a uma antiga tradição do século X, inspirada em Santa Bega[3]. Outros atribuem sua etimologia aos Albigenses: “al-bigen-enses”, enquanto há uma outra versão, segundo a qual teria origem em Lamberto, o gago, um frade de Liège, que teria destinado sua riqueza à fundação de um hospício, em Liège, onde teria acolhido as viúvas e os filhos dos que partiam para as cruzadas. (cf. BIHLMAYER & TUECHLE, 1964, pp. 240-241).

Seja como for, tratava-se de um movimento formado por mulheres devotas, dedicadas à causa dos pobres, com sólida formação humanizadora, de profunda sensibilidade aos valores do Sagrado (“embriagadas de Deus”) e à causa dos pobres, a quem desejavam servir e se consagrar, mas sem o controle rígido dos mosteiros e dar congregações dirigidas por homens, numa sociedade extremamente misógina.

Com relação às Beguinas, afirma um pesquisador nascido nos países baixos, onde tiveram marcante atuação:

As “beguinas” eram moças que não queriam entrar num mosteiro, queriam dedicar a vida ao serviço de Deus e do próximo. Até os 30 anos de idade viviam na casa de uma “beguina” mais velha. Ao completar 30 anos, passavam a viver sozinhas numa casinha. Dedicavam a vida ao trabalho, ao serviço dos pobres, doentes ou anciãos. Realizavam exercício de piedade em conjunto, mas cada uma tinha uma vida independente. Formavam às vezes ruas inteiras de casinhas semelhantes. Em certas cidades formavam uma cidade dentro da cidade (Begijnhof, Béguinage). (…) Em síntese, essas “beguinas” eram leigas, não faziam votos, viviam na pobreza e na piedade. Praticavam a continência, mas podiam sair da vida de “beguinas” quando quisessem. (COMBLIN, 1999, p. 126).

Sem prejuízo de seu trabalho junto aos excluídos da época, convém lembrar que sua atuação se estendia por diferentes campos de ação, inclusive na área das letras e da produção de saberes. Várias delas se notabilizariam como sábias e místicas, com grande influência na formação até de célebres místicos, a exemplo de Ruusbroec, Tauler e Eckhart. Além desse perfil, apresentam outra característica, relativa à sua atuação no campo das letras. E assim, vão se destacando figuras tais como Hildegard de Bingen (1098-1179), Hadewijch de Antuérpia, Hadewijch II, Béatrice de Nazareth (1200-1268), Mechtildes de Magdebourg (1207-1224), Marguerite Porete (1250-1310), Lutgardes de Tongeren, Yvette de Huy, Maria de Oignies, Cristina a Admirável, entre outras.

Convém ainda ter aqui presentes dois aspectos: não apenas a quantidade de nomes femininos ilustres, como sobretudo o caráter de suas produções, valendo ressaltar, como no caso de Hadewijch de Amberes, ter-se tratado da fundadora da língua flamenga, tal o pioneirismo e tal a qualidade atribuída à sua produção literária. (cf. ZUM., 1988; COMBLIN, 1998, ib., p. 127).

No tocante à qualidade dos escritos espirituais das beguinas, tal é sua relevância que, ao debruçar-se sobre as produções místicas dessas mulheres, assim afirma a pesquisadora Émilie Zum:

À medida que são feitas pesquisas nesse domínio, constata-se com maior certeza que esses temas já estavam presentes nos espirituais do século XIII, em particular em nossas beguinas, uma ou até várias gerações antes que Mestre Eckhart os tivesse tomado como seus. (ZUM, 1988, p. 23)[i][4]

Ao nos depararmos com casos tão atípicos, no que diz respeito ao protagonismo dessas mulheres, pelo menos um elemento nos resulta intrigante: como se tornou possível, numa época tão remota e, sobretudo, marcada pelo androcentrismo, encontrar-se elementos de resposta a esse dado? O que se observa é algo paradoxal: a despeito de toda hegemonia androcêntrica, as mulheres – pelo menos aquelas bem nascidas – tinham condições de estudo semelhantes às dos homens. (cf. COMBLIN, 1998, ib.)

Não era raro, àquela época, no caso de famílias de recursos, entregarem algum filho ou alguma filha aos cuidados de um mosteiro, ou mais precisamente, de um monge ou de uma monja. Graças ao acompanhamento desses, pois, os meninos ou as meninas iam aprendendo a ler, a escrever, a rezar os Salmos, a cantar, a tocar algum instrumento musical, aprender o ofício de copistas, além de outras habilidades.

Pelo menos aquelas figuras femininas exponenciais, em que pese toda a adversidade do meio, buscaram e encontraram alguns meios de formação, tendo inclusive tido escolarização, e aprendido o Latim e outras línguas hegemônicas da época, o que lhes permitiu acesso à leitura da Vulgata (com mais freqüência, os Salmos e os Evangelhos), bem como à leitura de alguns clássicos (entre eles, alguns padres da Igreja, a exemplo de Isidro de Sevilha[5], do século VI da era cristã). (cf., por exemplo, PERNOUD, 1996; ÉPINEY-BURGART, 1998).

