A CACHAÇA, VISTA PELO FOLCLORE
Hernani de Carvalho
• Entende-se por cachaça a aguardente obtida pela fermentação e conseqüente destilação da garapa ou do caldo de cana-de-açúcar, gramínea que se desenvolve bem em todo o território brasileiro.
• A cachaça é procedente de vegetação rendosa, ‘barata e de ciclo vegetativo rápido: a cana-de-açúcar. Igualmente, a sua fabricação depende de maquinário barato. A fábrica de cachaça descreve-se assim: uma coberta sem paredes laterais; uma moenda movida por uma junta-de-bois, onde as canas são moídas; a garapa vai para os tanques onde se opera a fermentação, que consiste na transformação da sacarose (açúcar) em álcool etílico e água. A garapa fermentada e, em seguida, levada para o alambique, onde o álcool etílico, com o calor da fornalha do alambique, volatiza-se e passa às serpentinas refrigeradas, onde se liquefaz e é recolhido em recipientes apropriados, chamados tonéis. Quanto mais velha nos tonéis, tanto mais saborosa a cachaça.
• Como se verifica, a obtenção da cachaça é baratíssima: e, por isso mesmo, é vendida a baixo custo no varejo, nas bodegas e nos botequins. A cachaça é a bebida do pobre, no Brasil. O roceiro, quando vai à venda fazer as suas compras costumeiras, leva uma garrafa vazia para trazê-la cheia de cachaça. A rigor, todos os roceiros têm sempre em casa uma garrafa de cachaça para um gole ou uma bicada, de vez em quando, ou oferecer um gole a uma visita.
• A cachaça, nos nossos sertões, é mezinha para males físicos e mesmo morais: há contrariedade? toma-se um gole e tudo desaparecerá; reina alegria? saúda-se esta alegria com uma bicada; dói o dente? bochecha-se cachaça e a dor some; há falta de apetite? tome-se um aperitivo de cachaça e a fome volta voraz; falta coragem para resolver um negócio sério? uma lambada forte de cachaça, torna-se corajoso; falta-lhe disposição de falar em público? uma chamada boa de cachaça torna-o orador; faz frio? toma-se uma talagada de cachaça e esquenta-se; faz calor? toma-se um golinho de cachaça e refresca-se; enfim, a cachaça transforma a personalidade do amante do álcool etílico. É necessário distinguir-se o amante da cachaça do cachaceiro: o primeiro, bebe-a aristocraticamente (...) ao passo que o último se dá ao uso desbragado da cachaça, prejudicando-se...
• Por causa da popularidade da cachaça os seus apelidos são numerosos e pitorescos: branquinha, mata-bicho, tira-teima, malfadada, desgraçada, para-ti, abrideira, água bruta, água-de-briga, água-que-gato-não-bebe, água-que-passarinho-não-bebe, bagaceira, baronesa, bicha, bico, branca, brasa, brasileira, cândida, caiana, cana, caninha, canjica, catuta, caxaramba, caxiri, cobreiro, corta-bainha, camulaia, dindinha, dengosa, desmancha-samba, dona branca, elixir, engasga-gato, espírito, esquenta-por-dentro, filha-de-senhor-de-engenho, fruta, gás, girgolina, gororoba, gramática, homeopatia, imaculada, já-começa, jerebita, jinjibirra, jura, legume, malunga, mamãe-de-luanda, mamãe-de-aruanda, mamãe-sacode, marafa, maria-branca, meu-consolo, moça-branca, patrícia, perigosa, pinga, prego, purinha, rama, remédio, restilo, samba, sete-virtudes, sinhazinha, sumo-de-cana, suor-de-alambique, tafiá, teimosa, tiquira, tome-juízo etc. etc. Note-se que estes apelidos da cachaça são regionais, pois em cada região do Brasil tem o seu pitoresco em ser apelidada pelos seus bebedores.
