quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O Brasil café com leite. Debates intelectuais sobre mestiçagem e preconceito de cor na primeira república


Carolina Vianna Dantas
Professora da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro

RESUMO

Este artigo analisa algumas formulações de intelectuais sobre mestiçagem e preconceito racial cunhadas durante a primeira república. A abordagem focaliza a diversidade das propostas intelectuais no período – que não se restringiram às teorias raciais e à rejeição de tudo que estivesse associado aos negros e mestiços. As principais fontes são artigos publicados em periódicos da cidade do Rio de Janeiro.

Palavras-chave: Intelectuais – Relações Raciais – Identidade Nacional

(...) Na Saúde a dança é uma fusão de danças, é o samba, uma mistura do jongo e dos batuques africanos, do canaverde dos portugueses e da poracé dos índios. As três raças fundem-se no samba, como num cadinho. (...) No samba desaparece o conflito das raças. Nele se absorvem os ódios da cor. O samba é, – se me permitis a expressão – uma espécie de bule, onde entram, separados, o café escuro e o leite claro, e de onde jorra, homogêneo e harmônico, o híbrido café com leite. (Fantasio, pseud. de Olavo Bilac, Revista Kosmos, maio, 1906)

Os variados registros recolhidos em periódicos como a Revista Kosmos (Rio de Janeiro, 1904-1909) e o Almanaque Brasileiro Garnier (Rio de Janeiro, 1903-1914) sobre mestiçagem e preconceito de cor fazem pensar no peso que a defesa da idéia do Brasil como um país aberto à assimilação tinha naquele momento. Analisados em conjunto e comparativamente, esses registros evidenciam o quanto a preocupação com a unidade nacional motivou intelectuais a um mergulho nas "coisas brasileiras" – o que fica evidente, por exemplo, no trecho citado acima. Conseqüentemente, essa produção intelectual enveredou-se por uma avaliação do papel dos descendentes de africanos e da mestiçagem para os destinos da nação. No interior ou na cidade, a mistura foi o motor a partir do qual se inventaram "unidades" para o Brasil e seus padrões de autenticidade.

Usando outros termos, é possível afirmar que a idéia de um "Brasil mestiço" tem uma história, anterior a Gilberto Freyre, inclusive; e que tanto a idéia quanto a sua história estão relacionadas também aos polêmicos debates sobre o caráter nacional brasileiro, ocorridos entre o final do século XIX e o início do século XX.

O objetivo deste artigo é recuperar a historicidade desse debate e proporcionar uma reflexão sobre um tipo de produção intelectual que investiu na construção de uma versão mestiça da identidade nacional brasileira, ainda na primeira república. Afinal, tanto a abolição quanto a república provocaram entre os intelectuais uma espécie de tomada de posição em relação à população afro-descendente, pois era preciso pensar na incorporação dos ex-escravos seus descendentes à vida nacional e à própria identidade da nação.1

A reflexão proposta, entretanto, envolve necessariamente o diálogo com uma importante tese sobre a primeira república, defendida por vários historiadores nos anos de 1980-1990. Essa tese afirma que o pensamento intelectual da chamada Belle Èpoque, especialmente na capital da república, voltava-se de modo praticamente total para valores externos e para a europeização dos costumes. Segundo esses estudos, desejava-se enterrar o "Brasil antigo e africano", empecilho para a realização de seu projeto civilizatório.2

No entanto, para explicar o interesse de vários intelectuais, na época, por manifestações culturais associadas aos negros e mestiços, alguns historiadores, de uma forma próxima à argumentação anterior, afirmaram a existência de uma voga de exotismo e regionalismo, que teria invadido a cidade do Rio de Janeiro e outras capitais do Brasil, a partir do início do século XX.3 Esse exotismo – também uma moda européia –, embora deva ser levado em conta, não é suficiente para a compreensão de tão complexas questões, pois ignora a sociabilidade intelectual brasileira e continua a pressupor a imitação, a cópia da Europa.

