terça-feira, 19 de janeiro de 2010

AINDA O FOLCLORE DA CACHAÇA


AINDA O FOLCLORE DA CACHAÇA

Téo Brandão

O segundo motivo abordado por José Calasans na sua interessante obra Cachaça, moça branca, diz respeito ao culto à bebida. Revela o folclorista sergipano a existência de um verdadeiro culto à cachaça em Maroim (Sergipe) que ele denominou de “culto da serpente venenosa do alto mar”, culto que ele equipara à célebre procissão ou festa do deus Baco, realizada na antiga província de Pernambuco e descrita por Pereira da Costa.

Em Alagoas, embora como em todo o Brasil, haja devotos da “Santa caninha” e estes sejam denominados de “irmãos da opa”, não há nem houve, ao que me consta, nenhum culto religioso organizado nos moldes daquele de que nos noticia o ensaísta de Aracaju.

Contudo, se não há um culto religioso, há pelo menos um culto cívico ou melhor uma macaqueação ou arremedo de organização militar com o grêmio tradicional e bastante conhecido, mormente na época carnavalesca, do 44º Espadas d’Água.

Este célebre batalhão de “pés de cana” é formado por um certo número de aficionados da “branquinha” e se apresenta organizado em estado-maior, quartel general, oficialidade, possuindo hino, ordens do dia, etc.

Inquirindo um dos seus “comandantes” a respeito da origem da denominação de 44º Espadas d’Água, nada nos pode responder, afirmando que o nome era muito antigo e que já existia quando “verificara praça” há trinta e tantos anos passados. Nessa data ou em época pouco anterior, lembramo-nos de que em Viçosa saía por ocasião do Carnaval um Clube Carnavalesco “Espadas d’Água”. Também informante residente nesta capital diz-nos que aí por 1910 existiu em Maceió um Clube Carnavalesco Espadas d’Água — naturalmente predecessor da atual organização.

O que parece é que a criação de tal organismo se deve à influência de Pernambuco pois, refere-nos Pereira da Costa no verbete “Espada d’Água” de seu precioso Vocabulário pernambucano que “em 1900 fundou-se no Recife o 13º Batalhão Espada d’Água, sob o comando do marechal Maia Maravilhoso” e quem em 1902 já tinha filial em Tejipió” (A Pimenta, 1902).

Quanto à adoção do número 44, ou foi “meramente” acidental ou poderia significar o número dos primitivos componentes do grupo.

A sua organização íntima foi-nos prometida por altos oficiais do quadro mas infelizmente até o momento de traçar estas notas não chegou às nossas mãos. Veio-nos, porém, o hino do Batalhão, letra (diz a cópia que nos foi fornecida) do capitão Chico Papaovo (?) para ser cantada com a música da Tirolesa. Hino portanto, recente, a menos que não seja substituído de algum outro mais antigo:

Estr.
44,
Espada d’água – força de grande valor

44,
Tem general, só não tem governador.

I
Eu vou passar a vida inteira
Na bebedeira, na bebedeira...
Honrando as nossas tradições
Tomando cana de alambique aos garrafões.

II
Viva o nosso chefe em ação
O general Luís Falcão
Que comanda de boa fé
A nossa carga de cavalaria a pé

Da existência desta corporação é que talvez tenha vindo a expressão comum em certas rodas de “bebaças” para os indivíduos que se encontram embriagados de “fardados”, dizendo-se além disso que o indivíduo está de “talabarte e perneira” quando a embriaguez é completa.

A estas atividades pseudo-militares possivelmente se prende também uma cançoneta que ouvi muitas vezes na minha infância, e que se não nos enganamos é por sua vez paródia de outra canção, da mesma época que o professor Luís Lavenere registra na segunda edição de sua interessante e preciosa coleção Nossas cantigas:

”Assentei praça na polícia eu digo.
Por ser amigo da distinta farda.
Agora é tarde: me recordo e penso.
Trabalho imenso, não se folga nada.

Adeus, compadre, adeus também amigos.

Há 12 anos que na praça eu vivo,
Tomando cálice de cognac fino
Vou vencer batalhas e sofrer castigos”

mas da qual só conseguimos as duas estrofes que aqui vão transcritas até que um “veterano” do 44 ou das “tropas irregulares” possa um dia enviar-me o restante:

“Tomei um porre na semana santa
Que a vizinhança de mim teve dó:
Segunda-feira fui saindo à rua
Vestindo a calça pelo paletó.

Adeus, Levada, bairro da cachaça
Assentei praça com destino ao Rio,
Um alagoano como eu não corre
Ou mata de morre mas sustenta o brios.”


Voltando porém às manifestações de culto religioso da cachaça podemos ainda informar que tivemos certa feita notícia da existência entre nós de uma ladainha possivelmente símile do decálogo que Americano do Brasil (Cancioneiro de trovas do Brasil Central), registra e José Calasans transcreve, a qual entretanto não foi possível chegar ainda em nossas mãos.

Todavia podemos assegurar que o culto à bebida referendado por orações não existe só em Sergipe, Bahia ou Pernambuco. Em Paraíba transcreveu Sabino Campo em seu romance “Catimbó” um interessante “Creio em Deus Padre” recitados pelos crentes da “cotréia”:

“Creio na fertilidade do solo todo produtor, criador da casa e da caninha; creio na aguardente, nosso alimento, a qual foi concebida por obra e graça do alambique; nasceu da puríssima cana, padeceu sob o poder da moenda, foi derramada e sepultada no copo, desceu ao fundo da caldeira, ao terceiro dia ressurgiu da garrafa, subiu ao céu da boca, está no tonel, bem arrolhado, de onde há de vir alegrar os grandes e os pequenos. Creio no espírito de 40º, na santa safra anual, na comunicação dos pifões, na remissão dos chinfrins, na ressurreição dos pileques e na ressaca eterna, amém”.

Também em Minas Gerais o meu prezado confrade e querido amigo Saul Martins me mandou como saudação de Natal, uma variante deste credo, por ele coligido num botequim de Belo Horizonte no dia 20 de dezembro de 1951:

“Creio tenho fé e esperança nos grandes canaviais, na utilidade do gole e todo produto da cana e caninha;

Creio na aguardente que é o nosso alimento, o qual foi concebido por obra e graça do alambique.

Nasceu de um puríssimo canudo, padeceu sob os apertões e pressões das moendas, foi derramado e sepultado no cocho; no terceiro dia ressurgiu da garrafa, subiu ao céu da boca dos cachaceiros e paus d’água, está nas garrafas bem arrochadas, de onde há de vir alegria pra os grandes e pequenos.

Creio no espírito de 40º, na santa safra de mel, na diminuição dos impostos, na remissão dos sem pena, na eternidade da cana, na salvação dos pinguços, na ressaca eterna, assim seja”.


(Brandão, Téo. “Ainda o folclore da cachaça”. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 21 setembro 1952)

Jangada Brasil

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