sábado, 24 de abril de 2010

O POPULAR NA ARTE MODERNA


O POPULAR NA ARTE MODERNA

DESVALORIZAÇÃO ESTÁ RELACIONADA AO RACISMO HIBRIDISTA PÓS-MODERNO.

POR EDUARDO SUBIRATS. TRADUÇÃO MARIANA BERGEL


As expressões mais delicadas do século 20, a música expressionista de Schoenberg, a pintura de Paul Klee, o teatro da crueldade de Antonin Artaud e as máscaras de Pablo Picasso se enraizaram com maior ou menor profundidade nos universos artísticos e poéticos da Índia e das culturas árabes, nas cosmologias e mitologias das culturas antigas da América ou nas tradições artesanais européias. Esse diálogo com o “primitivo”, ou seja, com as culturas anteriores aos dois escassos milênios de cristianismo, partia de uma busca espiritual. Os expressionistas de Die Brücke ou pintores como Franz Marc e Paul Klee são exemplos puríssimos nesse sentido. A busca de uma natureza re-sacralizada ou de um cosmos espiritual nascia ao lado de uma profunda crise, assim como da consciência do desmoronamento moral da civilização ocidental. Nas cosmologias celtas, nos mitos amazônicos ou na espiritualidade oriental, esses artistas buscavam luz e saída para uma época de guerras e obscurantismo tecnologicamente providos.

No Brasil, o Movimento Antropófago de Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Mário de Andrade criou um horizonte civilizacional novo a partir do “popular”, palavra que na América Latina compreende os restos das memórias das culturas e civilizações que se salvaram melhor ou pior do naufrágio colonial e pós-colonial. A pintura de Amaral resgatou o mundo mágico das culturas negras do Brasil. Oswald de Andrade descobriu que a língua tupi era mais abstrata, mais rítmica, mais poética, mais precisa e mais moderna que o português. E Mário de Andrade construiu a partir dos mitos, das músicas e dos deuses das selvas amazônicas a crítica inusitada e divertida da civilização capitalista, industrial e colonial. Esse diálogo e essa interação entre os mundos culturais antigos e modernos seguiram uma extensa e profunda tradição no Brasil. Guimarães Rosa é o grande paradigma: elevou as vozes marginais dos povos pobres do sertão a uma dimensão épica. Darcy Ribeiro representa por meio de suas novelas, diários e ensaios essa mesma preocupação em criar uma cultura inovadora com o diálogo entre as culturas européias e as literaturas, as religiões e a arte dos povos amazônicos e das comunidades afrobrasileiras. O Tropicalismo, com Glauber Rocha, Lina Bo Bardi ou Caetanto Veloso deu a esse projeto uma firme unidade e consistência.

As ditaduras fascistas da segunda metade do século 20 detiveram esse projeto de diálogo porque entrava em conflito com a constituição de comunidades democráticas não redutíveis à categoria de sociedades civis subalternas. E o vazio que deixou a destruição política desse intercâmbio artístico e a subseqüente constituição de uma “civilização brasileira” foi suplantado pela telenovela e pela pop art (produzida para o consumo de massa). Foi suplantado pelos valores populares diretamente produzidos, empacotados e disseminados pelas grandes cadeias da mídia, ou bem os valores éticos e políticos ditados pela academia e os museus norte-americanos: pop, o hibridismo, o post-art, o cinismo, o pós-moderno, os estudos culturais e a estupidez militante dos pós-intelectuais. Obviamente esta é a história oficial, é a história das burocracias museológicas e acadêmicas intelectualmente mais conservadoras ou simplesmente cegas. A outra história também está escrita. As pesquisas sobre arte popular de Lélia Coelho Frotta e sobre arte indígena de Berta Ribeiro podem ser citadas, entre outras. Existe uma extensa série de artistas, arquitetos e compositores que integram elementos das culturas populares do Brasil em suas obras. Não seria possível mensurar. E existem os assim chamados “artistas populares” com obras de enorme riqueza como J. Borges ou Ulisses Pereira Chavez. O fato de que suas obras não sejam expostas em museus está relacionado ao racismo hibridista pós-moderno.

Na Serra do Cipó, no coração da América do Sul, Ailton Krenak, um líder político, filósofo e xamã, reúne no equinócio da primavera austral, começo do ciclo anual indígena, os povos sobreviventes do genocídio ocidental das Américas. Cantam-se mitos milenares e dança-se ao ritmo cósmico de tambores e chocalhos sagrados para restabelecer a terra danificada e uma humanidade alienada de si mesma. Esse rito de reparação da terra significa a superação de todas as vanguardas, de todos os land arts e pop arts, de todos os post-arts e de toda a imbecilidade acadêmica que arrastam consigo. Indício de um novo humanismo universal.

Eduardo Subirats é professor de filosofia, estética, arquitetura, literatura e teoria da cultura na Universidade de Nova York

Revista Raiz

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