segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Semana Rio de Janeiro

Guerra santa na Guanabara


Guerra santa na Guanabara
Divergências religiosas internas e um intenso combate com os portugueses puseram fim à colônia França Antártica
Luiz Fabiano de Freitas Tavares

Onde estava, afinal, o testamento no qual o “Pai Adão” legara o mundo às Coroas portuguesa e espanhola? Quem fez esta pergunta foi Francisco I (1494-1547), rei da França, que desafiou o Tratado de Tordesilhas, firmado em 1494 por Portugal e Espanha para assegurar o domínio ibérico sobre as terras do Novo Mundo. O monarca respondeu ao Tratado com uma provocação, declarando a política de mare liberum (em latim, “mar livre”). Como resultado, navios de comerciantes franceses percorreram o litoral brasileiro em meados do século XVI, criando bases de comércio ao longo da costa. Uma delas deu origem à colônia França Antártica, em 1555, situada na Baía de Guanabara, e assim batizada devido à crença de que se localizava perto do polo antártico. Doze anos depois, após um intenso combate, os portugueses conquistaram definitivamente a cidade do Rio de Janeiro.

As forças portuguesas vitoriosas foram comandadas pelo governador-geral Mem de Sá (1500-1572), que, como o padre José de Anchieta (1534-1597), descreveu a colônia francesa como um ninho de hereges, composto exclusivamente de seguidores da Reforma Protestante. Diziam ainda que tinham sido encontrados livros sobre o protestantismo nas fortificações. Dessa forma, o combate ganhava ares de luta contra a heresia reformada, tornando-se meritório aos olhos de Deus e da comunidade católica. Mais que uma disputa territorial, a expulsão dos franceses se tornava uma guerra santa.

Esses relatos portugueses foram usados mais tarde pelo historiador Francisco Adolfo Varnhagen (1816-1878) na elaboração de sua obra História do Brasil, escrita no século XIX. A ideia de uma França Antártica formada exclusivamente por protestantes foi confirmada pelo autor e propagada entre diversos historiadores brasileiros. Mas as narrativas francesas sobre o episódio mostram o contrário: a colônia abrigava diferentes tendências religiosas, e essa variedade causara conflitos internos que dividiram a comunidade. De fato, na Europa a Reforma protestante revolucionava a experiência religiosa em diversas terras e gerava grandes oposições. No âmbito francês, destacava-se a liderança de João Calvino (1509-1564), exilado em Genebra, de onde exercia grande influência, principalmente teológica, sendo suas intervenções no campo político pouco significativas.

A versão dos derrotados diz que, em 1555, o monarca francês Henrique II (1519-1559) concedeu ao experiente militar Nicolas Durand de Villegagnon (1510-1572) a elevada quantia de dez mil libras tornesas para conduzir uma esquadra da França ao Brasil. Nascido em família de nobreza recente, Villegagnon tornou-se cavaleiro da Ordem de Malta, organização militar e religiosa fundada no tempo das Cruzadas. Após uma longa ascensão social, ocupou o posto de vice-almirante da Bretanha.

Os adversários protestantes de Villegagnon diriam mais tarde que o cavaleiro tinha se convertido à Reforma e desejava fundar um refúgio no Novo Mundo, onde seria possível “melhor servir a Deus”. De acordo com essa ideia, Villegagnon teria aderido ao protestantismo e depois traído a religião. Mas ao partir da Europa, sua companhia não deixava perceber nenhuma predileção religiosa. A bordo estavam o piloto adepto da Reforma Nicolas Barré (? –1562) e o cosmógrafo franciscano André Thévet (1504-1592).

Após meses de viagem, em março de 1556 os navios franceses comandados por Villegagnon chegaram à Guanabara. Os viajantes ocuparam a ilha de Serigipe, iniciando a construção do Forte Coligny, assim batizado em homenagem a Gaspar de Coligny (1519-1572), almirante de França e um dos incentivadores do projeto.

