domingo, 1 de novembro de 2009

O futuro do tempo


O futuro do tempo
O imediatismo e a urgência são a marca do nosso tempo. A instabilidade e a precariedade do trabalho encurtam o tempo presente. Essa situação impede qualquer projeto de longo prazo, fazendo prever grande incerteza sobre o futuro. É preciso estruturar uma ética do futuro, uma ética do tempo que reabilita o futuro, mas também o passado e o presente
Jérôme Deauvieau

Com a teoria da relatividade, de Einstein, a noção de tempo modificou-se: o conceito espaço-tempo substituiu as noções separadas de espaço e de tempo
Por que suscitar a questão do tempo, do futuro do tempo e dos futuros possíveis? Porque nossa sociedade vive sob a tirania do tempo. Como mostra Milan Kundera, ela “está imobilizada na estreita passarela do presente”.

O século XX foi o das previsões arrogantes, quase sempre desmentidas. O XXI será o século da incerteza; portanto, das previsões. Menos que nunca, poderemos prever em que tempo viveremos. Na realidade, ocorreu uma revolução maior na concepção científica do tempo. Segundo a teoria clássica, a de Newton, o tempo passava uniformemente e com a mesma velocidade: era universal, absoluto e neutro. Nesse sentido, o passado e o futuro eram idênticos.

Sabemos que, com a teoria moderna da relatividade, formulada por Einstein, a noção de tempo modificou-se profundamente. O conceito espaço-tempo se impôs e substituiu as noções separadas de espaço e de tempo. O tempo perdeu, então, sua idealidade física e newtoniana. Como não é possível ir mais rápido que a velocidade da luz, é impossível voltar ao passado.

Rumos da história são o extravio
Ilya Prigogine tentou ir mais longe, introduzindo a idéia de incerteza na idéia de tempo. Talvez a incerteza venha a ser o fato marcante do século XXI
Perguntado sobre o futuro do tempo, Ilya Prigogine tentou ir mais longe, introduzindo a idéia de incerteza na idéia de tempo1. Essa idéia de incerteza talvez venha a ser o fato marcante do século XXI. Ilya Prigogine mostra que as leis reversíveis de Newton só dizem respeito a uma pequena parcela do mundo em que vivemos. Permitem, é claro, descrever o movimento dos planetas. Mas o que neles se passa – a geologia, o clima, a vida - exige a formulação de leis que implicam fenômenos irreversíveis.

Será que avaliamos devidamente a revolução que essas descobertas introduzem na noção do tempo? Chegou o fim das certezas: o tempo não tem um futuro, mas, sim, futuros. Porque, daqui por diante, a natureza é imprevisível: ela é história.

Que concepção da História e do futuro do tempo aparece nessa revolução epistemológica? Precisamente, a da liberdade. Segundo Robert Musil2: “A trajetória da história não é como a de uma bola de bilhar que, uma vez lançada, percorre um caminho definido: ela se parece mais com o movimento das nuvens, ou com o trajeto de um homem vagando pelas ruas e que muda de direção por causa de uma sombra aqui, por causa de um grupo de curiosos, ou por causa de uma estranha combinação de fachadas ali, e que vai dar num lugar desconhecido onde não pensava ir. Os rumos da história”, conclui Robert Musil, “são muito freqüentemente o extravio. O presente representa sempre a última casa de uma cidade, aquela que, de um modo ou de outro, não faz mais parte do povoado. Cada nova geração pergunta-se, admirada: quem sou eu? Quem eram meus antepassados? Seria melhor que se perguntasse: onde estou? E supusesse que seus antepassados não eram diferentes dela, mas, simplesmente, outros”.

A contração do tempo e do espaço
Diante da mudança nas concepções de tempo, como nos surpreendermos se vivemos uma crise do tempo social e cultural? A história é sempre contemporânea
Os desafios dessa revolução são consideráveis, tanto para as “ciências duras” quanto para as ciências humanas e para a previsão. Ilya Prigogine resume da seguinte maneira a amplitude da reviravolta introduzida na esfera dos saberes: “Que rumo tomará o século XXI? Qual o futuro do futuro? (...) Com a noção de probabilidade, as idéias de incerteza e de múltiplos futuros entram nas ciências do microscópico. (...). Passamos de um mundo de certezas para um mundo de probabilidades. Devemos encontrar a via estreita entre um determinismo alienante e um universo que seria regido pelo acaso e, por conseqüência, inacessível a nossa razão”.

