terça-feira, 27 de julho de 2010

Noel Rosa, o feitiço de Vila Isabel

Centenário do poeta que não queria choro nem vela

HERBERT CARVALHO



O compositor em autorretrato
Foto: Reprodução

Com sobrenome de flor, ele se chamava Noel, assim batizado pelo pai francófilo porque nasceu às vésperas do Natal. Sua existência de apenas 26 anos, quatro meses e 23 dias, entre 11 de dezembro de 1910 e 4 de maio de 1937, foi breve como a passagem do cometa Halley pelos céus do Rio de Janeiro no ano de seu nascimento. Porém, também foi brilhante como a estrela d’alva que deixou a Lua tonta em uma das quase 300 composições que marcariam a música popular brasileira por meio do encontro entre o ritmo negro do samba de morro e os melhores versos de uma lírica popular boêmia dos botequins, que conquistou para sempre a alma do público ao pedir, em melodia sincopada, ao “seu garçom” para trazer depressa uma boa média e um pão bem quente com manteiga à beça.

Noel de Medeiros Rosa nasceu, viveu e morreu em Vila Isabel, típico bairro de classe média da zona norte carioca fundado pelo barão de Drummond – também inventor do jogo do bicho –, situado entre a quase rica Tijuca e o proletário Andaraí. Seu parto – assim como sua morte – aconteceu no modesto chalé da Rua Teodoro da Silva, paralela ao Boulevard 28 de Setembro (data da assinatura da Lei do Ventre Livre), onde sua mãe, professora, mantinha uma escolinha para ajudar no sustento da família. Dona Marta, porém, tinha a bacia estreita e num movimento de mau jeito do fórceps para a retirada do primogênito ocorre a fratura do maxilar inferior, provocando a falha no queixo que, junto com o cigarro pendurado no canto da boca, chamaria a atenção nas fotografias e caricaturas de Noel.

Embora marcado pelo defeito – chegará a ser chamado de Frankenstein da Vila no título de um dos sambas de sua célebre polêmica com Wilson Batista – e apesar da dificuldade para mastigar, que o levaria a alimentar-se só com ovos quentes, mingaus e sopas, o menino que depois de alfabetizado em casa chega aos 12 anos de idade ao Ginásio São Bento não é triste nem complexado. Ao contrário, é um rebelde que atazana a vida dos monges e professores daquele que ainda hoje é um dos mais tradicionais e rigorosos colégios do Rio. Já é também um líder e um gozador, lembrado pelos colegas – que se tornarão ministros, médicos, generais e intelectuais, como Augusto Frederico Schmidt – como editor de “O Mamão”, que idealizou para se contrapor à revista oficial “A Alvorada”. Com um bebê faminto sugando a mamadeira desenhado por ele mesmo como logotipo – revelando uma habilidade para a caricatura que seria mais um ponto em comum com o cartunista Antônio Nássara, seu futuro parceiro –, é nas páginas do jornalzinho manuscrito, passado de mão em mão por baixo das carteiras, que começa a se desenvolver a verve para a paródia, a sátira e a crítica ferina que caracterizam muitas de suas melhores letras.

Bando dos Tangarás

Avesso a qualquer forma de disciplina – característica que mais tarde será decisiva para frustrar todas as tentativas de cura da tuberculose adquirida nas noitadas boêmias –, Noel teve muita dificuldade para concluir o que na época se chamava “bacharelato em ciências e letras”, necessário para entrar na Faculdade de Medicina, conforme a vontade de sua família. Reprovado em matérias como história do Brasil, ele se salva, por ironia, graças a um episódio histórico, a Revolução de 1930: Getúlio Vargas, recém-empossado chefe do governo provisório, determina em um de seus primeiros decretos a aprovação sumária e sem exceção de todos os estudantes brasileiros daquele ano, que haviam ficado sem aula desde o início do movimento armado, no dia 3 de outubro.

Compelido desde cedo a comprimir num tempo curto um modo de viver intenso, Noel foi precoce em tudo: antes dos 15 anos já fumava compulsivamente, bebia e frequentava bordéis, ao mesmo tempo em que gazeteava aulas. É também nessa época que se envolve com a música, aprendendo primeiro a tocar bandolim com a mãe e depois violão, instrumentos que animam os saraus e as serenatas, principal divertimento de um bairro convertido em celeiro de artistas como Nássara e Orestes Barbosa.