Nesse contexto formativo, é que passamos a considerar alguns elementos biobibliográficos de algumas figuras femininas identificadas com o ideário das Beguinas, entre os séculos XII e XV, iniciando pela trajetória de Hildegard de Bingen.

Elementos bibliográficos para pesquisar a trajetória de algumas beguinas

Ao longo de mais de três séculos, durante a Baixa Idade Média, é que se deu a atuação das Beguinas, essas mulheres “embriagadas de Deus”, que, sentindo-se tocadas pela Palavra de Deus, tal como os profetas do Antigo Testamento, buscaram atender e ser fiéis aos apelos do Espírito, da “grande Luz”.

Uma consulta especialmente aos textos proféticos e apocalípticos bíblicos (do Antigo Testamento, em particular os livros dos profetas Daniel, Ezequiel, Isaías e Jeremias, mas também o Apocalipse) ajuda a perceber a semelhança dos relatos das visões e profecias produzidos por essas mulheres. Dois aspectos aí se destacam: a forma do chamamento e o relato de visões. É notória, nos relatos vetero-testamentários, a freqüência de expressões como “Ouve e dize”, “Eis o que diz o Senhor”. Trata-se dos aspectos fundamentais componentes do cenário da vocação profética. É constante nas profecias de Isaías, Jeremias e de outros chamamentos, como o feito por Javé a Moisés.

Quanto ao segundo traço a merecer destaque, tem a ver com o relato de visões, expressando a forma como Javé se dirige aos chamados. Na profecia de Joel, por exemplo, lê-se o desejo da parte de Deus, de que os membros do seu Povo – os idosos, os jovens, as jovens – tenham visões, como forma do exercício de profecia. (cf. Livro de Joel, cap. 3).

Com essas observações iniciais, tratemos, a seguir, de fornecer uma breve notícia biobibliográfica de algumas dessas sábias místicas medievais.

A primeira delas é Hildegard de Bingen, região alemã em que viveu, entre 1098 e 1179. Nascida em Bermersheim, de origem de família da nobreza, “filha de baróes”, foi ainda criança entregue pelos pais aos cuidados pedagógicos de Jutta de Sponheim, uma monja beneditina da região, a quem foi confiada a educação da criança. Não se tratava de uma prática estranha à época. As famílias de posse costumavam recorrer a um mosteiro ou a monges ou monjas, para que cuidassem da educação de seus filhos e filhas.

A partir de sua introdução aos ensinamentos religiosos, após os rudimentos da língua, eram-lhes também ministrados conteúdos básicos como cantos, instrumentos musicais, elementos da Sagrada Escritura em Latim, tais como os Salmos e os Evangelhos, inclusive fragmentos dos clássicos, dos padres da Igreja, além de outros ensinamentos e habilidades.

Desde logo, Hildegard revelou-se uma criança talentosa, muito afeita a diferentes áreas de saberes, desde elementos relativos à saúde, aos dotes musicais. Não é à-toa que, já adulta, viria a compor cerca de setenta sinfonias. (cf. PERNOUD, 1988).

Quanto aos seus escritos, Hildegard se apresenta como uma escritora fecunda, havendo produzido um número considerável de obras, versando sobre distintos temas, predominando seus escritos místicos, fruto da revelação divina.

Com efeito, a partir dos seus quarenta e três anos, Hildegard, à semelhança do que se passa com as visões tidas pelos profetas do Antigo Testamento e do Livro do Apocalipse, vai ser constantemente alvo de revelações que lhe são proporcionadas por sucessivas visões, como ordens de Deus. Reagindo a um desses registros, uma pesquisadora comenta: “Não é sem hesitação que se recebe semelhante mensagem. Hildegard fala de sua ansiedade e insiste no caráter muito nítido, imperioso, pode-se dizer, da ordem que lhe é dirigida.” (PERNOUD, 1996, p. 18).

Dentre eles, aqui destacamos: Scivias seu Visiones (“Saiba os caminhos de Deus ou as visões”, produzida entre 1141 e 1151); Liber divinorum operum simplicis hominis (Livro das obras divinas do homem simples, escrita entre 1163 e 1173, e considerada seu trabalho mais completo. São também de sua lavra: Explanatio Regulae Sancti Benedicti (Exposição da Regra de São Bento), Hymnodia coelestis (Hinário celeste), entre outros.