Diante dessa imensa mudança em nossas concepções de tempo, como nos surpreendermos se também vivemos uma crise do tempo social e cultural? Como dizia Benedetto Croce, a história é sempre contemporânea.

Primeiro fenômeno: a contração do tempo e do espaço, essa compressão que está no cerne das análises da terceira revolução industrial. Quando se buscam referenciais cronológicos sobre a contração do tempo na história, é necessário lembrar que se começou a falar de décimo de segundo em 1600, de centésimo de segundo em 1800, de milissegundo em 1850, de microssegundo (milionésimo de segundo) em 1950, de nanossegundo (milésimo milionésimo de segundo) em 1965, de picossegundo (milésimo de bilhão de segundo) em 1970, de femtossegundo (milionésimo bilionésimo de segundo) em 1990 e que, provavelmente por volta de 2020, se falará de attossegundo, isto é, de trilionésimo de segundo!

Um tempo quase fantasmagórico
Os efeitos da contração do tempo estão no cerne do capitalismo da terceira revolução industrial e invadem o campo político, social, cultural e simbólico
Nosso conhecimento do tempo parece avançar rumo a uma decomposição cada vez mais fina, rumo ao infinitamente breve, coisa de que cada área da vida social, mesmo na cultura, na comunicação e na política, parece fornecer inúmeros exemplos eloqüentes. Andy Warhol dizia que qualquer um poderia tornar-se famoso durante quinze minutos, na era dos meios de comunicação de massa. Mas a teoria do marketing já procura nos convencer de que sete segundos seria a duração máxima de uma mensagem audível e apreensível para a massa dos telespectadores.

Segundo os especialistas, seriam necessários três meses, em 1990, para se conceber e realizar um novo protótipo de carroceria de automóvel, ao passo que, em 1950, eram necessários três anos. “Bastam alguns minutos para se obter o conjunto dos artigos científicos, alvarás, decisões de justiça, relativos, em escala planetária, a um novo produto químico. Há trinta anos, essa pesquisa simplesmente não teria sido feita porque teria mobilizado uma enorme equipe de documentaristas durante vários anos3”.

Tais efeitos da contração do tempo estão no cerne do novo capitalismo da terceira revolução industrial e também invadem o campo político, social, cultural e simbólico. A obsolescência corrói o tempo da história, o tempo dos grandes ciclos e os ciclos da vida humana: foram necessários 500 mil anos para se passar do fogo à arma de fogo e, depois, muito pouco tempo para se passar do automóvel ao avião4. Essa aceleração do tempo provoca o desaparecimento dos objetos mesmo no interior de uma vida humana, que vão sendo substituídos por outros. Daqui por diante, o tempo tecnológico, mas também social, é volátil, quase fantasmagórico.

Uma revolução silenciosa
Foram necessários 500 mil anos para se passar do fogo à arma de fogo e, depois, muito pouco tempo para se passar do automóvel ao avião
Quanto mais se contrai, mais o tempo se torna mundial. Quanto mais se reduz ao presente, mais a história se torna contemporânea. Quanto mais o tempo se comprime, mais a competição se aguça e mais o tempo se torna, por excelência, o trunfo estratégico e o fantasma perdido de nossa modernidade tardia.

Nessa perspectiva, vivemos uma revolução silenciosa do tempo, que afeta as relações que ele mantém com o trabalho. Segundo Adam Smith, a essência abstrata da riqueza era o trabalho. Mas o trabalho era o tempo. E o que ocorre hoje? Assistimos à crise simultânea do trabalho e do tempo como temporalidade social. Trata-se de uma crise fundamental, pois, como observou Roger Sue: “A história do trabalho confunde-se com a dos Tempos Modernos. O tempo de trabalho na modernidade desempenhava, nesse sentido, um papel similar ao do tempo religioso na Idade Média.” Aliás, derivava historicamente do tempo religioso e, de certa forma, “copiou-o”.

Desempenhando um papel central, o tempo de trabalho, como o tempo religioso, assegurava, na realidade, três grandes funções: a produção de vínculo social e de identidade (o tempo de trabalho “estrutura o tempo dos indivíduos, fixa-lhe referências”); o vínculo entre atividade e “salvação” (segundo Max Weber, o tempo religioso organiza a “economia da salvação”, enquanto o tempo de trabalho representa “a salvação pela economia”). E uma terceira grande função: a orientação do futuro - o tempo central dava um sentido ao futuro. Um sentido transcendente ao tempo religioso, um sentido imanente, ou secular, ao tempo de trabalho5.

