segunda-feira, 12 de julho de 2010

A Armênia e o Império Otomano


Renata de Figueiredo Summa


A Armênia e o Império Otomano


“E, no sétimo mês, no vigésimo sétimo dia do mês, parou a arca de Noé sobre os montes da Armênia”. (Gen.8, 4)

Olho: Segundo a tradição, eles são filhos de Noé, o monte onde pousou a arca é o Ararat e a região é considerada o berço da humanidade.
Para o povo armênio, a história bíblica de Noé, que construiu uma arca a mando de Deus para salvar a raça humana, faz parte da criação da Armênia. Segundo a tradição, eles são filhos de Noé, o monte onde pousou a arca é o Ararat e a região é considerada o berço da humanidade.
Para os historiadores e arqueólogos, a história desse povo tem início antes do ano 552 a.C., primeira vez em que o nome “Armênia” aparece registrado em documentos históricos.4
Ela é uma síntese da história européia e das antigas civilizações orientais. Em três milênios de existência, sempre habitaram aos pés do monte Ararat, uma região localizada entre o Oriente e o Ocidente, cenário de muitas guerras, conquistas e disputas imperiais. Situada no planalto montanhoso entre a Anatólia (hoje Turquia oriental) e o Irã, a região já foi conquistada pelos persas, romanos e árabes, e sofreu influências dos hurritas, assírios, cimerianos, frígios, citas, medos e mesmo dos persas.O povo armênio é, portanto, oriundo da mistura de todos esses povos e dos autóctones uratianos.5
Coadjuvantes da história, os armênios sempre estiveram no meio de grandes acontecimentos que, quando estudados na escola, sempre são atribuídos a outros povos. Estabeleceram laços com a cultura helênica, e o contato com os persas e os árabes criou uma forte mistura entre a cultura ocidental e oriental, que até hoje é característica dos armênios. Conquistaram a Mesopotâmia, Síria, Palestina, Cilícia e Capadócia em 95 a.C. Foi preciso o envio de Pompeu, por parte dos romanos, para que estes conquistassem de volta os territórios perdidos. Participaram das cruzadas ao lado dos cristãos europeus.
Mas a maior conquista desse povo foi ter conseguido preservar sua cultura, língua e identidade mesmo em meio a tantas invasões e ocupações de seus territórios.

Religião e língua

O maior fator de agregação do povo armênio durante os séculos foi a Igreja Apostólica Armênia, que se manteve independente das outras igrejas cristãs, assegurando assim a manutenção da cultura do seu povo e do alfabeto armênio, criado no século IV d.C por Mesrop, posteriormente à conversão dos armênios ao cristianismo.
Já em 301, os armênios adotaram essa religião, tornando-se o primeiro reino oficialmente cristão do mundo. Os Patriarcas da Igreja Armênia eram quem, ao longo do tempo, faziam as negociações políticas com os Impérios que circundavam o território armênio. E, durante o período em que eles estavam submetidos às ordens do Império Otomano (ou Império Turco-Otomano), eram eles os chefes do millet armênio - comunidades criadas com critérios étnicos e religiosos, responsáveis pela gestão de seus assuntos internos – e possuíam um papel fundamental na garantia dos direitos da comunidade.
Foi essa organização e relativa independência que possibilitou a sobrevivência da cultura armênia e a manutenção do cristianismo, em uma região dominada sobretudo pelos muçulmanos.
Nem no período em que a Armênia se transformou em uma República Soviética conseguiram impedir que a Igreja funcionasse e continuasse a exercer esse papel de protetora da identidade do povo.
Dessa forma, a Igreja para os armênios não só representa o aspecto religioso. Ela representa também a sobrevivência política de toda uma nação. Ela não representa apenas a proteção espiritual, ela representa também a segurança física, efetiva. Ela representou, por séculos, o Estado que a nação armênia só formaria pela primeira vez em 1918.

