Mandonismo: do coronel ao malandro
Jean Pierre Chauvin*
Talvez Gilberto Freyre tenha sido o primeiro historiador brasileiro a alertar para o nosso “gosto de mando”, em 1933, ao abordar a relação entre o Senhor da Casa-Grande e os Escravos da Senzala. Mais tarde, Raymundo Faoro, Roberto da Matta, Maria Sylvia de Carvalho Franco e Roberto Schwarz, nos anos 70 - para citar alguns nomes mais conhecidos dos estudantes de ciências humanas -, enfatizaram a concentração de poder político nas mãos de tão poucos, lembrando que, por aqui, andar bem nas finanças quase sempre implicou a manutenção do poderio local, oficializado ou não: ser coronel ou político, do latifúndio ao gabinete.
Caberia ressaltar ainda os relevantes estudos de Maria Isaura Pereira de Queiroz, na década de 60, que vincularam o mandonismo local brasileiro a um dado histórico peculiar: a disputa entre os vereadores de uma mesma vila ou município por favorecimentos paralelos advindos da Corte portuguesa: notadamente, as prioridades que permitissem ao político conciliar seus interesses particulares, inclusive assuntos de foro mais íntimo e egoísta, a providências da esfera pública, por meio de burlas à própria Casa Real que os próprios vereadores mal representavam por aqui.
Em nossa literatura, que não é mera colagem de dados históricos ou fatos sociais, o coronel foi fartamente representado no chamado “romance regionalista”. Como se sabe, o gênero teve seu primeiro momento no Romantismo. No segundo estágio, especificamente em nosso Modernismo, os livros receberam um tratamento mais apurado, do ponto de vista técnico, formal. Equilibravam-se severas críticas a ideologias correntes a uma maior e mais sincera preocupação estética.
Curiosamente, o malandro – tipo ficcional que também poderia revelar a aversão de autores e leitores à figura do coronel – é encontrado de forma bem mais espaçada entre nossos escritores. O Leonardo - Memórias de um sargento de milícias, 1855 (Manuel Antonio de Almeida) - seria o malandro pioneiro, segundo Antonio Candido (1970). Quantos mais viriam depois dele? Possivelmente, Palha – Quincas Borba, 1891 (Machado de Assis), Numa Pompílio de Castro - Numa e a ninfa, 1915 (Lima Barreto), Teixerinha - Marafa, 1935 (Marques Rebelo), além de praticamente toda a malandragem do romance Cidade de Deus, 1997 (Paulo Lins).
Talvez o malandro apareça assim, multifacetado entre o ingênuo (Milícias), o canalha (Quincas Borba), o violento oportunista (Marafa) e aquele consciente de sua condição inexorável (Cidade de Deus) porque, bem ou mal, o tipo evoluiu com o passar das décadas. Seu aprimoramento, no universo da ficção, correu paralelo ao avanço dos novos critérios de exclusão social e o cerceamento dos espaços urbanos - divididos forçosa e drasticamente entre os burgueses decadentes (ou a classe média com seu poder aquisitivo diminuído) e a malandragem: nichos sociais.
Extinto o coronel, forte homem brabo do interior, invariavelmente amparado pelo poder público local, assoma o malandro da cidade, radicado no subúrbio fluminense, por excelência. Um traço comum a um e outro é o jeitinho que deram para mandar, escapando ao poder público legal: um por estar acima de qualquer lei, compadre influente que é; outro, no nível abaixo da mediania institucional, misturado que está às sabidas e repisadas mazelas sociais do país.
Sujeito de difícil classificação, o malandro não é ator típico da classe média, embora nela interfira diretamente, como provam seus ganhos em cima dos cidadãos que se autodenominam “homens de bem”. E embora a classe média, com suas subdivisões (baixa, média e alta) oscile historicamente entre ideologias de pobres e ricos, essa camada não comporta o homem cuja vida anda ao sabor dos golpes de sorte.
Por outro lado, em sua condição de homem abaixo da mediania sócio-econômica e cultural, ideologicamente o malandro é mais coerente com seus próprios códigos de ética, que tão poucos entendem.
O “homem de bem” vive do ordenado, mantendo suas contas em dia, ora bajulando o superior hierárquico, ora demonstrando suas habilidades inerentes ao posto por que responde. O malandro, sujeito que vive de expedientes, transita quase livremente entre a favela e o senhorio; paga o aluguel quando pode e ameaça a calma burocratizada dos pacatos cidadãos além dos morros, sempre ao alcance de suas investidas contra a classe trabalhadora.
