terça-feira, 20 de outubro de 2009

Religião e política no Oriente Médio: uma leitura à luz da obra de Rousseau

Conflito entre judeus e palestinos se baseia na mistura entre o indivíduo político e o indivíduo religioso e na crença que cada um dos grupos possui a verdade revelada

Por Thomaz Kawauche

O conflito entre judeus e palestinos ocorre, principalmente, pela posse e direito de soberania sobre Jerusalém, e os territórios da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, onde fica o muro das lamentações, principal santuário judeu e também onde os palestinos querem estabelecer a capital de um futuro estado independente. As regiões têm significado religioso para os dois povos. Para Rousseau, origem de conflitos deste tipo estaria na recusa em admitir a verdade do outro
Os conflitos entre israelenses e palestinos que ocorrem hoje no chamado Oriente Médio poderiam nos levar ao seguinte questionamento acerca da relação entre política e religião: a disputa pelos territórios da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, bem como da parte leste da cidade de Jerusalém, é uma questão política ou religiosa? Em outros termos: os argumentos teológicos dos discursos das partes beligerantes são apenas fonte de motivação e legitimidade para as ações militares, ou eles expressam uma dimensão maior da vida humana que abarcaria, entre outras coisas, a Ética e a Política?

No primeiro caso, a Religião estaria subordinada à Política, de tal maneira que os líderes espirituais, tanto dos judeus quanto dos árabes, estariam simplesmente utilizando o discurso religioso como um instrumento ideológico para mobilização de seus exércitos; teríamos então que nos indagar acerca da legitimidade dessa manipulação. No segundo caso, a Política estaria subordinada à Religião, e, dessa forma, é a própria idéia de Política que seria posta em xeque: o problema do convívio entre os homens seria resolvido, não em termos de acordos estabelecidos pelos próprios homens, mas mediante o conhecimento de uma vontade divina, o que colocaria a arte do governo na dependência de uma revelação sobrenatural.


Ora, não é preciso ser um especialista no assunto para perceber que a questão, colocada dessa maneira, não apenas simplifica demasiadamente o problema, como também cria novas questões ainda mais embaraçosas. Afinal, não é tarefa das mais fáceis distinguir o que pertence à Religião e o que pertence à Política nas falas fervorosas dirigidas contra os “infiéis” acerca de um Estado de direitos, ou nas ações de entrega da própria vida como sacrifício à divindade que, para os órgãos internacionais, não representa outra coisa além de uma ameaça à segurança pública. Política e Religião mesclam-se de modo tão intenso que a fronteira entre os domínios de uma e de outra se mostra extremamente difusa, e não nos parece adequado tentar estabelecer qualquer distinção em termos tão rígidos.



Na obra prima de Rousseau, Do contrato social que fala do pacto de associação entre os indivíduos para formar a sociedade e o Estado, o filósofo menciona conflito na Antigüidade, que misturava a Política e a Religião, assim como ocorre entre judeus e palestinos nos dias atuais. Ele critica o fanatismo e a intolerância e aponta os malefícios da Religião na sociedade.
É exatamente por conta dessa dificuldade que os conflitos não podem ser explicados apenas como expressão do fanatismo religioso. Pois, assim, estaríamos pressupondo a possibilidade de um acordo político que passasse ao largo das questões religiosas, o que seria equivalente a desprezar todo o desenvolvimento histórico dos povos envolvidos, para os quais a própria idéia de nação se encontra profundamente arraigada nas tradições do judaísmo e do islamismo.

Da mesma forma, não poderíamos simplesmente rotular os seguidores dessas tradições como povos “primitivos” ou “atrasados” por seus costumes religiosos, em oposição aos povos “modernos” do mundo ocidental. Isso implicaria na aceitação da tese de que existe um progresso da cultura à medida que a moral se dessacraliza (ou se “seculariza”), o que, de modo algum é consenso entre os estudiosos do fenômeno religioso; além do mais, tal juízo seria uma retomada da conhecida distinção entre “antigos” e “modernos”, que sempre serviu mais para justificar preconceitos eurocêntricos do que para esclarecer de fato as diferenças entre formas distintas de pensamento. Basta nos lembrarmos da expressão francesa desse binômio que, nos séculos XVII e XVIII, se deu em termos da oposição entre “selvagens” e “civilizados”.

