quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Educação escolar na primeira república: memória, história e perspectivas de pesquisa


Alessandra Frota Martinez de Schueler; Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi

Professora Adjunta de História da Educação (PROPED/Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro). E-mail: alefrotaschueler@gmail.com, anamagaldi@superig.com.br

RESUMO

O presente artigo desenvolve uma reflexão sobre a educação escolar, enfocando os debates, projetos e iniciativas voltadas para a disseminação da escola primária, no período da Primeira República (1889 a 1930), e problematizando a produção historiográfica sobre a educação republicana. Pretende-se contribuir para a abertura de um novo espectro de perguntas e problemas aos pesquisadores que se preocupam com a constituição da cultura escolar moderna e com os processos de socialização, transmissão, circulação, criação, apropriação e re (invenção) culturais a partir da escola.

Palavras-chave: História da Educação Escolar – Memória – Primeira República


O presente artigo tem como objetivo central desenvolver uma reflexão sobre a educação escolar na Primeira República, enfocando debates, projetos e iniciativas voltadas para a disseminação da escolarização elementar, mais particularmente para a institucionalização da escola primária, no período da Primeira República (1889 a 1930). Nos limites do espaço disponível, propomos aqui um duplo movimento de análise.

No primeiro movimento, tencionamos problematizar o modo pelo qual a historiografia da educação vem produzindo representações e diagnósticos sobre a educação escolar republicana - diagnósticos e representações que têm contribuído para a sacralização de determinadas chaves de leitura e hipóteses explicativas, nas quais têm sido permanentemente (re)alimentadas as tensões e disputas pela afirmação e legitimação de uma dada memória e de uma história da educação republicana. Por um lado, algumas representações contribuíram para a produção de uma memória reificadora da ação republicana, na qual a Primeira República foi tomada como marco zero, lugar de origem da escolarização elementar e das políticas de institucionalização, disseminação e democratização da educação escolar no Brasil. Por outro lado, nesta luta de representações,1 algumas análises contribuíram para a afirmação e atualização de uma memória de desalento e decepção causados pelo suposto fracasso e/ou omissão do regime republicano no âmbito educacional - memória que (re)inventa a idéia de uma República que não foi, que não cumpriu suas promessas de extensão de direitos de cidadania, que não se tornou efetivamente uma res publica, uma coisa de todos, com um governo para e por todos; aquela que permanece, ainda hoje, inconclusa, inacabada.

No embate entre memórias da educação republicana, buscamos apreender a historicidade e os lugares de produção e enunciação destas representações em disputa, de modo a perceber o quanto estas visões permanecem impregnadas pelas próprias concepções produzidas pelos atores e sujeitos que vivenciaram as tensões e as lutas do processo histórico de constituição de uma (nova) ordem republicana. Próprias do jogo de construção/reconstrução de memória, lembranças e esquecimentos, luzes e sombras, estas representações em disputa permanecem circunscritas ao âmbito das clássicas análises diagnósticas e prognósticas. Devem, portanto, ser desconstruídas e problematizadas pelo pesquisador da educação na sua operação historiográfica, no diálogo e confronto permanente entre a empiria e os instrumentos/categorias teóricas de compreensão de uma dada realidade histórica.

Num segundo movimento de reflexão, a pretensão é de levantar algumas questões sobre a temática educacional na Primeira República, tendo como base a historiografia da educação brasileira recente, que vem sendo alimentada por uma crescente aproximação com os vários campos da pesquisa em história, especialmente o da história cultural. Estas análises vêm lançando seu olhar para os debates, projetos, iniciativas e ações efetivadas por vários sujeitos históricos – as ações implementadas pelo Estado, mas também por indivíduos e grupos variados da sociedade - no campo educacional. Preocupados em compreender a República que foi, os historiadores da educação vêm reconstruindo o processo tenso de disputas, internas e externas, decorrentes da crescente especialização e legitimação do campo educacional. Nesta perspectiva, flagram o processo de constituição da escola primária moderna (seriada, graduada, circunscrita a espaços e tempos específicos) como modelo ideal e hegemônico, como lugar social de educação da infância. Em alguns desses estudos, outras Repúblicas são apresentadas como possíveis. A partir da apresentação de algumas dessas tendências que têm se mostrado férteis na historiografia da educação brasileira, a pretensão é de contribuir para a abertura de um novo espectro de perguntas e problemas aos historiadores e pesquisadores que se preocupam com a constituição da cultura escolar moderna e com os processos de socialização, transmissão, circulação, criação, apropriação e re (invenção) culturais a partir da escola primária, no período da Primeira República.