As demandas “pós-materialistas”
A nova revolução que solapa as bases do trabalho nos faz passar da identidade à incerteza
O trabalho seria capaz de ainda garantir essa tríplice função? Há motivos para duvidar. Primeiramente, o trabalho se torna raro. Porque a extraordinária criação de riqueza engendrada pelas duas primeiras revoluções industriais - e, atualmente, pela terceira - se fez acompanhar por uma não menos extraordinária redução do tempo de trabalho.

Para citar o exemplo da França, em 1850 o tempo passado no trabalho representava 70% do tempo de vida sem dormir. Em 1900, já eram necessários apenas 42% e, hoje, com a redução do tempo de trabalho, o aumento da duração da vida e do tempo de escolaridade, não passa de 7% a 8%. Quando se toma como referência o conjunto dos países industrializados, o tempo de trabalho representa atualmente de 10% a 15% do tempo de vida sem dormir.

Segunda característica que assinala uma crise do trabalho: o deslizamento cultural de valores nas sociedades industrializadas, e de modo especial na Europa, com o aumento das demandas “pós-materialistas6”. As aspirações dos indivíduos que as compõem, e principalmente dos jovens, mudam. Falou-se de “fechamento em si”. Talvez fosse necessário falar também de “fechamento sobre o si”, ou da redescoberta de si.

Tempo de educação e formação
O tempo de trabalho, na modernidade, desempenhou um papel similar ao do tempo religioso na Idade Média. Aliás, derivou do tempo religioso e “copiou-o”
Terceira característica que põe o valor trabalho em crise: seria o trabalho ainda o principal fator de produção? Também disso se pode duvidar, e por quatro razões, pelo menos. Com a irrupção da economia política - em 1776, data da publicação de A Riqueza das Nações, de Adam Smith - o trabalho passou a ser entendido como a essência abstrata da riqueza. Notemos que, a esse respeito, houve um surpreendente acordo entre os socialistas, os liberais e os cristãos sociais. Ora, já há mais de um século, com a teoria do equilíbrio geral formulada por Léon Walras, a troca e as relações entre a oferta e a demanda é que passaram a ocupar o lugar central. Nesse sentido, a idade de ouro do trabalho, em sua acepção conceitual, teria sido realmente o século XIX, embora, em termos humanos, tenha sido seu inferno.

Segunda razão: o capital - produto do trabalho e de sua acumulação - tende, cada vez mais, a substituir o trabalho. Terceira razão: à medida que fomos passando de sociedades de produção a sociedades de consumo, foi preciso não só aumentar o poder de compra dos trabalhadores (o que fez o fordismo), mas também liberar tempo para o consumo.

Quarta razão: para aumentar a produtividade do trabalho, principalmente graças ao progresso tecnológico, é e será necessário dedicar uma parte crescente do tempo de vida à educação e à formação profissional. Em outros termos, “os fatores externos ao trabalho acabam por se tornar mais importantes que o próprio trabalho e, em todo o caso, contribuem para reduzir sensivelmente sua duração7”. O antigo vínculo que ligava o tempo ao trabalho afrouxou-se progressivamente. Estaria em vias de se desfazer?

A desagregação das competências
À tirania do imediatismo corresponde a tirania da urgência. Esta faz-se acompanhar pela retração acelerada das referências à idéia de projeto coletivo
Quarta característica que indica a crise do trabalho: o trabalho torna-se precário, frágil, volátil e, portanto, fonte de tensões extremas. Há anos se vem insistindo, com razão, no problema do desemprego - principalmente na Europa - e no dramático aumento da exclusão. Viu-se também aparecer, em diversas regiões do mundo, o fenômeno do “crescimento sem criação de empregos”. Devido à precariedade do trabalho, a sociedade se quebra em duas. Entretanto, a crise do desemprego deveria ser compreendida como um aspecto de uma crise mais ampla e mais duradoura: a do próprio trabalho.

Isso porque a precariedade não atinge só o desempregado, mas o próprio trabalho. Tal evolução provoca um profundo esgarçamento no tecido da sociedade. Na Grã-Bretanha, especialistas avaliam que uma pessoa que tenha feito dois anos de curso superior mudará de empregador pelo menos dez vezes durante sua vida profissional. As mudanças aceleradas de emprego são agravadas por uma degradação de conhecimentos, acentuada pela obsolescência rápida dos saberes, e por uma desagregação das competências induzidas pelo deslocamento constante dos indivíduos. Em resumo, “a acumulação dos conhecimentos e a trajetória profissional deixaram de ser valorizadas positivamente8”. Principais vítimas: as classes médias e os operários e técnicos superiores, sendo que se acentua o contraste com a elite.