Um recuo ao passado

Por meio dessa primeira reflexão sobre a questão israelo-palestina é possível introduzir um filósofo que, entre outras coisas, dedicou muito tempo de sua vida a analisar o vínculo entre Religião e Política: Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Esse genebrino, cujas idéias políticas inspiraram os protagonistas da Revolução Francesa, é um caso exemplar na história da Filosofia para nos dar elementos de reflexão sobre as guerras “santas”, não apenas no que se refere às questões de seu tempo, mas também no que diz respeito ao problema do lugar da Religião na sociedade atual.


Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo suíço, grande influenciador do Iluminismo francês. Conseguiu criticar a revelação e, ao mesmo tempo, dizer acreditar nas verdades reveladas por Deus


Não podemos rotular os seguidores dessas tradições religiosas como “atrasados” em oposição aos “modernos” do mundo ocidental


Assim como diversos outros filósofos do século XVIII, Rousseau também criticava os efeitos negativos da Religião na sociedade, sobretudo o fanatismo e a intolerância. A opinião de nosso autor sobre o assunto fica clara em uma passagem bastante polêmica, extraída do Contrato social, que, por conta do caráter ofensivo ao cristianismo, valeu a Jean-Jacques a honra de ter sua obra queimada em praça pública pelas autoridades eclesiásticas de Genebra:

“Mas esta Religião [o cristianismo], não tendo nenhuma relação particular com o corpo político, deixa as leis unicamente com a força que tiram de si mesmas, sem acrescentar-lhes nenhuma outra; e, desse modo, fica sem efeito um dos grandes elos da sociedade particular. Mais ainda, longe de ligar os corações dos cidadãos ao Estado, desprende-os, como de todas as coisas da terra. Não conheço nada mais contrário ao espírito social.” (Contrato social, livro IV, cap. 8).

Basicamente, o que está em questão na passagem citada é a falta de envolvimento dos cristãos na Política. Para Rousseau, um verdadeiro cristão preocupa-se mais com a vida futura do que com a vida presente, e, por isso mesmo, acaba deixando de lado os problemas da sociedade. Daí dizer que os seguidores dessa Religião não têm compromisso com o corpo político e que seus corações são desprendidos das coisas terrenas.

Profissão de fé do vigário saboiano
“Apóstolo da verdade, que tendes para me dizer de que eu não continue sendo o juiz? O próprio Deus falou: escutai a sua revelação. É outra coisa. Deus falou! Eeis com certeza uma grande fala. a quem ele falou? Falou aos homens. Por que, então, nada ouvi? encarregou outros homens de te transmitirem sua mensagem. Entendo! Ssão homens que me vão dizer o que Deus disse. Preferiria ter ouvido o próprio Deus; não lhe teria custado muito e eu estaria protegido contra a sedução. Eele vos protege dela manifestando a missão de seus enviados. Como isso? Através de prodígios. E onde estão esses prodígios? Nos livros. quem fez esses livros? Homens. quem viu esses prodígios? Homens que os atestam. Qual! Sempre testemunhos humanos! homens que me relatam o que outros homens relataram! Quantos homens entre mim e Deus!” (J.-J. Rrousseau, Emílio, livro IV)


Massacre dos Inocentes, de Guido Reni (1611) Para Rousseau, só deve haver uma verdade revelada por Deus, mas os homens a deturpam e consideram suas interpretações as únicas verdadeiras, o que leva ao ódio e à intolerância
Para Rousseau, Jesus foi responsável pela separação entre o poder civil e o poder eclesiástico (isto é, ele distinguiu a Política da Religião, que no mundo antigo se confundiam); e, pelo fato de o cristianismo ser uma religião “inteiramente espiritual”, seus seguidores se preocupam apenas com o céu e se mostram profundamente indiferentes quanto às coisas da vida presente. Do ponto de vista da Política, seria como se os cristãos fossem cidadãos de uma pátria de outro mundo, e que, na pátria terrena, vivessem como estrangeiros, isto é, pessoas sem vínculos legais com o Estado. O versículo da Bíblia que ilustra bem essa atitude referida por Rousseau encontra-se nos Atos dos apóstolos, quando Pedro afirma: “Antes, importa obedecer a Deus do que aos homens.” (Atos, 5: 29).