Os armênios no Império Otomano
No século XI, ocorreu a primeira invasão do território armênio pelos turcos seldjúcidas, o que levou o povo armênio, pouco a pouco, a se mudar para a província bizantina da Cilícia, onde já havia colônias armênias.
De 1080 a 1375, a região vive um período de independência, liberdade e prosperidade.
Nessa época, aquele território ficou conhecido como Nova Armênia, Pequena Armênia ou Armênia Ciliciana. Apesar do fim como nação independente, a população armênia dessa região lá permanecerá e viverá pelos séculos seguintes, cultivando a cultura e as tradições.
Será apenas no início do século XVI, mais de cinqüenta anos após a tomada de Constantinopla por Mehmed II em 1453, que a região conhecida como Armênia será invadida pelos turcos otomanos e integrada ao Império Otomano (ou Império Turco-Otomano).
Os armênios, tendo sido submetidos aos otomanos, tiveram que se adaptar a algumas novas regras. Como em toda teocracia islâmica, o Estado otomano estabelece entre os muçulmanos e não-muçulmanos uma discriminação sancionada pela lei e pelo imposto.
Aos integrantes das minorias não-muçulmanas era atribuído o status de zhimmis, que concordava em manter a ordem e pagar tributos em troca de proteção.6 Um zhimmi não possui a mesma representatividade que um muçulmano perante a lei. Além disso, os impostos cobrados dos zhimmis eram muito mais altos do que os cobrados dos muçulmanos. Essa é uma das razões pelas quais o censo oficial otomano e o censo do patriarcado armênio obtinham resultados bastante diferentes, como veremos mais à frente.
Não se pode ocultar o fato, porém, de que, em última análise, o regime reduzia todos os súditos não muçulmanos a cidadãos inferiorizados civil e juridicamente, visto que sujeitos a interdições legais e a obrigações fiscais decorrentes de sua condição de guiavur (infiel).7
Esse regime discriminatório foi, em certos períodos, relativamente leve e até inexistente. Nesses momentos, a comunidade armênia gozava de respeitável liberdade política. Em outros períodos, os zhimmis eram perseguidos. Foi assim durante o período em que Abdul-Hamid governou o Império, iniciado em 1876, quando os armênios começaram a ser massacrados.
Um pouco antes da chegada de Abdul-Hamid ao poder, o sultão Abdul-Medjiid havia feito reformas nacionais – conhecidas como tanzimat - em 1839, estabelecendo os mesmos direitos para todos, sem distinção de raça nem religião.
É preciso buscar nessa lei a origem da formação de movimentos nacionais emancipacionistas em todo o Império Otomano. Com os armênios não foi diferente. A elite intelectual armênia começou a se organizar, a partir do século XIX, com a certeza de que havia chegado a hora de se tornar um estado independente.
A formação de uma comunidade armênia na Rússia bastante independente, e o conseqüente renascimento cultural provocado por ela, ajudaram a despertar a consciência nacional armênia.
É esse o cenário encontrado por Abdul-Hamid quando da sua chegada ao poder.

Os massacres hamidianos
A sucessão de episódios que ficaram conhecidos como massacres hamidianos foi apenas uma amostra do que o Império Otomano podia fazer com as minorias. Durante o governo do sultão Abdul-Hamid, inúmeros massacres ocorreram, mas o apogeu dessa situação se deu em 1895, ano que ficou marcado pela morte de 300 mil armênios.
O governo atacava a população armênia sem motivo. Em todos esses casos ocorridos em 1895, com exceção de um, não houve uma ação violenta por parte dos armênios, que pudesse justificar uma represália do Império Otomano. A comunidade armênia não foi quem incitou a violência.
As causas dos massacres eram claras: Abdul-Hamid sabia que uma eventual tentativa de revolução por parte dos armênios do Império Otomano poderia significar a intervenção dos russos, que tinham interesses nos territórios ocupados pelos armênios.
Por isso, Hamid resolveu que ia acabar com a questão armênia, massacrando não só insurgentes como civis.
Para alguns pesquisadores do assunto, como Antônio Henrique Campolina Martins, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, esse foi o início do genocídio armênio. Em seu artigo “Armênia, um povo em luta pela liberdade: o mais longo genocídio da história”, Campolina argumenta que este foi o genocídio mais longo da história, pois começou em 1878, com o início da questão armênia, passou pelo grande massacre de 1895, foi prolongado pela traição dos Jovens Turcos entre 1905-1907, atingiu o seu ponto mais crítico em 1915, com as deportações e os massacres organizados pelos Jovens Turcos, e só terminou entre 1921-1923, quando não só os armênios como os gregos foram vítimas dos turcos.8 Vahakn Dadrian, um dos maiores especialistas em história do genocídio armênio, considera que eles foram vítimas de diversos genocídios: em 1895-1896, 1909, 1915, 1922 e mesmo 1920, quando as tropas kemalistas tentaram invadir a Armênia com a intenção de aniquilar a população.9
Para outros, como por exemplo, Yves Ternon, em seu livro “Les Arméniens”, na edição de 1996 (na primeira edição, de 1977, ele havia dito o contrário), os massacres hamidianos não podem ser considerados genocídio, pois não tinham como princípio a aniquilação do povo armênio. Para Ternon, o sultão quis punir os armênios e dissuadilos de tentar chamar a atenção das potências européias para intervir no Império. Ele temia que as potências pudessem ajudar os armênios a conseguir a independência, que começava a ser desejada por alguns movimentos revolucionários armênios ainda em gestação.
Por isso, qualificar de genocídio os acontecimentos de 1985 é enfraquecer o conceito, banalizá-lo. O melhor termo para classificar os massacres de 1895-1896, seria, então, “massacres genocídicos”.10
Mas uma coisa é unanimidade entre todos os autores: os massacres hamidianos revelam a vulnerabilidade da população armênia face a um programa governamental de destruição.