Tudo começa, quando completa 43 anos, e recebe uma visão, instando-a a registrar a ordem divina:

Eis que no quadragésimo ano do meu curso temporal, toda trêmula de emoção, vi um magno esplendor e ouvi uma voz do céu que me dizia: “Ó homem frágil, cinza da cinza, podridão da podridão, diz e escreve o que vês e ouves (…) diz e escreve, não segundo a boca do homem nem segundo a inteligência de uma invenção humana, nem segundo a vontade de compor humanamente, mas segundo o que vês e ouves de celestes maravilhas vindas de Deus. (Hildegard, in Scivias, ap. Hildegard segue a explicar por que somente então passa a tornar público o que, desde criança, vinha tendo, bem como a descrever o caráter dessas visões:

Não tive as visões em estado de sonolência ou dormindo, nem em êxtase, nem por meus olhos corporais nem por meus ouvidos humanos exteriores (…) mas é estando acordada que eu as vejo com meus olhos e com minhas orelhas humanas, interiormente. (Ib., p. 18).

Que mensagens da parte de Deus lhe são confiadas? Uma delas, por exemplo, traz um tom de denúncia contra o clero, em suas ações desregradas:

Os que velam por mim, ou melhor, os padres, que deveriam tornar o meu semblante rutilante como a aurora, e graças aos quais minha vestimenta deveria brilhar como o relâmpago, e meu manto cintilar de pedras preciosas, e meus calçados irradiar a alvura, eis que eles espargiram pó sobre o meu rosto, rasgaram minha vestimenta, ensombrearam meu manto e enegreceram meus calçados. Esses que deveriam ornar cada parte de mim arruinaram-me em cada coisa. (Ib., ap. PERNOUD, p. 120).

O quadro geral alvo dessas denúncias proféticas iria agravar-se sensivelmente, nas décadas ulteriores, justificando o aumento e a intensidade das denúncias por parte de vários movimentos e figuras que se seguiriam a Hildegarde de Bingen.

Um desses movimentos, por exemplo, se notabilizaria a partir de meados do século XIII, percorrendo áreas de vários países europeus (Itália, França, Inglaterra, Espanha). Trata-se do movimento dos chamados Apostólicos, os “Fraticelli”, de forte inspiração franciscana, animado por figuras tais como Geraldo Segarelli e por Frei Dolcino. Insurgindo-se contra os crescentes abusos e escândalos do alto clero e da ordem então dominante, esse movimento tratou de denunciar esse modelo e, ao mesmo tempo, ensaiar, jnnto aos pobres, um projeto alternativo, com base nas primitivas comunidades cristãs. Pregavam contra a alta hierarquia, experienciavam uma vida de pobres entre pobres, na solidariedade, na partilha, na oração, no serviço aos pobres:

A seita dos Apostólicos fundada por Segarelli por volta de 1260 compõe o quadro dos movimentos pauperísticos e milenaristas que floresceram, em grande número, naquele período. Levavam uma vida de muito jejum e roação, trabalhando ou pedindo esmolas, não praticavam o celibato obrigatório. A cerimônica de admissão dos novos seguidores previa o despojamento das vestes em público, para representar a pórpia nudez perante Deus, como Francisco havia feito. Pregavam a obediência às Escrituras, que implicava a desobediência aos pontífices; exercitavam a pregação intinerante pelos leigos. Pregavam a iminência do castigo celeste provocado pela corrupção dos costumes eclesiásticos, a observância dos preceitos evangélicos e a pobreza absoltua. Este último ponto acarretou obviamente a ira da igreja de Roma (http.it.wikipedia.org/wiki/Fra´_Dolcino).[6]

Antes e depois dos Apostólicos, surgiram várias outras místicas, direta ou indiretamente ligadas ao Movimento das Beguinas. Como se sabe, mesmo afinadas com o ideário das Beguinas, nem todas essas mulheres tiveram o mesmo caminho. Nem todas viveram foram dos conventos, algmas até votos formais pronunciaram. O caso de Beatriz de Nazareth evoca esse estilo misto.

Para sublinhar outro relevante aspecto relativo ao percurso existencial de Hildegart de Bingen, convém chamar a atenção para o pioneirismo de suas idéias em relação à Modernidade. Focando justamente esse caráter precursor dessa beguina, e aludindo a duas miniaturas (atribuídas a Leonardo da Vinci), “representando um homem de pé, braços estendidos, destacando-se o círculo que simboliza o mundo”, afirma uma respeitada pesquisadora de sua obra:

Mais de três séculos antes do nascimento de Leonardo, esta visão do homem, braços abertos sobre o globo da Terra, está presente na obra da pequena abadessa das margens do Reno. Entretanto, quanto mais Leonardo da Vinci é estudado, pesquisado, enaltecido e divulgado nos tempos clássicos e modernos, mais a obra de Hildegard – e a de sua época em geral – são esquecidas.(PERNOUD, 1996, p. 69).