A diferença básica entre o homem que, nas aparências, respeita o politicamente correto, e o segundo é que enquanto à classe média aplicam-se a acomodação, o andar conforme as regras, à classe marginalizada nada se impinge. Ser malandro é mandar; mandar implica tirar proveito; tirar proveito é uma das formas de reafirmar seu poderio e mando. Deve-se repensar a noção de autonomia, porque, sob tal perspectiva, a sensação de comandar o próprio destino certamente é mais palpável entre os malandros.
Caberia uma metáfora circense: enquanto as classes médias se equilibram a custo sobre a corda bamba, mirando sempre as alturas que prometem um maior poder de consumo, o malandro passa da condição de espectador à de manipulador. Sobe ao nível do equilibrista não para dançar com ele na mesma instabilidade ideológica ou econômica, mas para reter em suas mãos o controle do mecanismo que até então era operado pelo sistema.
De uma forma ou de outra, valeria a pena observar que a atividade dos mandões parece referendada pela nulidade da força pública. O coronel fazia o serviço ambíguo de interceptar o poder local e guardar a região de seus domínios, imbuído do poderio e favor sobre o mini-feudo que comandava sob o nome de Engenho.
O malandro (do mais ingênuo ao mais consciente de seu papel social) desde sempre burla as leis que os poderosos também descumprem, mas sem o aval oficial da força instituída, alerta que também é do descaso histórico com que as minorias sociais foram soterradas ou empurradas para as margens. E estar à margem pode ser a mais severa e atual metáfora de um país que ainda luta por ser Nação de fato: este.
* Jean Pierre Chauvin, professor de literatura no ensino médio, é autor de “O poder pelo avesso: mandonismo, dominação e impotência em três episódios da literatura brasileira”, tese de doutorado pela FFLCH/USP, 2006, sob orientação de Marcus Vinícius Mazzari. jpchauvin@terra.com.br
Revista ESPIRAL
Jean Pierre Chauvin*
Talvez Gilberto Freyre tenha sido o primeiro historiador brasileiro a alertar para o nosso “gosto de mando”, em 1933, ao abordar a relação entre o Senhor da Casa-Grande e os Escravos da Senzala. Mais tarde, Raymundo Faoro, Roberto da Matta, Maria Sylvia de Carvalho Franco e Roberto Schwarz, nos anos 70 - para citar alguns nomes mais conhecidos dos estudantes de ciências humanas -, enfatizaram a concentração de poder político nas mãos de tão poucos, lembrando que, por aqui, andar bem nas finanças quase sempre implicou a manutenção do poderio local, oficializado ou não: ser coronel ou político, do latifúndio ao gabinete.
Caberia ressaltar ainda os relevantes estudos de Maria Isaura Pereira de Queiroz, na década de 60, que vincularam o mandonismo local brasileiro a um dado histórico peculiar: a disputa entre os vereadores de uma mesma vila ou município por favorecimentos paralelos advindos da Corte portuguesa: notadamente, as prioridades que permitissem ao político conciliar seus interesses particulares, inclusive assuntos de foro mais íntimo e egoísta, a providências da esfera pública, por meio de burlas à própria Casa Real que os próprios vereadores mal representavam por aqui.
Em nossa literatura, que não é mera colagem de dados históricos ou fatos sociais, o coronel foi fartamente representado no chamado “romance regionalista”. Como se sabe, o gênero teve seu primeiro momento no Romantismo. No segundo estágio, especificamente em nosso Modernismo, os livros receberam um tratamento mais apurado, do ponto de vista técnico, formal. Equilibravam-se severas críticas a ideologias correntes a uma maior e mais sincera preocupação estética.
Curiosamente, o malandro – tipo ficcional que também poderia revelar a aversão de autores e leitores à figura do coronel – é encontrado de forma bem mais espaçada entre nossos escritores. O Leonardo - Memórias de um sargento de milícias, 1855 (Manuel Antonio de Almeida) - seria o malandro pioneiro, segundo Antonio Candido (1970). Quantos mais viriam depois dele? Possivelmente, Palha – Quincas Borba, 1891 (Machado de Assis), Numa Pompílio de Castro - Numa e a ninfa, 1915 (Lima Barreto), Teixerinha - Marafa, 1935 (Marques Rebelo), além de praticamente toda a malandragem do romance Cidade de Deus, 1997 (Paulo Lins).