Os Jovens Turcos
O despotismo de Abdul-Hamid provocou descontentamento entre os próprios turcos.
Enquanto o sultão governava, jovens estudantes com formação européia comandavam, do exílio, uma organização secreta chamada Ittihad ve Terakki, ou Partido União e Progresso, cujos membros ficarão conhecidos como Jovens Turcos.
O partido pretendia modernizar o Império Otomano, criando uma nova estrutura política e institucional na qual, a exemplo do modelo suíço, as diferentes nacionalidades existentes no império vivessem em igualdade e harmonia.11
Em um conclave feito em Paris em 1902, os Jovens Turcos defenderam o "otomanismo", que para eles significava uma visão mais igualitária da sociedade. Com o tempo, os mesmos Jovens Turcos substituirão esse "otomanismo" por uma visão nacionalista e xenófoba.
Ahmed Riza, um dos idealizadores do movimento, já do início mostra esse caráter nacionalista do partido ao descrevê-lo como “liberal, sim; porém, antes, turco”.12
Em 1908, os Jovens Turcos fazem uma revolução e obrigam o sultão a restabelecer a Constituição de 1876, que havia dado aos armênios e às outras minorias religiosas existentes no Império Otomano igualdade política e jurídica. A ação, que contou com o apóio da comunidade armênia, é acolhida pelo povo –seja pelos turco-otomanos, seja pelas minorias religiosas - com grande aprovação e festa. Os armênios acreditam que é o fim dos maus tempos, que massacres como os promovidos pelo sultão Abdul-Hamid agora pertencem ao passado.
O governo era liderado por um triunvirato formado por Enver Paxá, ministro da Defesa, Talaat Paxá, ministro do Interior, e Djemal Paxá, ministro da Marinha. Os três seriam condenados, posteriormente, pelos atos que cometeram contra a minoria armênia.
Ao assumir o poder, porém, Niazi Bei, um dos membros da Ittihad, faz uma declaração que já desperta suspeita por parte de alguns. Ele diz que o novo regime se compromete a garantir as liberdades das nacionalidades e das religiões minoritárias, mas estas deverão renunciar de vez a todas as suas antigas aspirações –ou seja, à independência.13
Mas será somente em Adana, em 1909, que os armênios compreenderão que nada havia mudado.

Adana, 1909
Em alguns meses após a chega dos Jovens Turcos ao poder, o Império Otomano perdeu mais territórios do que o fez Abdul-Hamid em trinta anos. Em outubro de 1908, a Bulgária proclama sua independência. Ao mesmo tempo, Creta volta a pertencer à Grécia e a Áustria conquista a Bósnia-Herzegovina. O desespero dos Jovens Turcos face a um império que começa a desmoronar e o ódio contra as minorias cristãs adquirido pelos militares designados a lutarem nas fronteiras contra os separatistas dos Bálcãs são um dos principais motivos que farão a Ittihad a adotar medidas drásticas contra a população armênia. Esse ódio é compartilhado por milhares de turcos que se vêem obrigados a deixar suas casas na região balcânica, em 1912, após a derrota otomana na região, e migrar para a Anatólia –região tradicionalmente habitada por armênios.
Mas as hostilidades começam a aparecer já em 1909, quando um armênio se envolve em uma briga de rua em Adana e mata dois turcos. Foi o estopim para uma verdadeira retaliação por parte do governo: em dez dias, a violência toma conta de Adana e das cidades vizinhas, como Tarsus, Inyerlik, Misis, Hamidié, Abdul-Oglú e outras.Vinte e cinco mil armênios foram mortos, quase cinco mil casas foram queimadas e cerca de duzentas aldeias foram destruídas.
O episódio de Adana é um divisor de águas: a idéia de que o Império Otomano deve ser somente turco se espalha entre os governantes e parte da população otomana. O sentimento antiarmênio se intensifica.
Mas o Comitê União e Progresso vai esperar até a entrada do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial ao lado do Império Alemão e do Império Austro-Húngaro, formando a Tríplice Aliança, em 1914, para executar o plano de extermínio dos armênios que viviam em território otomano, com a certeza de que nenhuma potência