Algo parecido também ocorre, aliás, em relação à pretensa exclusividade de autoria dos ocidentais, quanto a descobertas e invenções da Modernidade. O que aí tem havido de omissão ou de usurpação acerca da verdadeira autoria de descobertas e invenções por parte de povos não-europeus é algo espantoso. Sobre isso ver, por exemplo, o recentíssimo estudo realizado por Eduardo Galeano, em seu livro intitulado Espejos. Una historia casi universal, publicado pela Siglo XXI, que ajuda a colocar muitos pontos nos is: acerca da verdadeira autoria de invenções como a da escrita, a da álgebra (ambas inventadas no Iraque)… E o quê dizer sobre o fato de que “As três novidades que tornaram possível o Renascimento europeu, a bússola, a pólvora e a imprensa, haviam sido inventadas pelos chineses, que também inventaram quase tudo que a Europa reinventou.”?

Mas, vejamos um segundo exemplo de beguina: Marguerite Porète, nascida na França, em Valenciennes. Estima-se que tenha vivido entre 1250 e 1310. Pouco se sabe de seus traços biográficos. À semelhança de outras figuras amantes da liberdade, nesse período, o sistema totalitário então vigente encarregou-se de apagar vestígios. O pouco que se sabe, dela e de outras figuras semelhantes, é graças a registros de seus inimigos. Como lembrava um estudioso marxista, seria como pretender-se saber da vida dos opositores de Stalin por meio dos registros produzidos pelos seus apoiadores… Grande desafio! Mas, até esses registros podem atestar elementos de verdade que se quis esconder.

No caso de Marguerite Porète e de outras beguinas, observa-se o furor da alta hierarquia eclesiástica contra a enorme coragem profética de mulheres livres que ousavam compartilhar relatos de suas visões. É o que acontece também a Marguerite Porète, que pertence à mesma corrente das beguinas que sacudiram os fundamentos da cristandade, mesmo tando que pagar caro: Marguerite de Porète seria queimada viva, em Paris, no dia primeiro de junho de 1310, por haver escrito Le Miroir des âmes simples anéanties, uma obra-prima da literatura mística de todos os tempos, que passaria a influenciar figuras místicas como Mestre Eckhart, João da Cruz, entre outras.

O livro produzido por Marguerite Porète é constituído de 139 capítulos, cuja extensão varia entre algo como sete páginas (é o caso, por exemplo, do cap. 118) e meia página (a exemplo do cap. 138). Trata-se de breves relatos circunstanciando, com arte, beleza e profundidade, diferentes dimensões dialogais resultantes da relação amorosa entre o Amor (a Deus) e a Alma (a figura humana, que ela personifica).-Diálogos que nos remetem ao estilo do Livro do Cântico dos Cânticos, muito escanteado, até hoje. “Et pour cause!”

Quê diálogos são aí relatados por esssa mística extraordinária? Vejamos alguns trechos.

Já de início, percebemos algo profundamente impactante. A Autora adverte – e assim se lê em outras passagens – de que se trata de um diálogo aberto e interligível apenas para quem se põe em sintonia com o Amor:

Voz do Amor: Escutai, ó vós, ativos e contemplativos, talvez mesmo aniquilidados por verdadeiro amor, vós que ides escutar alguns prodígios do puro amor, do amor nobre, do amor educado, da alma liberta, vós que ides escutar como o Espírito Santo nela pôs sua vela como em seu navio, peço-vos por amor: escutai com grande empenho e com esse entendimento sutil que tendes em vós, e que se acha bem atento! Do contrário, por não estarem com essa disposição, todos os que ouvirem isso, irão comprender mal! (PORÈTE, 1997, p. 51).[7]

Quem se põe, por exemplo, do ponto de vista estritamente racional, não logrará alcançar a mensagem, apenas acessível a quem se mune com as lentes do coração, do Amor que é o prórpio Deus. Eis por que, no capítulo 5, por exemplo, se acha um dos elementos de profundo entrave na relação com a alta hierarquia que, atribuindo-se qualidades divinas, não tolera o exercício de nenhum dom que não passe pela sua autorização: referimo-nos à relação direta de Deus com as pessoas, sem intermediários. Falando do desejo da Alma, eis o que relata Porète:

Essa alma tem seis asas como os Serafins. Ela não não quer nada que venha por um intermediário, o que é do próprio estado dos Serafins: não há nenhum intermediário entre o amor deles e o amor divino. Recebem sempre a mensagem d´Ele sem intermediário. Do mesmo modo, esta alma a recebe, porque não busca a ciência divina entre os senhores deste mundo, mas com verdadeiro desprezo desse mundo e dela própria. Meus Deus! Como é grande a diferença entre um dom que o Bem-Amado concede à sua bem-amada, por um intermediário, e o que é feito sem intermediário! (PORÈTE, 1997, p. 55).[8]

Para alcançar tal nível de liberdade, há de se dispor ao aniquilamento de si, para que aí reine a própira Liverdade: Deus. Este mesmo Deus que se apresenta para a Alma como um “Longe-Perto que a põe continuamente em união com o seu querer, sem desgosto do que quer que lhe possa suceder.” (PORÈTE, 1997, pp. 230-231).