1. Memórias e histórias da escola primária republicana

A memória da escola primária e da ação republicana em prol da educação escolar foi edificada por cima dos escombros de antigas casas de escola, de "palácios escolares", de debates, leis, reformas, projetos, iniciativas e políticas de institucionalização da escola nos tempos do Império.2 Zombando do passado, as escolas imperiais foram lidas, nos anos finais do século XIX, sob o signo do atraso, da precariedade, da sujeira, da escassez e do "mofo". Mofadas e superadas estariam idéias e práticas pedagógicas - a memorização dos saberes, a tabuada cantada, a palmatória, os castigos físicos etc. -, a má-formação ou a ausência de formação especializada, o tradicionalismo do velho mestre-escola. Casas de escolas foram identificadas a pocilgas, pardieiros, estalagens, escolas de improviso - impróprias, pobres, incompletas, ineficazes. Sob o manto desta representação em negativo, era crucial para intelectuais, políticos e autoridades comprometidas com a constituição do novo regime seguir "pesada e silenciosamente o seu caminho", produzir outros marcos e lugares de memória para a educação republicana.3 Pretendia-se (re)inventar a nação, inaugurar uma nova era, novos tempos.4

A historiografia da educação há muito vem abordando o processo de silenciamento do passado colonial e imperial, a desqualificação e o apagamento produzido pela memória da educação republicana em relação às práticas, ações e iniciativas educacionais e pedagógicas que lhe antecederam. Mais do que isso, os especialistas vêm chamando a atenção para a necessidade de serem repensados marcos cronológicos convencionais e romper com delimitações rígidas, que dividiram a história nacional - e educacional - em colônia, império e república.5

Jorge Nagle, na tese Educação e Sociedade na Primeira República, defendida em 1966 e publicada em 1974, já questionava a pertinência de uma classificação que tendia a enfatizar mais supostas rupturas, ao invés de problematizar a complexidade dos processos históricos de mudança social, cultural e política, as continuidades e as permanências e os jogos de disputas e tensões, imbricações e apropriações mútuas entre representações do novo e do velho, do moderno e do antigo, da inovação e da tradição.6 Tensionando os marcos de 1889 e 1930, período tradicionalmente denominado Primeira República (quando não chamado de República Velha), Nagle argumentava: "essas duas datas de forma alguma significam mudanças profundas no sistema escolar brasileiro".7 Com o argumento, o autor buscava dirigir o foco para uma "profunda e vigorosa discussão havida no final do Império a propósito dos assuntos educacionais",8 período ao qual ele se referia, em sua tese, como de intenso "fervor ideológico" e de discussões pela democracia, pela federação e pela educação, então construídas como categorias - e caminhos - inseparáveis de redenção da nação, no momento de crise e decadência da direção conservadora e do regime monárquicos.

A despeito de discussões recentes em torno da obra do autor,9 merece destaque sua proposição, enfatizando o abandono de marcos políticos clássicos para a compreensão da história da escola republicana e indicando a necessidade de compreender o processo histórico de constituição da escola ao longo do século XIX, articulada ao processo de formação/consolidação do Estado imperial, bem como de sua crise, nas décadas finais dos oitocentos. Seguindo essa direção, podemos afirmar que a escola primária brasileira não foi uma invenção republicana, tampouco uma novidade fin-de-siécle. Paradoxalmente, tal representação, ainda hoje, pode ser lida em textos e manuais de história educacional.10

Esquecer a experiência do Império: este era o sentido da invenção republicana. Para realçar o tempo presente e a modernidade de suas propostas, o novo regime apagava os significados políticos e sociais do estabelecimento do princípio da gratuidade da instrução primária, aos cidadãos, na Constituição de 1824, e as suas repercussões nas disputas pelos significados, extensão e limites dos direitos de cidadania11 - disputas que se refletiram na restrição do direito de voto aos analfabetos, transformada em lei pela reforma eleitoral de 1881, que aboliu o voto censitário, mas impôs o critério da alfabetização para o pleno exercício dos direitos políticos, pela primeira vez, no Brasil. Essa norma foi ratificada nos dispositivos da primeira constituição republicana.12