Segundo os primeiros relatos de Thévet e Barré, publicados em1557 na Europa, o convívio entre católicos e protestantes foi inicialmente pacífico. A relação amistosa com os índios tupinambás também foi fundamental para a consolidação da colônia. Os nativos forneciam alimentos e água aos franceses, pois a ilha de Serigipe, escolhida por razões puramente militares, não possuía fonte de água doce. Em troca, os indígenas obtinham mercadorias europeias, especialmente instrumentos de ferro.

A comunicação com os índios era feita pelos trugimães, franceses que conviviam com os indígenas havia anos, tendo aprendido sua língua e seus hábitos. Mas em pouco tempo esses intérpretes entrariam em conflito com os novos colonos. Villegagnon exigiu que todos os homens que desejassem manter relações sexuais com as índias se casassem com elas. Os trugimães, que viviam na terra em contato com as mulheres nativas havia muito tempo, foram contra. Fez-se um complô contra os chefes da colônia para matá-los, mas o plano foi descoberto a tempo, permitindo a captura dos organizadores do motim e a morte dos líderes.

Os meses seguintes de 1556 transcorreram sem sobressaltos, mas em março de 1557, uma comitiva de adeptos da Reforma, liderada pelo nobre Du Pont e por dois pastores, Pierre Richer e Guillaume Chartier, chegou à Guanabara vinda de Genebra. Eram convidados do almirante francês Gaspar de Coligny, que se convertera ao protestantismo. A iniciativa foi orientada pelo líder reformador João Calvino. Entre os recém-chegados também estava o huguenote Jean de Léry (1534-1611), que, após retornar à Europa, escreveu o relato História de uma viagem feita à Terra do Brasil, uma das mais importantes obras sobre a França Antártica.

Inicialmente, o relacionamento entre o chefe da colônia e a comitiva de Du Pont foi amistoso, segundo as cartas de Villegagnon e dos pastores a Calvino. Porém, menos de um mês após a chegada dos protestantes, surgiu um conflito relacionado à celebração do culto de Páscoa. Para os católicos, o pão se transformava realmente no corpo de Cristo durante o ritual, enquanto para os protestantes seria apenas um símbolo da presença do filho de Deus. Para Villegagnon, a comunhão era uma das bases do poder real, e a negação da presença do corpo de Cristo abalava as bases em que a monarquia se apoiava.

Num primeiro momento, os grupos em litígio tentaram chegar a um acordo. O pastor Guillaume Chartier foi enviado de volta à Europa para consultar Calvino sobre o tema. Mas os debates não se resolviam, e a divergência religiosa foi tamanha que no fim de 1557 a comitiva de Genebra retornou à Europa. Contudo, o navio começou a afundar quando estava ainda na altura de Cabo Frio, e cinco genebrinos resolveram voltar de bote. Os náufragos foram recebidos por Villegagnon, que executou três por afogamento poucos dias depois. Segundo Jean Crespin (1523-1572), célebre editor militante reformado, autor de importante martirológio protestante, os três eram mártires da causa reformada, condenados por razões religiosas. Mas para o cavaleiro de Malta, os ditos “mártires” teriam provocado tumultos, incitando os colonos à insurreição e, dessa forma, sua condenação se dava exclusivamente por motivos civis.

O resto da comitiva seguiu para a Europa num navio em condições precárias. Segundo Jean de Léry, a viagem se prolongou além do esperado e os viajantes foram obrigados a devorar os macacos e papagaios que transportavam e, em seguida, os ratos. Por fim, hidrataram e comeram seus utensílios de couro. Muitos morreram de fome ao longo da tormentosa travessia. De acordo com Léry, apenas a piedade cristã os impedira de praticar a antropofagia.