De fato, é impossível negar a fascinação dos intelectuais pelo chamado "modelo francês" – que incluía também a valorização de inventários folclorísticos. Mas, ao dar voz aos argumentos desses intelectuais, não se pode entendê-los somente a partir de explicações sobre o "gosto pelo exótico" ou sobre sua adesão a uma moda artístico-científica européia de interesse pelas coisas etnográficas. Até porque tiveram de pensar a partir de questões internas, como a seleção, dentro de um universo bem variado, do que seria brasileiro, as disputas em torno da centralização e da descentralização do poder, as teorias raciais, o passado escravista e o futuro da nação republicana.4

Mas, seja no caso das tradições populares encontradas nos recônditos do interior do país e sua correspondente mestiçagem, cujo fruto seria o mameluco, o caboclo ou o sertanejo, um tipo nacional de "alma mestiça", sem que sua cor fosse mencionada; seja no caso das expressões culturais urbanas e da afirmação de uma mestiçagem na qual a presença negra era mais forte, originando o mestiço "não-branco", o que se buscava era a unidade nacional. Com base na comparação entre o Almanaque e a Kosmos, embora a mistura das três raças tenha sido assumida positivamente como a maior originalidade nacional, podemos indicar que a mestiçagem no Brasil, do ponto de vista intelectual, não foi um fenômeno interpretado de forma homogênea. A variedade de manifestações culturais era grande, tão grande quanto as possibilidades de escolha sobre o que valorizar e condenar.

Assim, determinadas contribuições de negros e mestiços foram reconhecidas e divulgadas em periódicos inseridos em um circuito comercial, produtos culturais que precisavam ser vendidos e eram comprados por leitores que estavam dispostos, se não a concordar, ao menos a debater tais questões. Os próprios projetos editorais do Almanaque e da Kosmos, ainda que sob diferentes perspectivas, tinham em comum o empenho em transformar o conhecimento sobre o Brasil publicado em suas páginas em reconhecimento nacional.5

Diálogos com a historiografia

Autores como Renato Ortiz, Roberto Ventura, Lilia Schwarcz e Claudia Matos localizaram uma intensificação nos debates em torno da mestiçagem e do negro, a partir das últimas três décadas do século XIX, em meio à introdução das teorias evolucionistas e científicas e à campanha pela abolição no Brasil.6

Segundo Lilia Schwarcz, essas teorias opunham-se ao Humanismo do século XVIII e deixavam de lado o princípio universal da igualdade, herdado da Revolução Francesa, "(...) que buscava naturalizar a desigualdade em sociedades só formalmente igualitárias". Contraditórios, o Humanismo e as teorias raciais existiram num mesmo tempo, tendo sido até mesmo combinados. E foi nesse contexto que o argumento racial adquiriu outros significados, não limitados à definição biológica. O termo raça, historicamente construído, recebeu uma interpretação social e, dessa forma, não pode ser tomado como uma idéia fixa ou natural.7

Portanto, foi a partir da segunda metade do século XIX que tanto os monogenistas quanto os poligenistas assumiram a perspectiva evolucionista e ao conceito de raça foi dado um significado original. As teorias de Darwin – cujo enfoque se referia estritamente à natureza e ao ramo biológico – se tornaram referência obrigatória e forneceram uma nova orientação que foi aplicada à antropologia, à sociologia, à história, à economia etc. No plano político, por exemplo, o darwinismo foi tomado como base para projetos conservadores como o imperialismo europeu, ou seja, para o domínio sobre os supostamente "mais fracos e inadaptados". Assim, antigos debates tomaram novas proporções e rumos e os princípios monogenistas e poligenistas8 foram acionados em diferentes combinações com as, então, novas teorias raciais e evolucionistas.

Desde a entrada das teorias raciais no país, o Brasil passou a ser visto como espaço da mistura de raças, com todas as implicações que isso traria em termos de (im)possibilidade de progresso e de civilização. De acordo com as teorias raciais, a mestiçagem emergia nesse momento como uma incógnita, uma ambigüidade que pairava sobre a idéia polêmica de paraíso racial. Ao mesmo tempo mácula e singularidade, a mescla de raças significava degeneração e ameaça ao futuro, mas também despertava curiosidade de estudiosos nacionais e estrangeiros.9 Certamente, essa não era uma afirmação que trazia conforto para os intelectuais brasileiros.