O plano de extermínio
É difícil saber quando exatamente os Jovens Turcos tomaram a decisão de acabar com o povo armênio. Alguns historiadores afirmam que a decisão de cometer o genocídio armênio foi adotada já em 1910, no Congresso de Salônica do Comitê União e Progresso dos Jovens Turcos, onde teria sido proposto ao Congresso o extermínio total dos armênios do Império Otomano.14
Para Yves Ternon, a existência de um plano de extermínio é comprovada por uma circular interna do Império que relata uma reunião secreta de dirigentes do Comitê União e Progresso. Este documento é intitulado “Documento relativo à organização de massacres dos armênios pelo Comitê União e Progresso – os dez mandamentos do Comitê União e Progresso”. Segundo o documento, esses são os dez mandamentos:
1. Proibir todas as associações armênias, prender aqueles armênios que tiverem, a qualquer momento que seja, trabalhado contra o governo, enviá-los às províncias, como Bagdá ou Mossoul, e eliminá-los no caminho ou chegando ao destino.
2. Confiscar as armas
3. Excitar a opinião muçulmana por meios apropriados e adaptados em distritos como Van, Erzeroum ou Adana, onde já é fato que os armênios adquiriram ódio dos muçulmanos, e provocar massacres organizados, como fizeram os Russos a Bakaou.
4. Para fazer isso, é preciso confiar na população de Erzeroum, Van, Mamouretul-Aziz e Bitlis, e somente usar as forças militares para manter a ordem de maneira ostensiva para por termo aos massacres, e, usar essas mesmas tropas para ajudar ativamente os muçulmanos nas regiões de Adana, Sivas, Brousse, Ismid e Esmírnia.
5. Tomar medidas para exterminar todos os homens com menos de cinqüenta anos, os padres e as professoras de escola. Permitir a conversão ao Islã das moças e crianças.
6. Deportar a família daqueles que tiverem conseguido escapar de maneira a cortar todos os seus laços com a cidade natal.
7. Alegando que os funcionários armênios poderiam ser espiões, excluí-los absolutamente de todos os cargos ou serviços relevantes para a administração do Estado.
8. Exterminar todos os armênios que se encontrem no exército da maneira que convenha. Esse serviço deve ser confiado aos militares.
9. Executar essas medidas em todos os lugares ao mesmo tempo para que eles não tenham tempo de tomar atitudes preventivas.
10. Respeitar a natureza estritamente confidencial dessas instruções, que não devem ser conhecidas por mais de duas ou três pessoas. 15
O motivo pelo qual os Jovens Turcos decidiram massacrar os armênios é bastante complexo. Para Carlos Bedrossian, mestre em história armênia, o Império Otomano adotou o princípio de guerra total, isto é, limpeza étnica, no qual é necessário acabar com os inimigos internos para conseguir enfrentar os inimigos externos. Os armênios ocupavam uma região estratégica no Império Otomano e formavam um grupo com uma identidade própria bastante forte. A possibilidade de eles poderem se rebelar e lutar pela independência era algo que assustava os dirigentes do império, especialmente após a derrota nos Bálcãs.
Além disso, Bedrossian ressalta o fato de que os armênios formavam uma espécie de elite econômica e intelectual no Império Otomano. Isso favorecia a incitação do ódio em parte da população civil otomana, que ajudou a saquear o comércio e casa dos armênios, instalando-se nelas após a partida forçada desse povo nas caravanas organizadas pelos soldados turcos.
O fato de serem cristãos também não despertava muita simpatia dentro de uma teocracia muçulmana. Além disso, o interesse que os armênios despertavam especialmente na Inglaterra e na Rússia era visto como uma constante ameaça à soberania do Império Otomano, que poderia ser invadido a qualquer momento a fim de garantir a segurança e até mesmo independência dos armênios.
Por fim, o início da desintegração do império acentuava ainda mais o nacionalismo do governo e a necessidade de acabar com as minorias do império –seja impondo-lhes a identidade turca, seja pondo fim a todos que pertenciam àquele grupo.



4 SAPSEZIAN, Aharon. História da Armênia: drama e esperança de uma nação, pp 22
5 MARTINS, A. H. Campolina. Armênia, um povo em luta pela liberdade: o mais longo genocídio da história. In:“Dossiê – Direitos Humanos, pp 143
6TERNON, Yves. Op. cit., pp 31
7 SAPSEZIAN, Aharon. Op.cit., pp 65
8 MARTINS, A. H. Campolina. Op.cit, pp 140
9 TERNON, Yves. Op.cit., pp 374 nota 59.
10 TERNON, Yves. Op.cit, pp 127
11 SAPSEZIAN, Aharon. Op.cit.,pp 111
12 SAPSEZIAN, Aharon. Op.cit,, pp 112
13 TERNON, Yves. Op.cit., pp 113
14 DIÁRIO ARMÊNIA. Especial 90ª Aniversario Genocídio Armênio 1915, pp 9
15 Esse documento é citado por Arthur Beylerian, Vahakn N. Dadrian, Yves Ternon, Richard Hovannisian e Cristopher J. Walker

Revista Ética e Filosofia Política – Volume 10 – Nº 1

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