Talvez o malandro apareça assim, multifacetado entre o ingênuo (Milícias), o canalha (Quincas Borba), o violento oportunista (Marafa) e aquele consciente de sua condição inexorável (Cidade de Deus) porque, bem ou mal, o tipo evoluiu com o passar das décadas. Seu aprimoramento, no universo da ficção, correu paralelo ao avanço dos novos critérios de exclusão social e o cerceamento dos espaços urbanos - divididos forçosa e drasticamente entre os burgueses decadentes (ou a classe média com seu poder aquisitivo diminuído) e a malandragem: nichos sociais.
Extinto o coronel, forte homem brabo do interior, invariavelmente amparado pelo poder público local, assoma o malandro da cidade, radicado no subúrbio fluminense, por excelência. Um traço comum a um e outro é o jeitinho que deram para mandar, escapando ao poder público legal: um por estar acima de qualquer lei, compadre influente que é; outro, no nível abaixo da mediania institucional, misturado que está às sabidas e repisadas mazelas sociais do país.
Sujeito de difícil classificação, o malandro não é ator típico da classe média, embora nela interfira diretamente, como provam seus ganhos em cima dos cidadãos que se autodenominam “homens de bem”. E embora a classe média, com suas subdivisões (baixa, média e alta) oscile historicamente entre ideologias de pobres e ricos, essa camada não comporta o homem cuja vida anda ao sabor dos golpes de sorte.
Por outro lado, em sua condição de homem abaixo da mediania sócio-econômica e cultural, ideologicamente o malandro é mais coerente com seus próprios códigos de ética, que tão poucos entendem.
O “homem de bem” vive do ordenado, mantendo suas contas em dia, ora bajulando o superior hierárquico, ora demonstrando suas habilidades inerentes ao posto por que responde. O malandro, sujeito que vive de expedientes, transita quase livremente entre a favela e o senhorio; paga o aluguel quando pode e ameaça a calma burocratizada dos pacatos cidadãos além dos morros, sempre ao alcance de suas investidas contra a classe trabalhadora.
A diferença básica entre o homem que, nas aparências, respeita o politicamente correto, e o segundo é que enquanto à classe média aplicam-se a acomodação, o andar conforme as regras, à classe marginalizada nada se impinge. Ser malandro é mandar; mandar implica tirar proveito; tirar proveito é uma das formas de reafirmar seu poderio e mando. Deve-se repensar a noção de autonomia, porque, sob tal perspectiva, a sensação de comandar o próprio destino certamente é mais palpável entre os malandros.
Caberia uma metáfora circense: enquanto as classes médias se equilibram a custo sobre a corda bamba, mirando sempre as alturas que prometem um maior poder de consumo, o malandro passa da condição de espectador à de manipulador. Sobe ao nível do equilibrista não para dançar com ele na mesma instabilidade ideológica ou econômica, mas para reter em suas mãos o controle do mecanismo que até então era operado pelo sistema.
De uma forma ou de outra, valeria a pena observar que a atividade dos mandões parece referendada pela nulidade da força pública. O coronel fazia o serviço ambíguo de interceptar o poder local e guardar a região de seus domínios, imbuído do poderio e favor sobre o mini-feudo que comandava sob o nome de Engenho.
O malandro (do mais ingênuo ao mais consciente de seu papel social) desde sempre burla as leis que os poderosos também descumprem, mas sem o aval oficial da força instituída, alerta que também é do descaso histórico com que as minorias sociais foram soterradas ou empurradas para as margens. E estar à margem pode ser a mais severa e atual metáfora de um país que ainda luta por ser Nação de fato: este.
* Jean Pierre Chauvin, professor de literatura no ensino médio, é autor de “O poder pelo avesso: mandonismo, dominação e impotência em três episódios da literatura brasileira”, tese de doutorado pela FFLCH/USP, 2006, sob orientação de Marcus Vinícius Mazzari. jpchauvin@terra.com.br
Revista ESPIRAL
Muito bom trabalho. Escancarada a virtude dos bons e dos maus.
ResponderExcluirMerece ser lido,