A simplificação das reformas educacionais ocorridas em vários pontos do Império era uma estratégia que referendava o esquecimento a respeito do legado educacional do século XIX: a difusão de novos métodos de ensino simultâneo,13 intuitivo (as lições de coisas)14 e de alfabetização (os métodos analíticos, que buscavam conciliar o ensino da leitura e da escrita);15 a propagação das bibliotecas escolares e a criação do Museu Pedagógico (1883); a expansão da iniciativa privada, dos colégios, escolas, cursos de preparatórios16 e de jardins-de-infância; o progressivo incremento da atuação de mulheres no magistério público e particular e o processo tenso de criação das Escolas Normais, como modelo de formação escolarizada de professores, coexistente e concorrente com os mecanismos tradicionais de formação pela prática;17 a realização das Conferências Pedagógicas de Professores da Corte, nos anos de 1870 e 1880, e a crescente participação do magistério na imprensa pedagógica e nos movimentos associativos;18 a transformação da cultura material da escola primária (mobiliários, livros, textos, mapas e globos, lousas e ardósias individuais, caixas econômicas escolares etc.);19 a efervescência do mercado editorial de livros didáticos;20 a constituição de novos espaços e temporalidades escolares, a partir da construção de prédios específicos para o ensino primário e a afirmação de uma arquitetura escolar moderna, com os "palácios escolares" da Corte imperial, edificados nos anos de 1870 e 1880. Estas escolas (oito, no total) foram simbolicamente denominadas "Escolas do Imperador", apesar do financiamento e da construção dos prédios terem resultado de iniciativas variadas, oriundas de diferentes setores do Estado (doações da Coroa, recursos do Ministério do Império e da Câmara Municipal do Rio de Janeiro) e da sociedade imperial (doações de particulares, como associações leigas e religiosas e a Associação Comercial do Rio de Janeiro).21 Embora tenham resultado na reunião das escolas isoladas e tenham contribuído para a introdução gradual do ensino simultâneo e seriado e dos novos mecanismos de divisão e controle do trabalho docente (direção, inspeção escolar, hierarquia burocrática etc.) na cidade do Rio de Janeiro, as "Escolas do Imperador" não foram ainda analisadas sob a perspectiva da modernização da cultura escolar no final do século XIX, sendo desconsideradas, ou minimizadas como expressões da modernidade pedagógica, pela historiografia dedicada ao estudo dos grupos escolares.22

Os pesquisadores da área de história da educação têm demonstrado que, a partir de 1835, ao longo de todo o Império, as Assembléias Provinciais fizeram publicar um significativo número de leis, que visavam regulamentar a instrução primária e secundária nas diferentes regiões.23 Em parte, este movimento legislativo foi resultado da redefinição das normas de competência constitucional, impostas pelo Ato Adicional de 1834. Este ato atribuiu às Províncias o dever de legislar, organizar e fiscalizar o ensino primário e secundário, restando ao governo central, através da pasta do Ministério do Império, a gestão de ambos os graus na Corte, e do ensino superior em todo o país.24 Por outro lado, além da construção do "Império das leis", foi notável o desenvolvimento dos serviços de instrução, de rede de escolas muito diversas (públicas, particulares, domésticas), conforme a realidade de cada uma das Províncias, embora os estudos apontem que a aplicação de recursos orçamentários esteve muito aquém das necessidades.25

O processo de descentralização na gestão da instrução pública, provocado pelo Ato Adicional de 1834, tem sido interpretado por parte da historiografia da educação como um obstáculo ao desenvolvimento da educação escolar no Brasil imperial, devido às diversidades regionais e à insuficiência de recursos destinados ao ensino nos orçamentos provinciais, ou ainda, em razão do desinteresse das elites políticas provinciais na difusão da instrução primária e secundária.26 Tal argumentação tem sido enfatizada, alimentando a disputa memorialística sobre a educação escolar brasileira. Em uma vertente da historiografia, de matriz republicana, está presente a culpabilização da descentralização em 1834 pelo fracasso da política de instrução imperial.27

Como argumentou Ângela de Castro Gomes, a grande dificuldade colocada para os historiadores quanto à realização de um balanço preciso sobre a situação educacional, no Império ou na República, reside justamente na elevada desigualdade e na diversidade historicamente construídas no ensino brasileiro. Cada província, ou estado da federação, apresenta singularidades significativas nos processos de construção dos sistemas, normas e redes de ensino primário e secundário.28 De fato, a Constituição de 1891 não trouxe alterações significativas no que tange à distribuição de competências. O princípio federativo fundamentava a determinação de que cabia aos estados e municípios a tarefa de criar e desenvolver o ensino primário e secundário e à União cabia a responsabilidade pelo ensino superior, além do ensino primário e secundário na capital do país, atribuição que repartiria, em regime de colaboração e concorrência, com o poder municipal, o Distrito Federal.29