Podemos então perceber que a indiferença política dos cristãos se origina em uma escolha: devemos obedecer às leis dos homens ou às leis de Deus? Ora, com relação às leis divinas, o que está em jogo é o destino de cada um na vida futura, e quaisquer que possam ser as penas e as recompensas oferecidas pelas leis humanas, nada se compara ao Inferno ou ao Paraíso. Daí se dizer que as leis civis perdem sua força em relação às leis de Deus, o que justificaria o severo juízo que encerra a passagem: “Não conheço nada mais contrário ao espírito social.”

Mas até aí, nada de mais. Afinal, esse tipo de crítica à Religião cristã podia ser encontrada com bastante freqüência em textos de Voltaire e do Barão d’Holbach, para citarmos apenas dois exemplos de pensadores contemporâneos de Rousseau. O curioso mesmo — e essa é a peculiaridade em relação aos demais filósofos iluministas — é notar que a crítica de Rousseau ao cristianismo não o impedia de se confessar cristão, o que à primeira vista pode parecer uma verdadeira contradição de seu pensamento. Para compreender melhor o duplo posicionamento de Rousseau, é preciso examinar um outro escrito, a Profissão de fé do vigário saboiano, opúsculo encontrado no livro IV do Emílio, seu tratado sobre educação.

A obediência à lei civil, que garante a solidez dos laços sociais do Eestado, torna-se menos importante do que a necessidade de obediência à lei divina

O objetivo da Profissão de fé é mostrar, por meio da idéia de religião natural, as condições de tolerância entre os homens, tendo-se em vista que as religiões históricas (cristianismo, judaísmo, islamismo) são intolerantes por princípio, promovendo apenas violência e ódio.

A religião natural é uma religião simples, constituída de poucos dogmas fundamentais: a existência de um deus inteligente, dotado de vontade e poder, que move o universo e ordena todas as coisas; a existência da alma imaterial que sobrevive à morte do corpo; a liberdade do homem, que pode ser utilizada tanto para o bem quanto para o mal.



Contudo (e é isso que importa notar), esses dogmas são estabelecidos, não como revelações ou doutrinas eclesiásticas, mas como verdades aceitáveis pela razão e pela consciência, ou seja, verdades não segundo um código religioso, mas segundo a natureza e, portanto, acessíveis a todos os homens sem necessidade de intermediários humanos, coisa que desagradava profundamente tanto aos teólogos católicos quanto aos protestantes, os quais defendiam, cada um à sua maneira, a intermediação de Cristo e da Igreja para que os homens tivessem acesso a Deus.

As múltiplas revelações

Para Rousseau, o problema das revelações é a falta de universalidade na comunicação entre o céu e a terra: pelo fato de Deus dar a poucos homens o privilégio de conhecerem sua vontade diretamente de sua boca, todos os demais ficam na dependência desses porta- vozes da divindade para se poderem conduzir de acordo com os preceitos do Ser supremo. Contudo, existem diversas religiões no mundo, cada uma delas com doutrinas próprias estabelecidas sob a alegação de expressarem a verdade revelada por Deus. E o detalhe é que essas doutrinas não apenas apresentam diferenças de uma religião para outra, como também quase sempre se contradizem mutuamente.



David Hume, filósofo escocês, é autor de História Natural da Religião. No livro, ele vê a religião natural como simples e baseada em dogmas que são verdades aceitáveis pela razão e não revelações, retirando de cena os intérpretes também criticados por Rousseau
E é exatamente nesse ponto que se encontra o problema: se a verdade é revelada por Deus a todos os homens, então ela deveria ser a mesma em todas as religiões. E ainda que a forma de expressão dessa verdade variasse, o conteúdo dos dogmas deveria ser o mesmo, de tal maneira que, a despeito das diferenças culturais, os pontos fundamentais das diversas religiões fossem compatíveis entre si, e não conflitantes. A diversidade das revelações é, pois, a prova cabal de que os homens não comunicam fielmente a suposta revelação original. Donde se justifica a afirmação do vigário: “Desde que os povos tiveram a idéia de fazer Deus falar, cada um o fez falar à sua maneira e fê-lo dizer o que quis. Se só tivessem ouvido o que Deus diz ao coração do homem, nunca teria havido mais do que uma religião na terra.”