Deus passa a ser o único soberano, como o assinala um dos estudiosos da Autora:

A soberania do Um exige o aniquilamento de toda forma de alteridade suscetível de apequenar sua plenitude. É isso que a bondade de Deus espera da alma: que ela Lhe confie sua própria existência, ou seja: “toda a diferença” que a distinga do divino. Deus, esse ser ciumentíssimo, só tem um desejo: que ela Lhe entregue gratuitamente – “sem nada questionar” – o seu ser, que se confunde, para Porete, com a essência da humanidade: uma vontade livre. (RICHIR, 2003).[9]

Vários elementos que se recolhem desta Autora podemos encontrar em outras do mesmo período. Aspectos como a liberdade, a linguagem amorosa, a relação direta com Deus, entre outros, podem ser observados em outras, também. Além dos textos impressos, já se encontra algum material em páginas eletrônicas. Inclusive a propósito de Marguerite Porète:

Assim, deixando seu ego tornar-se “fogo de Amor”, a alma descobre-se tal qual é e sempre foi: unida ao Amor. Doravante, ela “nada mais quer, porque é livre”. Totalmente realizada num Amor que escapa à razão, ela sobrevôa acima de todas as referências, dos rituais, da oração, da virtude, dos dogmas. Eis por que Marguerite faz a distinção entre a “pequena-igreja… feita de gente governada por Razão” e a “Grande-Igreja” formada pela comunidade de almas livres. São tantas as passagens que suscitaram o furor da autoridade eclesiástica já irritada pelo alto conhecimento espiritual das Beguinas.

Vendo essas idéias uma oposição intensa e um sacrilégio à instituição católica, a Inquisição condena e queima a obra, julgada herética, em 1306. Mas, Marguerite continua a propagar suas idéias entre religiosos e leigos, mas vendo-se isolada como nunca. Porque, se sua mística singular lhe valeu a perseguição por parte da Igreja, ela permaneceu também marginalizada no seio das próprias Beguinas. Em pouco tempo transportada a Paris, em 1310, ela é condenada por heresia e perece dignamente na fogueira. [10]

( http://www.fraternet.com/magazine/etr_0802.htm)

Por meio desses curtos trechos recolhidos de sua obra preciosa, pode-se entender o perfil profundamente místico, ético e profético dessa Autora, o que nos ajuda sobremaneira a compreender toda a carga de ira de que foi vítima da parte da alta hierarquia eclesiástica. Seu processo não deixa dúvidas a esse respeito.

Vale, por último, reter dessa mulher “embriagada de Deus” alguma palavra que nos convida à reflexão:

Eis o que de melhor tenho a dizer e a aconselhar a todos os que vivem sob minha obediência. Assim, digo a todos que ninguém queira ler este livro com a minha inteligência, mas que todos o leiam pela virtude da Fé e pelo poder do Amor, que são minhas senhoras. Eis por que em tudo eu lhes obedeço. Além disso, quero dizer, assim fala a Razão, quem tiver essas duas cooisas em sua vida, isto é, a luz da Fé e o poder do Amor tem permissão para fazer tudo o que lhe agrade, por mercê do próprio Amor que diz à Alma: Meu amor, ame e faça o que quiser.”[11]



Outras mulheres se notabilizaram, nesse período. Tivemos aqui – e rapidamente – ocasião de nos ater a apenas dois casos. Não passam de um aperitivo, a nos convidar a vôos mais ousados. Revisitando seus relatos, suas cartas, seus escritos, não tardamos a chegar a entender por que, por exemplo, não apenas elas, como outras figuras desse e de outros movimentos de resistência, amplamente influenciados pelos Franciscanos radicais, foram proibidos de pregar e de atuar como missionários e missionárias. A alta hierarquia chegou a proibir o povo até de dar-lhe esmolas. Mas, também é certo que ousaram levar a sério a palavra da Sagrada Escritura, de que “é preciso obedecer, antes a Deus, do que aos homens”(At 5, 29).

Considerações sinópticas

Dos rápidos elementos acima trabalhados acerca da contribuição dos movimentos medievais, em especial o das Beguinas, convém sublinhar alguns pontos a recolher como inspiração às lutas e aos desafios dos dias presentes.

Um primeiro ponto que destacaríamos é precisamente a força revolucionária da experiência de luta libertária, quando feita em movimento. Não é por acaso que, em todos os tempos, são os movimentos sociais populares, com seus parceiros e aliados, os protagonistas mais relevantes das mudanças sociais conquistadas.

Também, no caso da Baixa Idade Média européia, essas iniciativas instituintes, inclusive por meio de mobilizações e levantes, a despeito de haverem sido duramente reprimidas, deixaram suas lições. Quando se afirma que liberdade que se preze não vem de graça, nem como dom dos poderosos, mas, sendo uma conquista, só se consegue com muita luta, não é à-toa que se diz. A História está aí a atestar…

Isso não quer dizer que baste uma única iniciativa, nem que elas sejam todas bem sucedidas. De modo nenhum. É preciso saber que arrancar uma conquista social relevante quase sempre supõe um acúmulo de iniciativas, a maioria das quais frustradas, mas chega um dia em que uma começa a dar certo, e compensa as frustrações amargadas e o alto preço social pago.