O debate sobre a reconstrução da nação via escola primária e a leitura da "decadência" do ensino público – já manifestados no Império – foram recorrentes nos anos posteriores à Proclamação da República. Apenas para citar um exemplo da permanência deste debate, é interessante relembrar o argumento de um intelectual ativo no campo educacional do período, o paraense José Veríssimo. Numa de suas obras, A Educação Nacional, lançada, pela primeira vez, em 1892, sob a forma de artigos no Jornal do Brasil, o autor demonstrava a permanência de velhas batalhas. Argumentava que, a despeito das mudanças, a educação escolar republicana trazia aspectos de continuidade em relação à época pregressa. A crítica mais contundente dirigia-se ao que considerava excessos do regime federativo implantado pela República. Para ele, a situação do ensino primário teria se agravado ainda mais, pois, sob a forma da federação, foi concedida a cada estado plena liberdade para gerir os negócios da instrução pública. Em suas considerações sobre a temática educacional, o autor parecia se aproximar de um personagem, criado por um dos maiores escritores da época, o Conselheiro Aires, de Machado de Assis, em Esaú e Jacó.30 Para o Conselheiro, assim como para Veríssimo, talvez o regime político tivesse "trocado a roupa", sem que tivesse "mudado de pele".

Nos embates entre memórias e histórias da educação, como num jogo de luzes e sombras,31 o processo de disputas por concepções e modelos de escolarização deu lugar a diversas representações sobre a ação republicana. A representação e a produção de uma memória da República que não se publicizara se constituía, no bojo mesmo do movimento de lutas e disputas por concepções plurais de república, de educação e de nação.32

2. A educação escolar na República que foi: debates, disputas, projetos

Desde a década de 1990, pesquisadores da área de história da educação brasileira vêm se empenhando em explorar arquivos, redescobrir novos documentos, reler, com novos olhos e abordagens teórico-metodológicas, antigos objetos, utilizando as fontes mais usuais, ou "inventando" novas formas de reconstituir os indícios das escolas, dos mestres, dos paradigmas pedagógicos e dos alunos de outros tempos, tanto nas cidades, quanto em outros espaços sociais.33 Nesse quadro de renovação dos estudos dedicados à temática educacional, alimentados por diversos campos da história, merecem destaque, por exemplo, as contribuições da chamada história cultural. Entre os trabalhos que vêm se beneficiando dos debates historiográficos sobre temas culturais, sendo ainda enriquecidos por reflexões e problemáticas do campo da antropologia, podem ser situados aqueles que, focalizando a instituição escolar, operam com a categoria de cultura escolar ou – enfatizando uma perspectiva plural – de culturas escolares.34

Uma importante questão que vem sendo problematizada diz respeito ao processo de implantação da forma escolar moderna, seriada e graduada como lugar institucionalizado e legítimo de educação na sociedade brasileira.35 No conjunto de estudos sobre essa temática, uma questão valorizada tem sido a da reforma educacional paulista, conduzida por Caetano de Campos, a partir de 1893, sendo freqüente o destaque conferido ao papel modelar que o sistema de ensino público de São Paulo teria assumido, a partir de então, inspirando iniciativas educacionais em outras partes do país. Nessa reforma, em que é assinalada a vinculação essencial entre a adoção de uma nova proposta para a escola primária e a preparação dos professores que nela iriam atuar, a implantação da Escola-Modelo na cidade de São Paulo assume uma importância central, constituindo-se em espaço de observação das práticas escolares que deveriam ser incorporadas pelos futuros mestres nas inúmeras escolas do estado. Um aspecto extremamente valorizado nesse projeto foi o da visibilidade, que se expressava no destaque assumido na cena urbana paulista pelo conjunto arquitetônico constituído pela Escola Normal Caetano de Campos e pela Escola-Modelo, devido à sua monumentalidade e à sua localização, no espaço simbólico da Praça da República, no centro da capital do estado.

A escola primária experimental paulista afirmava-se, assim, como parâmetro para as escolas públicas republicanas, referido, num sentido amplo, à organização do universo escolar. O modelo formulado e disseminado era o do grupo escolar, em que assumiam grande relevo aspectos como a construção de prédios considerados apropriados para a finalidade educativa, o trabalho escolar apoiado no princípio da seriação36 e no destaque conferido aos métodos pedagógicos, entre os quais se situava, especialmente, o método intuitivo; a divisão e hierarquização da atuação dos profissionais envolvidos no cotidiano da escola; a racionalização dos tempos escolares; o controle mais efetivo das atividades escolares, entre outros.

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http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042009000100003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Revista Tempo

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