Com isso, põe-se em xeque não apenas os intermediários da revelação, mas também a própria definição de “verdade”. Afinal, como explicar que aquilo que é “verdade” para uma seita pode não ser “verdade” para outra? Seria a verdade múltipla e não única? E, se cada um segue a sua própria verdade, como Deus pode ser justo ao julgar os homens de acordo com critérios particulares e não universais? Nessa mesma linha de raciocínio, Rousseau critica a falta de universalidade dos milagres como prova da revelação (para os cristãos, são os milagres que testificam a doutrina). Rousseau lembra que os milagres nunca ocorrem perante um número grande de pessoas, o que o leva a se perguntar se não seria muito mais fácil reconhecer os prodígios realizados em público do que meros relatos escritos de acontecimentos sobrenaturais supostamente testemunhados por apenas alguns. Em última instância, o problema continua sendo a intermediação dos homens, donde se compreende a exclamação do vigário: “Quantos homens entre mim e Deus!”.


Enfim, as passagens citadas, tanto do Emílio quanto do Contrato, parecem mais do que suficientes para considerarmos Rousseau um crítico do cristianismo. Tanto é assim que, logo após a publicação do Emílio, o arcebispo de Paris, Christophe de Beaumont, escreveu uma carta pastoral condenando o texto de Rousseau como blasfematório, ímpio e cheio de heresias.


Crítico ou defensor?



Pietro Perugino, representa Deus e os anjos. A revelação de Deus teria de ser igual a todos, o que, segundo Rousseau, inviabiliza a diversidade religiosa. O erro estaria na interpretação feita pelos homens
Contudo, é preciso observar que, nesse mesmo texto da Profissão de fé, após criticar duramente as religiões históricas, o vigário se coloca (surpreendentemente, à primeira vista) também na posição de um admirador da moral dos Evangelhos, ou seja, ele passa a falar como um cristão que acredita na revelação! O vigário afirma com todas as letras: “Confesso-te também que a majestade das Escrituras espanta-me, que a santidade do Evangelho fala ao meu coração. Vê os livros dos filósofos com toda a sua pompa: como são pequenos perto dos Evangelhos! É possível que um livro ao mesmo tempo tão sublime e tão simples seja obra dos homens?”.

Como entender que um crítico das revelações em geral possa mudar abruptamente de posição em seu discurso, passando a elogiar uma revelação particular, e, o que é mais intrigante, justamente a revelação cristã que Rousseau tanto critica?

Antes de tudo, devemos observar que essa mudança de posição — de crítico para defensor da Religião — não representa uma contradição no discurso, uma vez que não se trata na Profissão de fé de defender um ou outro partido, nem tampouco de negar a crítica racional aos mediadores da revelação feita nos parágrafos anteriores, e sim de fazer a contraposição entre dois pontos de vista: o de crítico das religiões e o de admirador sincero dos Evangelhos. É precisamente essa estratégia engenhosa de abordagem do problema que torna o texto de Rousseau notável: partindo do fato de que cada um defende sua própria verdade, o vigário saboiano assume duas posições contrárias — num primeiro momento, a posição de crítico das religiões e, logo em seguida, a posição de religioso.

E, por meio dessa dupla representação, a personagem, em tom dramático, procura mostrar que, comparadas as verdades de ambos os lados, não há como se decidir por um ou por outro partido, sendo que, de modo geral, o melhor que cada seita tem a fazer é ser tolerante em relação às verdades de todas as outras. É o que se verifica na seguinte afirmação do vigário: “Quanto à revelação, se eu tivesse melhor raciocínio ou melhor instrução, talvez percebesse a sua verdade, sua utilidade para quem tem a felicidade de reconhecê-la; mas, se vejo a seu favor provas que não posso combater, vejo também contra ela objeções que não consigo resolver. Há tantas razões sólidas contra e a favor que, não sabendo o que decidir, não a admito, nem a rejeito; rejeito apenas a obrigação de reconhecê-la [...].”