Mas, se no Brasil o argumento racial estava adequado ao estabelecimento e legitimação de diferenças sociais na pós-abolição, sua defesa podia implicar uma visão pessimista da mestiçagem e do próprio futuro do país. E foi exatamente nos meandros dessa tensão que saídas originais puderam ser elaboradas, acomodando modelos de matrizes diversas. De tal maneira, foi possível a adoção de determinadas assertivas, como a suposta diferença entre as raças e sua natural hierarquia, sem tocar no que isso traria de negativo; ou, ainda, uma leitura do darwinismo social que solucionou a idéia de que as raças humanas não permaneciam estacionadas, mas em constante evolução e "aperfeiçoamento", deixando de lado a noção de que a humanidade tinha uma origem comum e abrindo espaço para o a defesa do branqueamento.10

Silvio Romero foi um dos autores que se dedicaram profundamente a pensar nas relações entre raça, cultura e nação, entre o final do século XIX e o início do XX, influenciando seus pares e as gerações posteriores.11 Com posições por vezes ambíguas, partiu de uma afirmação clara: não adiantava debater se era bom ou ruim; o Brasil era um país composto por mestiços e isso era fato irrevogável. Reconheceu que tal fenômeno não era novo, mas que no Brasil, naquele momento, era mais intenso e flagrante. Era preciso refletir e propor soluções, ou seja, para alcançar o branqueamento era preciso conhecer as nossas heranças.12

De acordo com Roberto Ventura, as noções de mestiçagem e de branqueamento elaboradas por Romero configuraram uma dessas possibilidades de interpretação original das teorias raciais. O autor partiu da combinação entre a crença na existência inata de diferenças raciais e nas idéias evolucionistas, ou seja, na existência da concorrência pela vida e no predomínio do mais apto. Romero teria conjugado a mestiçagem - como fenômeno que diferenciava o Brasil das outras nações - ao branqueamento. E, a partir dessa diferenciação, o Brasil poderia superar a falta de originalidade da cultura nacional. Dessa forma, o médico sergipano condenava o mestiço como racialmente inferior, ao mesmo tempo em que atribuía à mestiçagem o papel de única saída ou garantia, para a criação de uma cultura não-imitativa. A mestiçagem seria o único fator que conferiria originalidade ao Brasil, ainda que isso não significasse obrigatoriamente riqueza e vigor.13 Portanto, a reavaliação e a redefinição da mestiçagem conferiram a Silvio Romero uma posição que, a um só tempo, o distanciava e aproximava das teorias raciais.14 Para ele, pensar sobre "o mestiço" implicava necessariamente assumir e estudar o "(...) elemento africano, que por mais que queiramos esconder, predomina ainda em nossas populações... (...)".15

Essas ambigüidades foram comuns na trajetória intelectual de Silvio Romero; atrelado que estava aos paradigmas do evolucionismo e do racismo científico, destacou as contribuições do negro, imputando a elas outras tantas reduções que acabavam por lhes retirar a relevância. A maior de todas as reduções cometidas pelo autor relaciona-se às suas considerações sobre a mestiçagem: "(...) a ação do negro é muito apreciável na formação do mestiço. Se não se conhece um só negro, genuinamente negro, livre da mescla, notável em nossa história, conhecem-se inúmeros mestiços, que figuram entre os nossos primeiros homens".16 A partir da mestiçagem, Silvio Romero resgatou o negro e ao mesmo tempo o subsumiu, uma vez que o branqueamento pressupunha o predomínio do elemento branco.17 O mestiço, para Romero, seria uma espécie de "ganho evolutivo", pois teria ajudado o colonizador branco a se adaptar ao meio nos trópicos e incorporado índios e africanos à civilização.

Pensando nessas possíveis interpretações, ao avaliar a perspectiva do debate cultural dos intelectuais do Garnier e da Kosmos, parece que a penetração das teorias raciais não impediu outras saídas otimistas para se pensar a nacionalidade e o próprio futuro da nação - saídas que, embora estivessem dentro dos paradigmas raciais, valorizaram a mestiçagem e o mestiço como (produtores de) singularidades nacionais.

Desde o final do século XIX, a idéia de um "Brasil-cadinho" vinha sendo forjada e a categoria mestiço, para autores como Silvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha, fazia parte de uma linguagem capaz de expressar a realidade social desse período. E, dentro de certos limites, também correspondeu a uma busca pela identidade nacional, o que fica evidente a partir da pesquisa em periódicos publicados na primeira década do século XX, bem como a existência de outras mediações além das teorias raciais. Para Ortiz, independentemente das críticas (que supôs isoladas) cunhadas por Manoel Bomfim, o racismo científico foi a moeda corrente no debate político e cultural brasileiro entre o final do século XIX e início do XX, redefinido e adaptado às condições locais.18

A partir do paradigma racista, autores como o próprio Silvio Romero, Joaquim Nabuco, Afrânio Peixoto e João Baptista de Lacerda, por exemplo, enalteceram a mestiçagem como instrumento de assimilação racial dos considerados grupos inferiores, de forma que escapavam da armadilha determinista que condenaria o Brasil ao atraso e à barbárie.19