Finalmente, chegando à Europa, os huguenotes iniciaram uma campanha difamatória contra Villegagnon, acusando-o de ter se convertido à Reforma e depois traído a causa. Em 1559, o cavaleiro de Malta retornou à França para se defender das acusações e publicou um livro discutindo a teologia de Calvino, convidando o reformador para um debate, que jamais aconteceu. A fidelidade à ortodoxia católica demonstrada por Villegagnon provocou uma guerra de panfletos, com muitas respostas e réplicas por parte dos protestantes. Ele acabou reconquistando a confiança do jovem rei Francisco II (1544-1560), e preparava outra expedição rumo ao Novo Mundo, em 1561, quando chegou a notícia da queda do Forte Coligny, na França Antártica, tomado pelos portugueses em 1560. Villegagnon abandonaria este plano, tratando apenas de obter uma indenização da Coroa portuguesa. E ganhou, apesar das pretensões lusitanas de legitimidade do tratado de Tordesilhas.

Os franceses ainda persistiram na Guanabara até 1567, quando seriam definitivamente expulsos por Mem de Sá. Embora tenham construído duas fortalezas nesse período, Paranapuã e Uruçumirim, a colônia jamais voltou a ser o que fora antes.

Pouco se sabe do que se passou nesses últimos sete anos, mas os relatos portugueses apontam que nas fortificações havia muito mais indígenas que franceses.

Na década de 1570, o debate foi retomado na França, quando André Thévet publicou a Cosmografia Universal, que acusava os protestantes pela perda da França Antártica. Respondendo a essa obra, Jean de Léry escreveu sua História de uma viagem feita à terra do Brasil, em que defenderia os huguenotes dessa acusação, atribuindo o verdadeiro fim da colônia às atitudes de Villegagnon, traidor da confiança de Coligny.

Independentemente da disputa de versões, as obras de Thévet e Léry constituem preciosos registros sobre o Brasil da época. Embora a experiência da França Antártica tenha sido temporária, legou essas fontes de pesquisa e, mais ainda, a “cidade maravilhosa” de São Sebastião do Rio de Janeiro. Já dizia Jean de Léry que não havia no mundo paisagem mais bela que a Baía de Guanabara. Este talvez seja um dos raros fatos incontestáveis sobre o episódio da França Antártica.

Luiz Fabiano de Freitas Tavares é professor Universidade Castelo Branco e da Rede Municipal do Rio de janeiro, Autor do Livro entre Genebra e a Guanabara: A discussão política huguenote sobre a França Antártica (TopBooks, 2009).

Saiba Mais - Bibliografia:

LÉRY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.

MARIZ, Vasco e PROVENÇAL, Lucien. Villegagnon e a França Antártica. Rio de Janeiro: Bibliex, 2000.

MARIZ, Vasco (org.). Brasil França – relações históricas no período colonial. Rio de Janeiro: Bibliex, 2006.

MENDONÇA, Paulo Knauss de. O Rio de Janeiro da Pacificação. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esporte, Departamento de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1991.

O protestantismo de Calvino

Noventa e cinco teses contra os abusos da hierarquia eclesiástica afixadas na porta da igreja de Wittenberg, Alemanha, em 1517. Este gesto de denúncia, realizado por Martinho Lutero (1483-1546), geralmente é considerado o início da Reforma Protestante. O monge agostiniano é excomungado. Em resposta, a bula papal é queimada. Como um incêndio, as novas ideias vão se propagando: católicos e reformados se confrontam, sobretudo na Europa Central. O francês João Calvino (1509-1564) adere ao protestantismo, desenvolvendo uma linha particular que enfatiza a predestinação, segundo a qual o homem já nasce escolhido por Deus para a vida eterna ou para a condenação. Do ponto de vista moral, o calvinismo é marcado por um extremo rigor, visível na própria cidade de Genebra, governada por Calvino e seus seguidores, onde danças e jogos são proibidos, e é imposta uma rígida disciplina a todos os habitantes. A doutrina do reformador genebrino se difunde principalmente nos Países Baixos, na Escócia, na Inglaterra (dando origem a duas correntes: os presbiterianos, mais moderados, e os puritanos, mais radicais) e na França, onde os calvinistas recebem o nome de huguenotes. (Equipe RHBN)

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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