• Antigamente dizia-se, pejorativamente, "que a cachaça era bebida de negro". Hoje, a cachaça popularizou-se de tal modo que os brancos superaram em muito o consumo da "tome-juízo"... Para amenizar, quando o branco quer beber uma cachaça no botequim, ou na bodega, ou na taberna, ele não pede uma dose de cachaça: "traga-me uma batida de limão!, o garçom já sabe o que o freguês quer...
• Quando a cachaça era bebida de negro (e subia para a cabeça, quando se "entornava" muito, dizia-se embriaguez, bebedeira, mona, porre, pifão, puxando-um-fogo e que tais. Estes designativos que menosprezam o alcoólatra da cachaça, com a entrada dos brancos para o cordão da "branquinha" tudo se modificou: — uma dose de uma cachaça é uma "batida"; um porre de cachaça é uma crise etílica passageira; um cálice de cachaça na mesa de um bar chique chama-se abrideira; um coquetel à base de cachaça antes de um jantar chique chama-se aperitivo.
• A cachaça tem um cheiro característico de garapa fermentada. Então, no Nordeste e no Norte brasileiros, quando se serve uma dose de cachaça vêm, também, umas rodelas de caju ou de outros frutos cheirosos para que o hálito não fique cheirando da "branquinha"... Lá, chama-se a isso tira-gosto...
• Quando um bebedor de cachaça excede-se na bebida das "batidas", sobrevém o pifão, na linguagem popular. Mas, se o bebedor de cachaça é grã-fino o fato anormal não se chama pifão, o nome técnico chama-se intoxicação etílica. Até entre as classes sociais há diferenciação entre os termos dos cachaceiros...
• No ritual dos feiticeiros, a cachaça é fartamente usada nos "despachos", nos "banhos-de-descarga" e na deglutinação pelos "cavalos" (médiuns), em estado de transe, durante os "trabalhos-de-terreiro", com o nome de marafa.
• Existe na sabedoria popular uma comparação numerosa em que figura a cachaça:
Diabo, mulher e cachaça são três tentações...
Cachaça e mulher endoidecem os homens...
Rabo-de-saia e cachaça fazem os homens virar a cabeça...
A cachaça é como o homem que ama uma mulher ruim: quanto mais bebe, tanto mais tem vontade de amá-la...
A cachaça e a mulher são capazes de fazer um frade-de-pedra pecar...
A cachaça e a mulher se parecem: quando a cachaça é deglutida pelo bebedor, este faz caretas e esgazeia os olhos; a mulher faz caretas e esgazeia os olhos, no paroxismo do amor...
• Entre os bebedores de cachaça nos botequins, nas bodegas ou nas tabernas, nota-se que eles não bebem sós: estão sempre acompanhados de "irmãos-da-opa". Logo que o garçom traz as "batidas", antes de deglutidas, eles se brindam e enaltecem as virtudes da "água-que-passarinho-não-bebe"...
• Nas rodas de intelectuais bebedores de cachaça vale a pena a gente ficar de fora ouvindo dissertações eruditas em prosa e verso. Intelectual que não bebe cachaça, parece-me, é falho de inspiração...
• A política é como a cachaça: a princípio, é uma abrideira; depois, é um aperitivo; depois, é uma batida; depois, passa a ser um hábito; daí, pula para a área do vício; e passa a embriagar-se; nessa altura, ninguém poderá mais abandoná-la...
• Os cantadores e os violeiros do Nordeste, com a sua verve cabocla, são férteis em versos, endeusando a cachaça:
"Cachaça é bebida boa
O povo chama "branquinha":
Botam mel para ficar doce
Então chamam "meladinha",
Mas sai com as pernas trançando
Como quem cose bainha!"
* * *
"Nasci para beber no mundo
Quantidade essa tão pouca,
Quando levo o copo à boca
Meu desejo é ver o fundo..."
"Hoje bebe todo mundo
Deputado e senador,
Babe o soldado, o sargento,
O juiz, o promotor.