No caso das Beguinas, como foi analisado, sua ação de resistência se dá mais expressamente no plano cultural, a exemplo dos Goliardos. Desejosas de exercitar sua religiosidade de modo alternativo, isto é, por fora do figurino ditado pelas normas das congregações religiosas, as Beguinas trataram de assegurar as condições para, como se dizia à época, “extra religionem religiose vívere”, ou seja: viver a experiência do Sagrado, fora dos quadros institucionais.

Trataram – pelo menos, várias delas -, por conseguinte, de não aderir a nenhuma congregação, nem à vida em claustro, nem à profissão solene permanente de votos perante a autoridade eclesiástica. Foram viver sua experiência do Sagrado junto aos pobres, a quem se dedicaram, solidárias, em serviços múltiplos, junto aos excluídos da época, junto às “ovelhas sem pastor”: os enfermos, os idosos, os órfãos, as mulheres abandonadas pelos maridos, as concubinas, as vítimas da prostituição…

Eram mulheres livres, ciosas de sua independência, trabalhavam para se manterem. Independentemente de sua origem social – algumas vinham de condições econômicas privilegiadas -, faziam questão de manter um padrão de pobreza como estilo de vida, como testemunho do caráter de sua espiritualidade, em sinal de sua solidariedade aos excluídos da época, e em protesto contra os desmandos e o monopólio clerical da pregação, ao que opunham sua ousadia de pregar publicamente.

Algumas delas se notabilizaram pela sua erudição, como poetisas, como escritoras, a exemplo de Marguerite Porète, francesa, autora de um tratado de espiritualidade escrito em vernáculo, cujas idéias lhe custaram o sacrifício da fogueira pela Inquisição, em 1310; Hadewijch de Amberes, a quem se atribui a fundação da língua flamenga escrita. (cf. Falbel, 1977:81; Comblin, 1998:125-129; Rezende, 1999). Pelo menos sob certos aspectos, o movimento das Beguinas comporta alguns elementos de contribuição ou de certo pioneirismo instituinte quanto a valores feministas, especialmente os que se caracterizam pela valorização da condição feminina.

Nesse sentido, alguns pontos podem ser destacados, como aspectos a serem recolhidos desse rápido exercício investigativo.

Em que pese alguma variação de circunstâncias histórico-existenciais e de estilos, tratou-se globalmente de um movimento de mulheres leigas que buscavam viver a sua fé para além dos muros dos conventos e mosteiros. Isso implicou para uma parte expressiva daquelas mulheres viverem em pequenas comunidades, em casas simples, dedicando-se à oração, ao trabalho (intelectual e manual), e ao serviço dos excluídos daquela época, sem que para tanto se sentissem obrigadas a professar votos perpétuos ou a se integrar organicamente numa instituição eclesiástica, sob o controle masculino da alta hierarquia.

Algumas dessas mulheres se notabilizaram sobremaneira pelo caráter instituinte do seu trabalho e pela qualidade de sua produção intelectual, em diferentes áreas de saberes: da teologia à medicina, da cosmologia à condição humana, em geral. Em alguns casos, foram, sob vários aspectos, precursoras de valores da Modernidade, a despeito da manutenção de um longo e incômodo silêncio.

Seu caráter instituinte ecoa até os dias de hoje. Ficou bem conhecida, especialmente no Nordeste brasileiro, a fecunda experiência das Comunidades Religiosas Femininas Inseridas no Meio Popular (as PCIs), tão bem estudas na pesquisa de dissertação, a Socióloga e Educadora Valéria Rezende (cf. REZENDE, 1999). Eram formadas de religiosas de diferentes congregações que, ousando “romper muros”, trataram de sair dos seus confortáveis conventos para irem fazer a experiência da vida junto com os pobres, nas periferias das cidades e na zona rural: as beguinas do novo tempo.

Referências

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CALADO, Alder Júlio Ferreira. Memória Histórica e Movimentos Sociais: ecos libertários de heresias medievais na contemporaneidade. João Pessoa : Idéia, 1999.

COMBLIN, José. Vocação para a Liberdade. São Paulo: Paulus, 1998.

______________. Cristianismo e corporeidade. In: SOTER (Org.) Corporeidade e Teologia. São Paulo: Soter e Paulinas, 2005, p. 7-20.

______________. Vida em busca de Liberdade. São Paulo: Paulus, 2007.

ÉPINEY-BURGART, Georgette (Org.). Femmes Ttoubadours de Dieu. Bruxelles: Éditions Brepols, 1988.

FALBEL, Nachmann. Heresias Medievais. São Paulo : Perspectiva, 1977.