Por essa razão é em Vila Isabel que o tijucano Almirante recruta, em 1929, o já exímio violonista Noel Rosa para integrar o Bando dos Tangarás, quinteto que se dedicará a gravar emboladas nordestinas e toadas sertanejas, em moda no Rio de Janeiro na época. Evocando pássaros que cantam e dançam reunidos em bandos de quatro ou cinco, o nome é uma ideia de Henrique Foréis Domingues, comerciário e pandeirista nas horas vagas, que ganhara o apelido de Almirante quando, ao servir o tiro de guerra naval, desfilara todo posudo ao lado do comandante Mathias da Costa, por ocasião da chegada ao Rio do hidroavião Jaú. Líder e eficiente divulgador do grupo, que não chega a superar as limitações do amadorismo, Almirante ficará com o mérito de iniciador da carreira não apenas de Noel – de quem mais tarde será um dos primeiros biógrafos – mas também de outro jovem tangará, Carlos Alberto Ferreira Braga. Mais conhecido como Braguinha ou João de Barro, pseudônimo que adota para reforçar o espírito de um grupo formado por pássaros, ele será o criador das mais famosas marchinhas de carnaval, entre as quais Pastorinhas, parceria com Noel Rosa inspirada nos ranchos que desfilavam em Vila Isabel no Dia de Reis. Como tentativa de se adaptar ao tipo de música dos Tangarás, as primeiras composições de Noel são a toada Festa no Céu e a embolada Minha Viola, reveladoras de sua capacidade de conciliar diferentes ritmos e melodias com letras de extrema originalidade.

Com que roupa?

É no final de 1929, quando o mundo recebe o impacto da quebra da Bolsa de Nova York e países periféricos como o Brasil ficam à deriva, sem ter para quem exportar suas commodities, que Noel Rosa começa a dedilhar no violão os acordes daquele que seria seu primeiro samba e o grande sucesso do carnaval de 1931, inspirador de anúncios comerciais, paródias, charges, crônicas e entrevistas, além de perenizador da expressão “Com que roupa?” como dito popular. Tanto a letra como a música eram absolutamente surpreendentes. A primeira apontava para a nudez de um país que mais uma vez trocava as oligarquias no poder, deixando o povo na mesma tanga em que se encontrava desde o Descobrimento. E a segunda começava com as primeiras notas do Hino Nacional, o que faria a música ser proibida pela censura e até poderia levar o autor para a cadeia, não fosse a intervenção do maestro Homero Dornellas. Encarregado de passar a melodia para a pauta, ele inverteu as notas que faziam o verso “agora eu vou mudar minha conduta” soar exatamente como o célebre “ouviram do Ipiranga às margens plácidas”.

Rompendo com a poética romântica que privilegiava versos líricos como os de Catulo da Paixão Cearense na música popular, Noel introduz com esse samba pioneiro a temática social que se faria presente em tantas outras de suas letras: a denúncia dos leiloeiros do país, em Quem dá Mais?, o palacete reluzente e o dinheiro que nasce de repente em Onde Está a Honestidade?, a menina que namora, na esquina e no portão, rapaz casado com dez filhos e sem tostão em Coisas Nossas, o João Ninguém que come bastante no almoço para se esquecer do jantar, a mania de exibição dessa gente que não lembra que o samba Não Tem Tradução no idioma francês, o Seu Jacinto que deve sempre apertar o cinto, ou ainda a cama que não passa de uma folha de jornal, em O Orvalho Vem Caindo, são apenas alguns exemplos de uma série de canções que podem ser consideradas precursoras das críticas e sátiras que, entre outros, Chico Buarque de Hollanda e Caetano Veloso fariam da realidade brasileira a partir da década de 1960.

Na linha melódica, Com que Roupa? assinala a opção de Noel por um dos dois tipos de samba que se fazem no Rio de Janeiro desde os fins do século 19. O primeiro, nascido nas casas de Ciata e outras tias baianas que habitavam o que então se chamava Cidade Nova – a região do início da atual Avenida Getúlio Vargas mais os bairros da Gamboa, Saúde, Santo Cristo e Campo de Santana –, pendia mais para o maxixe, ao mesclar ritmos afro a gêneros europeus como polca e mazurca. São expoentes desse estilo os sambas de José Barbosa da Silva, o Sinhô – como Gosto que Me Enrosco e Jura –, e o primeiro a ser gravado, Pelo Telefone, de Ernesto dos Santos, o Donga, e Mauro de Almeida.