Como é que pode deixar
De beber o cantador?"
* * *
"O meu boi morreu,
O que será da vaca,
Pinga com limão
Cura urucubaca..."
* * *
Superstições em torno da cachaça
1) quando se vai beber a cachaça, o bebedor, antes de tocar o cálice na boca, derrama um gole para "salvar os santos";
2) roubar Santo Onofre dá sorte à pessoa que o roubou, mas é preciso deixar cachaça e farinha para o santo beber e comer; é pau-d’água (Deus me perdoe...); não deixará faltar "nada de provisões de boca" ao seu dono;
3) os bebedores, depois de deglutirem a cachaça, deixam um pouquinho no cálice ou no copo e atiram-no para um lado: é para o diabo ou para os caboclos...;
4) os cachaceiros, depois de deglutirem um copázio de cachaça, cospem para um lado; acreditam ser "simpatia" para não se embriagar...
Pitorescos da cachaça
• "Ter cachaça por alguém" é expressão corriqueira empregada amiúde, quando se quer manifestar estima imoderada por determinada coisa ou pessoa.
• Em Brasília, na capital federal, entre os candangos, quando alguém convida os amigos: "vamos beijar os santos?" Quer dizer: "Vamos beber uma cachaça?" Igualmente, em Brasília, quando se pede ao garçom: "traga-me um leite de camelo". Quer dizer: "traga-me uma mistura de cachaça e cinza!" Outras vezes, ouve-se este convite: "Vamos molhar a goela?" Quer dizer: "Vamos beber cachaça?"
• Ainda outro modismo de convite: "Vamos molhar a palavra?" Quer dizer: "Vamos tomar uma dose de cachaça?"
• Outro modismo muito em voga em todo o sertão: "Vamos matar-o-bicho?" Quer dizer: "Vamos tomar um gole de cachaça?"
• Há um modo de convite gozado: "Vamos verificar se está chuviscando?" Quer dizer: "Vamos bebericar cachaça nas tavernas ou botequins?"
• Outra modalidade de convite, comum no sertão: "Vamos tomar uma talagada?" Quer dizer: "Vamos tomar uma cachaça?"
• Às vezes, o convite varia: "Vamos tomar uma chamada?" Quer dizer: "Vamos tomar uma cachaça?"
• Verifica-se, pela índole dos convites, que, entre os irmãos-da-opa, reina uma cordialidade e uma delicadeza invejáveis...
• Os cachaceiros contumazes, quando "matam o bicho", dão um estalo com a língua no céu da boca, fazem uma careta e trauteiam: "Eta coisa ruim, mas eu gosto dela assim mesmo..."
• No linguajar dos sertanejos verifica-se amiúde a deturpação de certos termos que são inteiramente desvirtuados. Por exemplo: o termo despotismo, que significa nos dicionários: autoridade de déspota. E déspota significa tirano. Pois bem, despotismo, na linguagem matuta, significa grande quantidade de qualquer coisa. Na minha fazendola de Campos, no estado do Rio de Janeiro, ouvia, amiúde, o emprego de despotismo pelos camponeses locais e eles explicavam-me o significado deturpado. O meu folclore registrou a deturpação curiosa e pitoresca. Beber-se cachaça em grande quantidade é um despotismo.
(Carvalho, Hernani de. No mundo maravilhoso do folclore. Rio de Janeiro, Tipografia Batista de Souza, 1966, p.155-159)
Jangada Brasil
cachaça ou outro tipo de alcool e' usado por muitos povos em qualquer epoca da historia. motivo da necessidade do homem ter em ficar um pouco dominado pelo efeito do alcool... prazer de beber, timidez em busca de coragem. entendo que possam ter prazer em beber um pouco, mas nao consigo entender como se diverte alguem senao esta bem consciente . e como o organismo aguenta oara mim e' outro feito de quem bebe. mas ha muitos povos diferntes origens que bebem. nao podemos dizer que isso e caracteristica de um povo em especial.
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