Um fator de confusão e incerteza
A construção de uma ética do futuro exige que se inaugure uma perspectiva de valores. Para isso, três evoluções são determinantes
Essa mutação acarreta uma crise dos valores do trabalho e uma profunda reviravolta da relação com o tempo. Como destacou Richard Sennett, em Les Clés du XXIe siècle, o modelo pós-fordista, ao valorizar o efêmero e a rápida rotatividade, destruiu a fraternidade no trabalho, a lealdade para com a instituição ou a sociedade, a fidelidade à empresa e a confiança entre os trabalhadores. Cada um procura salvar seu lugar no imediato e vê nos riscos, valorizados, entretanto, pelo capitalismo fexível, uma exposição ao perigo. O medo e a depressão predominam, exceto entre os altos executivos dirigentes. Como o trabalho deixa de se basear em “esquemas de gratificação distintos” (a “salvação pela economia”, segundo Max Weber), o longo prazo é sacrificado à tirania da urgência, à luta pela sobrevivência e ao ganho imediato.

A estética do mercenário leva a melhor sobre a ética da duração. O contrato social e o contrato salarial são cada vez mais substituídos pelo contrato comercial, baseado na exterioridade da terceirização. O horizonte da empresa concebida como empresa virtual é uma sociedade sem assalariados: uma mera etiqueta que cobre uma sucessão indefinida de associações efêmeras, de alianças provisórias por necessidade.

Em resumo, a nova revolução que solapa as bases do trabalho nos faz passar da identidade à incerteza. O trabalho é cada vez menos um pólo de referência e cada vez mais um fator de confusão ou de incerteza com o qual os jovens mantêm uma relação de exterioridade, uma relação manipuladora que provoca mais estresse e descontentamento do que satisfação e que não cristaliza mais a identidade9.

A lógica do tempo real e do imediato
É hora de lembrar que a política consiste, antes de tudo, em estruturar o tempo, já que “a tarefa específica do homem político” é “o futuro e a responsabilidade diante do futuro”
Essa nova revolução da flexibilidade mina também a identidade porque o trabalho não faz mais “história”. Ele era uma história, uma narrativa linear; tornou-se uma sucessão de fragmentos, de cenas que já não formam um roteiro. O trabalho cimentava o vínculo social. Hoje o desata e o desagrega, provocando, de uma só vez, a decomposição do vínculo civil e cívico, do cimento familiar e do sentimento nacional. O trabalho, enfim, estruturava o tempo: a crise e a mutação do trabalho quebram a flecha do tempo vivido e, valorizando o instantâneo, o presente e o curto prazo, destroem a representação do futuro e o sentido de qualquer projeto de longo prazo.

O paradoxo, portanto, é que se fala cada vez mais do trabalho, quando ele existe cada vez menos. No fundo, é o mesmo paradoxo que leva a falar cada vez mais do meio ambiente e da natureza, quando a natureza, a olhos vistos, se torna artificial, e o meio ambiente é cada vez mais desnaturado. Como dizia Walter Benjamin: “A verdade da essência de uma coisa se manifesta quando a coisa está ameaçada de desaparecer”.

As sociedades humanas passam por um desregramento de sua relação com o tempo. Uma contradição maior está colocada. Elas precisam, gradativamente, projetar-se no futuro, para sobreviver e prosperar. E, cada vez mais, falta-lhes um projeto. Fala-se de um divórcio entre projeção e projeto. Esse divórcio tende a se aprofundar. De um lado, porque os grandes esquemas de pensamento e de representação parecem, a longo prazo, ter desmoronado; de outro lado, porque a globalização e o aparecimento de novas tecnologias impõem às sociedades a lógica do “tempo real” e o horizonte do curto prazo: hegemonia da lógica financeira e midiática; ajuste das decisões políticas - nas sociedades democráticas - ao horizonte da próxima eleição; atribuição de importância extrema ao humanitário, quando diminui a ajuda ao desenvolvimento.

O modelo ético do contrato social
À tirania do imediatismo, que serve de desculpa para o “depois de mim, o dilúvio” dos príncipes, corresponde a tirania da urgência. Esta faz-se acompanhar pela retração acelerada das referências à idéia de projeto coletivo. Não conseguimos mais nos projetar numa perspectiva do tempo longo. Deste ponto de vista, a urgência desestrutura o tempo e deslegitima a utopia. O tempo parece abolido pelo instante. Por toda parte, o homem de hoje se arroga direitos sobre o homem de amanhã, ameaçando seu bem-estar, seu equilíbrio e, às vezes, sua vida.

