terça-feira, 16 de novembro de 2010

Entre lobos e cordeiros


Entre lobos e cordeiros - Da natureza para a cultura
Entre feras e animais domésticos, o homem definiu as fronteiras da casa, da cidade e o seu próprio lugar na natureza
Cláudia Beatriz Heynemann

A ciência, os hábitos de civilidade, a industrialização e o avanço das cidades nos séculos XV a XVIII separaram a casa da natureza, os homens dos animais. Na Europa e na América, isso não aconteceu de uma hora para outra. Crenças e práticas culturais tiveram seu papel nessa transformação. Por volta dos séculos XV e XVI, acreditava-se que a natureza tinha uma finalidade: os animais e as plantas existiam para satisfazer as exigências de ordem prática, moral ou estética da vida humana. O canto dos pássaros servia para o entretenimento e as ovelhas eram criadas para nos alimentar. Na visão religiosa, esse era o universo da Criação, uma leitura cristã das ideias de Aristóteles (384- 322 a.C.), filósofo grego que sustentava que nada na natureza existe por acaso.

Representada por nomes como Galileu (1564-1642) e Descartes (1596-1650), a ciência moderna rejeitou o antropocentrismo e tirou os seres humanos do seu lugar de destaque na “grande cadeia do ser”. Além disso, as viagens e descobertas, o aumento das espécies identificadas na natureza e até mesmo o advento do microscópio – que desvendou uma realidade até então invisível – aprimoraram o que já se sabia sobre os animais. Se, até então, tudo existia para atender ao homem, sentimentos e características humanas também acabavam sendo projetados nesses seres, sobretudo nos animais. E esta era a base do antropomorfismo.

Circulava pelo Brasil colonial o manual francês de taxidermia – a arte de empalhar animais – O naturalista instruído, escrito pelo abade Denis Joseph Manesse (1743-1820), que atribuía personalidades aos espécimes, referindo-se às “feições” que uma boa técnica deveria preservar. Dessa forma, era possível perceber “a viveza, a doçura, a ferocidade do seu caráter...”. Essa atitude convivia com o outro lado da moeda, pois era fundamental diferenciar as pessoas dos animais em seu comportamento, como assinalou o historiador Keith Thomas sobre a Inglaterra dos séculos XVI ao XVIII. Os manuais de civilidade, que traziam normas para o bom comportamento, lembravam aos leitores que ao rir não deveriam “relinchar”, ou roer ossos como se fossem cães. Outras atitudes, como os excessos sexuais, a gula ou a própria ferocidade, eram classificadas como “bestiais” ou “animalescas”, e esses adjetivos acabavam sendo aplicados a grupos humanos. Aos pobres, mulheres, índios, ou africanos atribuía-se uma animalidade, uma vez que, ainda de acordo com Keith Thomas, “a ética da dominação humana retirava os animais da esfera de preocupação do homem. Mas também legitimava os maus-tratos àqueles que supostamente viviam uma condição animal. Nas colônias, a escravidão, com seus mercados, as marcas feitas com ferro em brasa e o trabalho de sol a sol, constituía uma das formas de tratar os homens vistos como bestiais”. (...)

Revista de História da Biblioteca Nacional

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