Para Rrousseau, o importante é que cada um se responsabilize pela própria crença porque a escolha é sempre arbitrária e pessoal


Devemos notar que essa estratégia retórica visa à afirmação de um princípio de tolerância religiosa. Mas não se trata de uma afirmação qualquer, como se fosse alguém assumindo a posição de uma verdade (dentre tantas possíveis); trata-se, isto sim, de evidenciar em termos lógicos a necessidade de cada partido assumir uma postura tolerante em relação aos demais, independentemente de qual seja a verdade absoluta.



Gandhi se assemelha a Rousseau ao afirmar haver uma única verdade religiosa: “Creio que se pudéssemos todos ler as escrituras das diferentes fés, sob o ponto de vista de seus respectivos seguidores, haveríamos de descobrir que, no fundo, foram todas a mesma coisa e sempre úteis umas às outras.”
O vigário não defende simplesmente que é preciso ser tolerante, isto é, ele não impõe a tolerância como um mandamento, pois, se assim o fizesse, sua voz se perderia em meio às muitas vozes dissonantes dos partidos, que se excluem mutuamente (ele seria o defensor do partido da tolerância — haveria certamente os partidários da intolerância, que se oporiam ao vigário); em vez disso, o que Rousseau faz é construir, por meio de uma análise comparativa de duas posições contrárias, uma espécie de cena dramática (de uma luta equilibrada e sem vencedores), na qual se evidencia a impossibilidade lógica de escolher qualquer um dos lados.



Cena de um milagre, retratado por Alonso Cano Rousseau critica os milagres por serem testemunhados por poucos. Intermediários entre Deus e os homens sempre aparecem como fonte de erro
Mas o mais importante é notar que o vigário constrói essa cena sem precisar emitir juízos de valor, isto é, sem rotular um dos partidos como “falso” e o outro como “verdadeiro”. Não deixa de ser significativo o que Rousseau escreve em uma nota do texto: “Tão logo cada um pretenda ser o único a ter razão, para escolher entre tantos partidos, será preciso escutar a todos, ou seremos injustos.” É, portanto, a estratégia de comparar os partidos de modo eqüitativo, apresentando argumentos suficientemente fortes para ambos os lados, que confere à análise do vigário um aspecto de neutralidade: pois, de certa forma, o caráter lógico da comparação anula os preconceitos, não permitindo que nem mesmo o próprio vigário imponha seu ponto de vista dogmaticamente, tornando-se ele também um intolerante.

Afirma o vigário: “Afora isso, permaneço quanto a esse ponto numa dúvida respeitosa. Não tenho a presunção de acreditar-me infalível; outros homens puderam decidir o que me parece indeciso; raciocino para mim e não para eles; não os reprovo nem os imito, seu juízo pode ser melhor do que o meu, mas não é culpa minha se não é o meu.”

Notemos que essas palavras expressam um estado de incerteza ou de falta de conhecimento para a tomada de uma decisão absoluta. E, nessa condição, o vigário assume uma atitude de reserva, permanecendo num estado de “dúvida respeitosa”, que implica no reconhecimento dos limites da própria razão. Para o vigário, o importante é que cada um se responsabilize pela própria crença, uma vez que, em última instância, qualquer que seja o partido adotado, a escolha é sempre arbitrária e pessoal, não podendo ser generalizada como regra a ser obedecida por todos.

Para Rrousseau, de modo geral, o melhor que cada seita tem a fazer é ser tolerante em relação às verdades de todas as outras

Jerusalém na história religiosa de judeus e de muçulmanos
O judaísmo e o islamismo têm em comum o fato de serem religiões monoteístas, cujos fundadores receberam um sinal de Deus para abandonar o politeísmo (entre os judeus, Abraão e, entre os muçulmanos, Maomé), e de considerarem Jerusalém um território sagrado. A ligação com a cidade vem da história das duas religiões.Para os islâmicos, existem três cidades sagradas: Meca, Medina e Jerusalém. Eessa última é considerada o local onde o profeta Maomé subiu ao céu em direção ao paraíso para encontrar com Moisés e Jesus.