Apesar de grande admirador de Sinhô, a quem fez questão de conhecer na adolescência em companhia de Hélio Rosa – o irmão mais novo com quem chegaria a compor um foxtrote –, a escolha de Noel recai sobre o ritmo mais próximo da marcha, que o bloco Deixa Falar adotou no Estácio de Sá, bairro situado entre o Rio Comprido e o Catumbi, o morro de São Carlos e a Zona do Mangue. Enquanto na Cidade Nova as festas são animadas por piano, flauta, cordas e metais de conjuntos como os Oito Batutas, de Pixinguinha – que já em 1922 se apresentariam em Paris –, no Estácio o samba marcado por surdo, cuíca e tamborim reflete o modo de vida de uma população negra mantida à margem do mercado de trabalho desde o fim da escravidão, empurrada para a malandragem que se apoia no baralho e na valentia, por um lado, na batucada e na orgia, por outro.

Parcerias

“Esse filho de dona Marta só vive metido com gentinha.” O comentário dos vizinhos indica o progressivo afastamento de Noel do Bando dos Tangarás e demais amizades comportadas de classe média – assim como a desistência do curso de medicina após alguns meses de um vestibular e uma matrícula feitos apenas por insistência da família – e seu envolvimento cada vez maior com sambistas do morro.

Num tempo em que não existiam parcerias inter-raciais na música brasileira – conforme assinala o jornalista João Máximo –, Noel se faz parceiro de 14 sambistas negros, entre os quais se destacam Ismael Silva, do Estácio, e Agenor de Oliveira, o Cartola, da Mangueira. Com o primeiro fará 16 sambas e duas marchas, obedecendo a uma divisão de trabalho em que Ismael faz a primeira parte, e a segunda, tanto letra como música, fica a cargo de Noel, como no grande sucesso Para me Livrar do Mal, gravado por Francisco Alves. Este, conhecido como O Rei da Voz, também entra em muitas parcerias, mas sem criar verso nem melodia: é um “comprositor”, como então se dizia. Com Noel estabelece uma relação mercantil curiosa, vendendo ao poeta um carro que será pago não em dinheiro, mas em sambas. Já Cartola, mais que parceiro, será o grande amigo, cujo barraco o poeta transforma numa segunda casa.

As parcerias mais famosas de Noel, entretanto, não seriam com um sambista de morro, nem sequer com um carioca, mas com o pianista paulista Osvaldo Gogliano, o Vadico, que mais tarde fará parte do grupo de Carmen Miranda e viverá por cerca de 15 anos nos Estados Unidos. A primeira é a obra-prima Feitio de Oração, com letra de Noel – garantindo que “batuque é um privilégio, ninguém aprende samba no colégio” e que “sambar é chorar de alegria, é sorrir de nostalgia, dentro da melodia” – e música de Vadico. Na sequência viriam Conversa de Botequim – a imortal crônica de um freguês abusado desfiando sucessivas ordens ao garçom – e Feitiço da Vila, principal declaração de amor das muitas feitas a seu bairro por Noel. Esta seria contestada por Wilson Batista em episódio da polêmica entre ambos no qual ele garante ser Conversa Fiada “dizer que o samba na Vila tem feitiço”. A contundente resposta de Noel vem em Palpite Infeliz, que pergunta “quem é você que não sabe o que diz?” A briga acaba em samba, ou melhor, na parceria de ambos intitulada Deixa de Ser Convencida.

Mulheres

O conjunto da obra de Noel – que inclui ainda curiosidades como o “samba anatômico” Coração e Gago Apaixonado – se insere como ponto culminante da chamada Época de Ouro da música popular brasileira, entre 1930 e 1945. É nesse período – em que o próprio país deixa de ser rural e agroexportador para se urbanizar, industrializar e expandir seu mercado interno – que se estabelecem as condições materiais para a profissionalização e a massificação da atividade musical por meio do rádio, da gravação eletromagnética do som e do cinema falado. Noel atuou nos três meios, cantando em rádio, gravando discos e compondo músicas para filmes como Alô, Alô, Carnaval e Cidade Mulher. Apesar de ter também cantado até em circo, feito paródias humorísticas no famoso Programa Casé, da Rádio Philips, e composto operetas como Ladrão de Galinha, A Noiva do Condutor e O Barbeiro de Niterói (imitando O Barbeiro de Sevilha, de Rossini), em seus sete anos de carreira recebeu cachês modestos como cantor e quase nada de direitos autorais, vivendo sempre no limite da pobreza.