_________________, Os Espirituais Franciscanos. São Paulo : EDUSP-FAPESP-Editora Perspectiva, 1995.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. Idade Média : o nascimento do Ocidente. São Paulo : Brasiliense, 1986.

HADEWICH DE AMBERES. Deus Amor e Amante. São Paulo: Paulinas, 1989.

LE GOFF, Jacques (Org.). Hérésies et sociétés dans Europe pré-industrielle. 11e.-XVIIIe. siècles. Paris: Mouton & Co et École Pratique des hautes Études, 1964.

MACEDO, José Rivair. A Mulher na Idade Média. São Paulo : Contexto, 1990.

_________________. Religiosidade e Messianismo na Ida Média. São Paulo: Moderna, 1996.

MARIANI, Ceci Baptista. Marguerite Porete, um corpo que se fez espelho de Deus – Estudo sobre o problema da inacessibilidade do transcendente e do ideal de inalterabilidade na obra mística de Marguerite Porete, Le Miroir des âmes simples et anéanties. In : Veritas, revista da PUC – RS, vol. 48, n. 3, 2003, pp. 427-440.

PAIS, Marco Antônio de. Oliveira. O Despertar da Europa. A baixa Idade Média. São Paulo : Atual, 1992.

PERNOUD, Régine. Hildegard de Bingen. A consciência inspirada do século XII. Tradução de Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

PORETE, Marguerite. Le Miroir des âmes simples et anéanties. Introduction, traduction et notes de Max H. Longchamp. Paris: Michel Albin, 1997.

REZENDE, Maria Valéria. Vidas rompendo muros : as pequenas comuunidades religiosas inseridas no meio popular no Nordeste. Dissertação de Mestrado. João Pessoa, UFPB/PPGS, 1999.

ZUM, Émilie. Introduction, in ÉPINEY-BURGART, Georgette (Org.). Femmes Ttoubadours de Dieu. Bruxelles: Éditions Brepols, 1988.

WOLFF, Philippe. O Outono da Idade Média ou a Primavera dos Tempos Modernos? São Paulo : Martins Fontes, 1988.

——- Les béguines au Moyen Age (XIIe – XIVe. siècle) Des Femmes livres de Dieu, in:

http://calenda.revues.org/nouvelle2335.html

Alder Julio Ferreira Calado é sociólogo e educador popular, membro do Grupo Interdisciplinar de Estudos Medievais. Autor de, entre outros, Memória Histórica e Movimentos Sociais: ecos libertários de heresias medievais na contemporaneidade. João Pessoa: Idéia, 1999.

Notas:
[1] Ver cuidadosa tradução de parte da extensa obra Carmina Burana, feita por Maurice WOENSEL, Maurice van (Introd. e trad.). Carmina Burana. São Paulo: Ars Poetica, 1994.

[2] Repare, neste item, a semelhança com os versos que dizem “Poderoso cavalheiro é dom dinheiro”, também oriundos da poesia medieval espanhola, salvo engano. Karl Marx, em citação do Fausto de Goethe, em seu manuscrito Terceiro, no item intitulado DINHEIRO (Manuscritos Econômicos e filosóficos de 1844, in Erich Fromm, Conceito Marxista do Homem, Rio de Janeiro, Zahar Editores), também situa a mediação universal do dinheiro (torna o coxo o mais veloz dos corredores, por exemplo) como inversor de valores e de relações humanas com as coisas, as pessoas, o mundo e a realidade como um todo. Rolando Lazarte

[3] “Die Herkunft des Namens Beginen oder Begarden ist bis heute nicht eindeutig geklärt. Erzählungen in Verbindung mit dem Namen der Hl. Begga die in einer späteren Epochl.” (http://de.wikipedia.org/wiki/Beginen)

[4] “Au fur et à mesure des recherches en ce domaine, on constate avec plus de certitude que ces thèmes étaient présents chez les spirituels du treizième siècle, en particulier par nos béguines, une ou même plusieurs générations avant que Maître Eckhart ne les ait fait siens.” (E.ZUM, 1988, p. 23).

[5] Isidro de Sevilla constitui uma das figuras de referência dentre os chamados Padres da Igreja, homens sábios, teólogos, que tiveram grande influência para muito além do seu tempo. De Isidro, afirma-se que “sus ideas filosóficas se encuentran expuestas, principalmente en los Libri Sententiarum y en las Etimologías; el Liber de viris illustribus es altamente interesante como repertorio de personajes de la época y el Chronicon y la Historia de regibus gothorum, wandalorum et suevorum, sus obras históricas más notables. Mas ninguna de las obras del sabio arzobispo es tan representativo como Originum sive etymologiaum libri XX, denominada vulgarmente Etimologías, resumen admirable dela cultura clásica, fruto de vastísima y fecunda asimilación, que se convirtió en indispensable en toda biblioteca de la Edad Media. Las Etimologías, se convirtieron en el texto pedagógico más importante de su época. Los libros I y II están dedicados al Trivium; el III, al Quadrivium; el IV, a Medicina; el V, a Derecho y Cronología; VI, VII, y VIII, a Teología y Cánones; el IX, a Política y Sociología; el X, a Lexicología; XI y XII, a Zoología; XIII y XIV, a Geografía; XV, a Arquitectura y Agrimensura; XVI, a Mineralogía; XVII, a Agricultura; XVIII, a Milicia; XIX, a Marina, y XX, a Artes Manuales. El arzobispo de Sevilla fue canonizado en 1598 y el Papa Inocencio XIII, en 1722, lo declaró doctor de la Iglesia. Y como dijo el sabio de Sevilla: “Perdona para que se te perdone, olvida para que se te olvide”. (Francisco Aria Solis, in http://www.analitica.com/va/arte/documentos/3143478.asp

