sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Platão e a medicina


Rodrigo Siqueira-BatistaI; Fermin Roland SchrammII

IProfessor de clínica médica e filosofia da Fundação Educacional Serra dos Órgãos (FESO) Av. Alberto Torres, 111, Alto 25964-000 Teresópolis — RJ Brasil anaximandro@hotmail.com
IIPesquisador do Departamento de Ciências Sociais, Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) Rua Leopoldo Bulhões, 1480, sala 914 21041-210 Rio de Janeiro — RJ
roland@ensp.fiocruz.br


Introdução

As relações entre filosofia e medicina na Grécia Antiga são muito íntimas e fecundas, remontando aos séculos VI ao IV antes de Cristo (Cornford, 1989, pp. 3-16), quando ambos os saberes se influenciaram mutuamente, em uma autêntica via dupla. Nesse contexto, podem ser encontrados vários elementos do pensamento pré-socrático (séculos VI e V a.C.) no repertório das doutrinas médicas hipocráticas, como por exemplo o conceito de natureza 1 dos pensadores originários, cujas implicações foram abrangentes e radicais nas concepções de uma 'natureza do homem' — (Siqueira-Batista, 2003b, pp. 145-6). Por outro lado, a medicina também imprimiu sua marca profunda no pensamento filosófico, ganhando este fato grande amplitude na obra de Platão, cujas reflexões tocaram muitos aspectos do fazer médico grego no período clássico.

Do erudito ateniense provém o testemunho antigo mais famoso sobre o Hipócrates histórico — no diálogo Fedro (Platão, 1950, passo 270c-d) —, em excerto que contém uma explanação sobre o método empregado pelos médicos da Escola de Cós (Frias, 2001, p. 87-110). Ademais, em várias obras platônicas há referências à constituição humana — uma questão que interessava simultaneamente a médicos e filósofos —, como em A República e no Timeu, diálogos nos quais são apresentadas idéias sobre o corpo e a alma do homem, enfatizando seus estados de saúde, doença e a própria morte e seu processo (idem, 2002, p. 84). São também dignas de menção as preocupações terapêuticas em relação ao corpo e à alma, como as "belas conversas" citadas no Cármides (Platão, 1988, passo 157a), a educação mencionada como curativa e reparadora no Timeu (Frias, 2002, p. 127) e a crítica aos métodos de tratamento empregados por Heródico de Mégara no Livro III de A República (Siqueira-Batista et al., 2004).

Nesse aspecto, um breve sobrevôo sobre as 'preocupações médicas' da filosofia platônica poderia contribuir para as reflexões sobre os problemas inerentes às relações entre medicina e filosofia. Este caminho é precisamente o escopo do presente artigo.



Platão: vida, obra e questões filosóficas

Platão é, indubitavelmente, um dos filósofos mais importantes da história do Ocidente. Nascido na pólis de Atenas em 427 a.C., Platão era filho de Aristo e Perictona, sendo descendente do grande reformador Sólon por parte de mãe e do rei Codro, fundador da cidade, pelo lado paterno (Chauí, 2002, p. 212). O filósofo foi um escritor prolífico e de grande elegância; sua obra se distribui em diálogos — um 'estilo' de expressão filosófica — nos quais se articula seu pensamento conhecido em textos de grande beleza.2 Sem embargo, em uma de suas obras, a Carta sétima, Platão comenta que seu verdadeiro pensamento — ensinado dentro dos muros da Academia — não se encontrava presente em seus escritos, os quais trariam informações de 'menor' relevância em relação à totalidade de sua obra (idem, ibidem, p. 219).

Desde o fim do século XVIII admite-se que todo o maravilhoso conjunto da obra platônica possui uma intrínseca perspectiva evolutiva de sua filosofia, sobretudo após os trabalhos de Schleiermacher (Jaeger, op. cit., pp. 582-4). A partir de então uma série de estudos foi desenvolvida neste âmbito, como é o caso da estilometria de L. Campbell, na qual características de estilo foram identificadas ao se compararem as Leis com outros diálogos da obra platônica. Foram então reunidos os textos do 'fim da vida' de Platão, constituindo os chamados diálogos da velhice. Assim, pois, que uma das formas para se organizar a obra do ateniense — inspirada na estilometria — distingue os diálogos da juventude — ainda sobre influência de Sócrates — daqueles da maturidade e da velhice, conforme apresentado a seguir (em ordem alfabética dentro de cada categoria):