Das muitas mulheres da vida de Noel, três se destacam: a operária Josefina, da América Fabril, para quem compõe Três Apitos, Lindaura, a vizinha menor de idade expulsa de casa após ter passado a noite com ele e com quem acaba se casando, por pressão da polícia e de ambas as famílias, e Juraci Correa de Moraes, a Ceci, seu grande amor, inspiradora de Dama do Cabaré – ela era dançarina de cabarés da Lapa, o bairro boêmio do Rio –, Pra que Mentir – composta quando descobriu que a amante estava nos braços do então jovem compositor, ator e militante comunista Mário Lago – e Último Desejo, samba-canção que tem a força de um testamento, até pela circunstância de ter sido passado para o pentagrama por Vadico com Noel já no leito de morte. Às 11 horas da noite da terça-feira, 4 de maio de 1937, Noel Rosa exala o último suspiro com a cabeça no colo de Lindaura, ao som de uma composição sua, De Babado, que anima uma festa na casa do vizinho. Os presentes a seu enterro no cemitério do Caju dão uma ideia do nível de talentos que aquela geração reuniu: entre os compositores, parceiros e cantores estão Ary Barroso, Lamartine Babo, Almirante, Benedito Lacerda, Pixinguinha, Mário Reis, Orestes Barbosa, Orlando Silva, Vadico, Nássara e João de Barro. Também está lá o jovem repórter do jornal O Globo, David Nasser. Sua matéria de dez laudas sobre a morte do “Bernard Shaw do samba” será reduzida a dez linhas, simbolizando o ostracismo que se inicia no mesmo instante em que o caixão baixa à cova rasa, e que durará mais de uma década.

Fita amarela

“O melhor que se pode dizer de Noel Rosa é que para a maioria dos artistas populares a fama acaba um dia após a morte. A dele só começou dez anos depois.” A frase do historiador e crítico musical José Ramos Tinhorão sintetiza o que ocorreu nos anos seguintes. Seis meses depois do funeral Getúlio Vargas decreta o Estado Novo e o espírito crítico dos compositores se esvai para dar lugar ao samba-exaltação de que Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, será o maior expoente. No pós-guerra inicia-se a invasão da música americana, junto com os produtos e o estilo de vida ianques, que nas décadas seguintes expulsariam o samba e outros ritmos nacionais dos meios de comunicação, confinando-os a guetos como hoje são as rádios e TVs públicas.

A resistência cultural, no entanto, expressa na insistência da principal intérprete da obra de Noel, Aracy de Almeida, em continuar divulgando suas músicas, obtém uma vitória em 1950. É quando a gravadora Continental lança um álbum com três discos de 78 rotações da cantora, inteiramente dedicado aos melhores sambas do poeta da Vila. O álbum se esgota rapidamente e não apenas é reprensado como um segundo é lançado, com mais seis sucessos de Noel. Já na era do LP seria a vez de Marília Baptista reviver a obra do mestre, que em anos mais recentes ganharia belíssimas interpretações de Paulinho da Viola, Maria Bethânia e Beth Carvalho, além de citações em músicas de Chico Buarque, Caetano Veloso, João Nogueira e Martinho da Vila. De autoria deste último é o samba-enredo Noel: a Presença do Poeta da Vila, com que a Unidos de Vila Isabel homenageou o centenário de nascimento de seu menestrel no carnaval de 2010.

Uma outra comemoração, entretanto, terá de esperar mais tempo. O livro Noel Rosa – Uma Biografia, de João Máximo e Carlos Didier, o trabalho mais completo sobre a vida e a obra do compositor, lançado em 1990 pela Editora UnB, não pôde ser reeditado, porque uma sobrinha decidiu embargá-lo judicialmente. Triste ironia para com o autor que no antológico samba Fita Amarela, após dizer que depois de sua morte não queria “choro nem vela”, afirmara: “Não tenho herdeiros, não possuo um só vintém/ Eu vivi devendo a todos, mas não paguei nada a ninguém”.

Revista Problemas Brasileiros

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