[6] “Essi conducevano una vita con frequenti digiuni e preghiere, lavorando o chiedendo la carità, senza praticare il celibato forzoso: la cerimonia di accettazione dei nuovi seguaci prevedeva che pubblicamente si spogliassero nudi, per rappresentare la propria nullià davanti a Dio, come aveva fatto san Francesco; predicavano l’ubbidienza alle Scritture, che portava alla disobbedienza ai pontefici, la predicazione ambulante dei laici, l’imminenza del castigo celeste provocato dalla corruzione dei costumi ecclesiastici, l’osservanza dei precetti evangelici e la povertà assoluta. Quest’ultimo punto, ovviamente, portò alle ire della Chiesa di Roma ed i dolciniani stessi furono accusati di depredazioni e accaparramenti decisamente maggiori di quelli strettamente necessari a garantire la loro semplice sopravvivenza”. (http.it.wilipedia.org/wiki/Fra´_Dolcino).

[7] “Amour dit ici: O vous, actifs et contemplatifs, peut-être même anéantis par amour véritable, vous qui allez écouter quesques-uns des prodiges de l´amour pur, de l´amour noble, de l´amour élevé, de l´âme libérée, vous qui allez écouter comment le Saint-Esprit a mis sa voile en elle comme en son navire, je vous en prie par amour: écoutez en grande application de cet entendement subtil qui est en vous, et qui est en grande diligence! Autrement, faute d´être ainsi disposés, tous ceux qui entendront cela, le comprendront mal.” (Porète, 1997, p. 51)

[8] «La souveraineté de l’Un exige l’anéantissement de toute forme d’altérité susceptible d’amoindrir sa plénitude. C’est ainsi que la «bonté» de Dieu attend de l’âme qu’elle lui sacrifie son existence même, à savoir «toute la différence» qui la distingue du divin. Dieu, ce «Trés Haut Jaloux», n’a qu’un désir : qu’elle lui fasse gracieusement don – «sans pourquoi» – de son être, lequel se confond, pour Porete, avec l’essence de l’humanité : une volonté libre. (Commentaire de Luc RICHIR, dans son livre : « Marguerite Porète, Le Miroir des âmes simples et anéanties. Titre de son livre : Marguerite Porèste : une âme au travvail de l´Un. Bruxelles: Ousia, 2003.).

[9]

[10] “Ainsi, en laissant son ego devenir lui-même « feu d’Amour », l’âme se découvre telle qu’elle est et a toujours été : unie à l’Amour. Désormais, elle « ne veut plus rien puisqu’elle est libre ». Totalement accomplie dans un Amour qui échappe à la raison, elle vole au-dessus de tous repères, des rituels, de la prière, de la vertu, des dogmes… C’est pourquoi Marguerite fait la distinction entre la « petite église… faite de gens gouvernés par Raison » et la « Grande Eglise » formée par la communauté d’âmes libres. Autant de passages qui ont suscité les foudres de l’autorité ecclésiastique déjà agacée par la haute connaissance spirituelle des Béguines. Voyant dans ces propos une opposition farouche à la morale et un sacrilège de l’institution catholique, l’Inquisition condamne et brûle l’ouvrage jugé hérétique en 1306. Mais Marguerite continue à propager ses idées parmi religieux et laïcs, plus seule que jamais. Car si sa mystique singulière lui a valu la persécution de la part de l’Eglise, elle demeura somme toute assez marginalisée au sein même des Béguines. Bientôt transportée à Paris en 1310, elle est condamnée pour hérésie et périt dignement sur le bûcher.” ( http://www.fraternet.com/magazine/etr_0802.htm)

[11] “… This is the best, says Reason, that I know how to say and consel all those who live by my obedience. Thus I say to all, that none will grasp this book with my intellect, unless they grasp it by the virtue of Faith, and by the power of Love, who are my mistresses because I obey them in all things. And moreover I wish to say, says Reason, whoever has these two strings in his bow, that is, the light of Faith and the power of Love, has permission to do all that pleases him, by the witness of Love herself that says to the Soul: My Love, love and do what you will.” (http://www.geocities.com/ganesha_gate/porete.html)

http://www.consciencia.net

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