Para os judeus, Abraão, em torno de 1.800 a.C, recebeu um sinal de Deus para viver em Canaã (atual Palestina). É de sua descendência que nasce Jacó, que tem o nome mudado para Israel.

Os doze filhos de Jacó formaram as doze tribos do povo judeu. judeus migram para o Egito, onde são escravizados por 400 anos, libertam-se e fogem. A fuga é liderada por Moisés, que recebe as tábuas dos Dez Mandamentos no monte Ssinai. Depois de peregrinarem por 40 anos no deserto, recebem de Deus um sinal para voltar à terra prometida (Canaã).

Jerusalém se torna um centro religioso no governo do rei Davi. Depois disso, o povo judeu passa por duas diásporas, devido a invasões de seu território, e se dispersa pelo mundo. Eem 1948, conseguem criar o estado de Israel, onde buscam retomar a antiga unidade do povo judeu e viver na terra prometida por Deus.



Massacre de São Bartolomeu, por François Dubois. Reis franceses, católicos, realizaram uma matança de protestantes (huguenotes) na França, em 1572. O massacre da noite de São Bartolomeu foi um episódio marcante. A guerra de religiões, para Rousseau, ocorre porque cada lado só admite a sua verdade
Poderíamos pensar que essa apologia da moral cristã que se encontra na Profissão de fé seja apenas a posição de uma personagem, o vigário saboiano, e não a de Rousseau. Mas a resposta dada à carta condenatória do arcebispo de Paris não deixa dúvida de que a profissão de fé do vigário é a profissão de fé de Rousseau: “Sou cristão, Senhor Arcebispo, e sinceramente cristão, segundo a doutrina do Evangelho. Sou cristão não como discípulo dos padres, mas como discípulo de Jesus Cristo.” Jean-Jacques Rousseau, portanto, não precisa deixar de ser cristão para criticar radicalmente as religiões históricas — dentre as quais, o próprio cristianismo — e, baseado nessa crítica, pregar a tolerância religiosa.

De volta ao presente

Mas o quanto essa leitura da obra de Rousseau nos ajuda a compreender os conflitos do Oriente Médio? Com relação à questão do fanatismo e da intolerância, Rousseau mostra que não pode haver conciliação enquanto cada um dos partidos defender sua própria “verdade” e acusar o partido contrário de “mentira” e “erro”; mostra também que o indivíduo religioso e o indivíduo político se confundem, e que não é possível buscar um acordo de paz sem considerar o forte vínculo que amarra a Religião e a Política, haja vista a impossibilidade de se distinguir, na idéia mesma de “verdade”, o que vem da suposta revelação divina daquilo que os próprios homens acrescentaram segundo suas opiniões e seus preconceitos.

Rousseau era, em muitos aspectos, pessimista quanto à salvação do gênero humano: ao longo de toda a sua vasta obra podemos perceber um profundo ceticismo no que se refere a qualquer tipo de futuro feliz da humanidade. Rousseau acredita, não sem tristeza, que o máximo a se fazer em termos de Política consiste em retardar o fim inevitável, uma vez que a História, para ele, é sempre a história da decadência e da corrupção das instituições. No entanto, é possível extrair uma lição útil do discurso do vigário saboiano em sua Profissão de fé: que não há como escapar dos efeitos nocivos da intolerância enquanto não houver o reconhecimento de que, mesmo em meio às verdades supostamente reveladas pela divindade, existem opiniões humanas misturadas, de tal modo que a política, indissociável da Religião tanto para israelenses como para palestinos, continuará a padecer dos males decorrentes dessa absurda convicção de que só os outros podem se enganar.

Referêcias
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Tradução de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Abril, 1973 (Col. “Os Pensadores”).
_____________. Emílio ou Da educação. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
_____________. Carta a Christophe de Beaumont. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2005.
_____________. Cartas escritas da montanha.Tradução de Maria Constança Peres Pissarra e Maria das Graças de Souza. São Paulo: Ed. Unesp / Educ, 2006.

Revista Filosofia

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