Mais próxima ou mais distante do branqueamento, a adesão à mestiçagem significou fundar os mitos da identidade nacional na fusão e na integração de raças e culturas. Entre a certeza da inferioridade do africano de Nina Rodrigues; a mestiçagem como originalidade tendendo ao branqueamento de Silvio Romero e de Gonzaga Duque; as investidas seletivamente consagradoras no mestiço de Lima Campos, as colocações ambivalentes de Olavo Bilac e a recusa da raça como fator determinante de Juliano Moreira20, oscilaram as posições sobre mestiçagem, negros e mestiços nos periódicos pesquisados. Havia, portanto, vários tons na abordagem da questão, assim como outras mediações e matrizes que, juntamente com as teorias raciais, faziam parte de um mesmo universo intelectual.

E ainda que a noção de intelectual não tivesse limites claros no início do século XX, relacioná-la à idéia de um "produtor de bens simbólicos" localizado na arena política, institucionalizada ou não, ajuda a reforçar o argumento de que esses intelectuais estavam comprometidos com projetos de intervenção naquela sociedade. No que diz respeito à atuação em campos de saber, a noção de intelectual com a qual estamos nomeando esses homens letrados possui contornos fluidos, até porque, salvo algumas raras exceções, escreviam muito na imprensa e sobre diversos assuntos. Estamos falando de polígrafos, isto é, de um intelectual que deve "(...) ser pensado sempre como um doublé de teórico da cultura e de produtor de arte, inaugurando formas de expressão e refletindo sobre as funções e desdobramentos sociais que tais formas guardariam".21

Na pesquisa mais ampla22 da qual esse artigo é fruto, foi possível perceber que esses intelectuais compartilhavam alguns traços, como a abordagem de temas relacionados à identidade nacional, uma postura tutelar em relação à sociedade e a intensa atuação na imprensa. A maioria deles nasceu na região nordeste e morreu na cidade do Rio, evidenciando que a "república das letras" tinha o seu epicentro na capital federal. Além disso, a maior parte dos intelectuais pesquisados era de filhos de profissionais liberais, comerciantes, pequenos ou grandes proprietários em decadência, ou seja, não pertenciam ao que se pode chamar de "alta aristocracia brasileira", quer política quer econômica. Quase todos freqüentaram alguma instituição de estudos superiores, seja nas faculdades da Bahia, Recife, São Paulo ou Rio; originando ou não diplomas, as escolas superiores representaram espaços de contatos e sociabilidade fundamentais para esses homens. Notou-se um significativo envolvimento com a educação. A ocupação de cargos nos médios e baixos escalões da burocracia estatal é do mesmo modo uma constante, o que não deixa de ser uma forma de participação na política institucional, embora não partidária. Mais um ponto em comum entre esses intelectuais era o convívio em cafés, confeitarias e livrarias - locais que eram o ponto de encontro no qual se travaram relações de amizade, contatos sociais, intelectuais e profissionais.23

Foi possível localizar, também, tanto a partir da presença de alguns desses intelectuais nos movimentos de luta pela abolição e pela república (como Coelho Netto, Olavo Bilac, José Veríssimo, João Ribeiro, Rocha Pombo, Mário Mello, Graça Aranha, Gonzaga Duque, Lima Campos, Ernesto Senna e Xavier da Silveira Junior), quanto através das menções posteriores a esses acontecimentos (como nos casos de João do Rio, Joaquim Vianna, Curvelo de Mendonça e Gil), que tais processos tiveram um peso significativo em suas reflexões. Vale destacar ainda a presença de membros da Academia Brasileira de Letras dentre os autores estudados.

Tais informações ajudam a identificar melhor quem eram esses intelectuais e o próprio espaço que existiu nessa "república das letras" para uma diversidade de formulações sobre a mestiçagem e o preconceito de cor. Certamente não se restringiram somente às teorias raciais, à rejeição irrestrita do que estivesse relacionado aos negros e mestiços, ou mesmo, à simples idealização de um país futuramente branco. Acompanharemos a seguir algumas dessas formulações.
Este artigo é uma versão de um dos capítulos da minha tese de doutorado O Brasil café com leite: história, folclore, mestiçagem e identidade nacional em periódicos. Rio de Janeiro, 1903-1914, defendida em 2007, no Programa de Pós-Graduação em História da UFF.
Matéria completa no endereço
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042009000100004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt


Revista Tempo

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