Longe de ser um dispositivo transitório, a lógica da urgência torna-se permanente: impregna todo o tecido da sociedade, erigindo em princípio absoluto da ação coletiva o imperativo do resultado imediato. Entretanto, teria o uso de dispositivos de urgência desembocado na solução de problemas de longo prazo? Os fracassos da ação humanitária e os medíocres resultados obtidos pela comunidade internacional em matéria de gestão multilateral dos problemas mundiais parecem demonstrar o contrário.

Mas como reconstruir o tempo na hora da globalização? Como reabilitar o tempo longo? Dois obstáculos, observa o filósofo belga François Ost, opõem-se ao levar em conta o futuro. Trata-se, em primeiro lugar, do predomínio do modelo ético do contrato social, que não concebe obrigações senão entre sujeitos mais ou menos iguais e engajados em relações de troca baseadas em cláusulas recíprocas, quando se trata, com a noção de ética do futuro, de “ampliar a comunidade ética a sujeitos por vir, diante dos quais estamos numa relação totalmente assimétrica”.

A flexibilidade como princípio absoluto
O segundo obstáculo é a “miopia temporal” da época, “que se traduz, ao mesmo tempo, em uma amnésia em relação ao passado, inclusive recente, e numa incapacidade em nos inserirmos num futuro sensato”. É necessário refletir sobre os meios de superar esses dois obstáculos, estabelecendo os primeiros elementos de uma ética do futuro10.

A reconstrução do tempo também pressupõe que os atores sociais e os tomadores de decisão parem de se “ajustar” ou de se “adaptar”; que se antecipem e tomem a dianteira. O século XXI será de previsões ou não será; prever para prevenir: este é o objetivo. Porque a demora entre o enunciado de uma idéia e sua realização é sempre muito grande. Uma geração, ou mesmo várias, é sempre o tempo mínimo para que uma política dê todos os frutos. Como o curto e o médio prazo já estão “nos trilhos” no que se refere ao essencial, o destino das gerações futuras dependerá cada vez mais de nossa capacidade para associar visão de longo prazo e decisões presentes. O fortalecimento das capacidades de antecipação e de previsão é, pois, uma prioridade para os governos, para as organizações internacionais, para as instituições científicas, para o setor privado, para os atores da sociedade e para cada um de nós.

Ora, como observa Hugues de Jouvenel, invoca-se cada vez mais, principalmente no Ocidente, a aceleração da mudança e a multiplicação dos fatores de ruptura para proclamar o caráter cada vez mais imprevisível do futuro e para daí deduzir que só uma coisa importa: a flexibilidade. “Opõe-se assim, cada vez mais, a cultura do ‘apenas a tempo’... à do tempo longo que, no entanto, continua sendo o único limite em que podem ser empregadas verdadeiras estratégias de desenvolvimento.” A construção de uma ética do futuro exige, pois, um questionamento dos modos de gestão que se baseiam na flexibilidade erigida em princípio absoluto e na recusa da previsão.

A “vontade de viver junto”
Mas é preciso ir mais longe: se não agirmos a tempo, as gerações futuras não terão tempo algum para agir. Correrão o risco de ser prisioneiras de evoluções tornadas incontroláveis, tais como o crescimento demográfico, a degradação do meio ambiente global, ou as disparidades entre o hemisfério Norte e o hemisfério Sul e dentro das próprias sociedades, o apartheid social e a influência mafiosa que se propaga.

Amanhã é sempre tarde demais. Um exemplo? Dez anos após a Cúpula da Terra, a Agenda 21 permaneceu, quanto aos aspectos essenciais, letra morta, com exceção dos tímidos avanços da Cúpula de Kyoto sobre a redução dos gases de efeito estufa, hoje questionados. Rio de Janeiro mais dez, ou será Rio menos dez? Por quanto tempo poderemos nos oferecer o luxo da inação? Alguém já calculou o custo da inércia e da ausência de ética do futuro?

A construção de uma ética do futuro exige que se inaugure uma perspectiva de valores. Três evoluções são determinantes: a primeira é a mutação temporal da responsabilidade. Éramos responsáveis apenas por nossos atos passados; atualmente, nossa responsabilidade incide sobre o futuro longínquo. Como diz Paul Ricœur, “confiaram-nos algo que é essencialmente frágil” e perecível: a vida, o planeta ou a cidade. Porque a cidade é perecível. Sua sobrevivência depende de nós (Hannah Arendt). Na verdade, nas palavras de Paul Ricœur, nenhum sistema institucional sobrevive “sem ser sustentado por uma vontade de viver junto... Quando esse querer se desmorona, qualquer organização política se desfaz muito depressa”.

Em busca do tempo perdido
A emergência internacional do princípio da precaução, baseado na incerteza, constitui uma segunda evolução maior: qualquer previsão é, realmente, gestão do imprevisível e da incerteza; portanto, do risco. Segundo François Ewald, o novo paradigma da precaução “demonstra uma relação profundamente conturbada com uma ciência que é interrogada menos pelos saberes que propõe do que pelas dúvidas que sugere. As obrigações morais assumem aí a forma da ética”.

Terceira evolução: ampliando sem cessar seu domínio de extensão, o patrimônio funda, daqui por diante, uma responsabilidade humana em relação às gerações futuras. Era um simples legado do passado, mas atualmente, e em última instância, abrange toda a cultura e toda a natureza. Não se limita mais às pedras, mas integra o patrimônio imaterial e simbólico, ético, ecológico e genético.

A construção de uma ética do século XXI exige a “reforma do pensamento” citada por Edgar Morin. Essa reforma também pressupõe uma reforma dos vínculos entre o pensamento e a ação, baseada, por exemplo, na evolução rumo a um “direito comum” da humanidade (Mireille Delmas-Marty).

A crise do político coincidiu amplamente, no Oeste, no Leste e no Sul, com a “crise do futuro” e sua ilegibilidade crescente11. Chegou a hora de lembrar que a política consiste, primeiro e antes de tudo, em estruturar o tempo, já que “a tarefa específica do homem político” é “o futuro e a responsabilidade diante do futuro” (Max Weber).

Partindo dessa premissa, não cabe opor a solidariedade às gerações presentes à solidariedade às gerações futuras. A generosidade não se divide. O pouco caso que se faz dos excluídos do Terceiro Mundo e do Quarto Mundo é a outra face da moeda; o esquecimento das gerações futuras é seu reverso. A ética do futuro é fundamentalmente uma ética do tempo que reabilita o futuro, mas também o presente e o passado.

Se quisermos mudar de modo radical nossa relação com o tempo, deveremos redescobrir, neste início do século XXI, uma sabedoria antiga: habitar o tempo e, como Marcel Proust nos convidava a fazer, saber encontrar o tempo perdido... (Trad.: Iraci D. Poleti)

1 Ler, de Ilya Prigogine, “Flèche du temps et fin des certitudes”,Les Clés du XXIe siècle, Actes des Entretiens du XXIe siècle et des Dialogues du XXIe siècle, ed. Unesco/Seuil, Paris, 2000. 2 Ler, de Robert Musil, L’Homme sans qualités, tradução francesa, ed. Seuil, Paris. 3 Ler, de Thierry Gaudin, 2100, Récit du prochain siècle, ed. Payot, Paris, 1993. 4 E. Klein, loc. cit. 5 Essas análises se inspiram nas idéias apresentadas por Roger Sue em Dialogues du XXIe siècle, organizados pelo Office d’analyse et de prévision, Unesco, 16-19 setembro de 1998; ler Les Clés du XXIe siècle, op. cit. 6 Cf. os trabalhos de Ronald Inglehardt, Culture Shift in Advanced Industrial Society, ed. Princeton University Press, 1990. 7 Ler, de Roger Sue, Temps et ordre social, ed. PUF, Paris, 1994. 8 Ler, de Richard Sennett, Dialogues du XXIe siècle, 16-19 de setembro de 1998, ed. Unesco (texto publicado em Les Clés du XXIe siècle, op. cit). 9 Ler, de Roger Sue, Temps et ordre social, ed. PUF, Paris, 1994. 10 Ler, de Jérôme Bindé, “L’éthique du futur - Pourquoi faut-il retrouver le temps perdu? ” Futuribles, Paris, dezembro de 1997. 11 Sobre esse último ponto, ler, de Marcel Gauchet, Le Désenchantement du monde, ed. Gallimard, Paris, 1985.

*Versões preliminares deste artigo foram apresentadas sob a forma de exposições na 5ª Conferência da Agenda do Milênio, organizada pelo Conselho Internacional de Ciências Sociais e pela Unesco (Rio de Janeiro, 1999), bem como no Colégio Internacional de Túnis (abril de 2001).

Le Monde Diplomatique

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