Juventude: Apologia de Sócrates — defesa de Sócrates (em relação ao seu julgamento no tribunal de Atenas); Críton — elogio à moral socrática; Cármides — sobre a prudência; Crátilo — sobre a lin-guagem; Eutidemo — contra a erística; Eutifron — sobre a piedade; Górgias — sobre a retórica como falácia; Hípias menor — sobre a falsidade; Hípias maior — sobre a beleza; Ion — sobre a Ilíada ou os poetas; Laques — sobre a coragem; Lisis — sobre a amizade; Menexeno — sátira contra a retórica; Mênon — sobre a virtude e o saber (este diálogo é considerado o primeiro a abordar a doutrina da anamnesis, ou seja, da reminiscência); Protágoras — sobre o ensino da virtude.

Maturidade: Banquete — sobre o amor; Fédon — sobre a imortalidade da alma; Fedro — sobre a linguagem e a retórica; A República — sobre a justiça (neste diálogo Platão constrói sua idéia de pólis perfeita); Parmênides — sobre o ser; Teeteto — sobre o conhecimento.

Velhice: Crítias — considerada uma obra inacabada, delineia um estado agrário como ideal (figurado como Atlântida); Filebo — sobre o prazer; Leis — sobre o ideal político; Político — sobre a monarquia; Sofista — contra os sofistas; Timeu — sobre a natureza (física e cosmologia platônicas).

São também consideradas como pertencentes ao corpus platônico três cartas: a Terceira, a Sétima (a mais conhecida) e a Oitava. Diálogos como Alcibíades I e II, Anterestai, Clítofon, Hiparco, O filósofo, Mino e Teages, bem como outras dez cartas que permanecem como obras de autenticidade duvidosa.

A filosofia platônica, em seu cerne, emerge de um esforço do ateniense para compor duas grandes influências por ele experimentadas: a socrática (sobretudo na primeira fase de sua obra; veja-se diálogos como Apologia, Críton, Eutífron, Laques, Cármides, Lísis, Protágoras e Górgias) e a pitagórica, presente desde os 'primórdios' da maturidade (textos como A República, Mênon, O Banquete, Fédon e Fedro. Pode-se dizer que o conceito de alma apresenta um papel central no pensamento de Platão: ela é a causa geral da vida (Platão, 1956, Notice, p. 39) e o centro da moralidade (Cornford, 2001, p. 54), além de nela estar centrada toda a possibilidade de conhecimento (Platão, 1977, passo 30c), tal como o apresentado em vários diálogos (Cornford, 1989, pp. 71-99). Ademais, são as questões relativas à alma humana — e a sua relação com o corpo — que se tornam capitais nos aspectos da filosofia platônica referentes à medicina. Assim ocorre, pois, no Timeu, texto no qual são apresentados aspectos da constituição da alma e do corpo humanos, ou seja, em que é investigada a natureza do homem em sua íntima ligação com a totalidade cósmica. Assim, para H. Bittar (1977, p10):

...o Timeu nos fala da ordem do mundo, mostrando-nos que os princípios dessa ordem regem também o homem. Toda a organização da pólis descrita na República, que vai ser agora colocada em ação, constituindo tal projeto o objeto geral da trilogia, foi fundada na natureza do homem. Mas esta, por sua vez, funda-se na própria natureza do Universo, pelo que se impõe começar pela origem do Universo, investigando-se as causas de sua harmonia e passando, daí, para a origem do homem e a harmonia que deve reger sua alma.

O diálogo se inicia com uma referência ao mito de Atlântida e, em seguida, passa à explanação sobre a origem do cosmo — o qual teria sido fabricado por um demiurgo, por meio da contemplação de Idéias Eternas —, sendo perscrutadas suas leis e sua organicidade.3 À semelhança do homem, o cosmo é vivo — concepção presente também no Filebo (Platão, 1941, passo 29a-30a) — e racional (Platão, 1977, passo 30c), sendo constituído por um corpo e uma alma. Todavia, uma importante distinção a ser feita refere-se à inexorabilidade da ligação do cosmo à sua alma — ambos se mantêm unidos de forma perene —, em contraposição ao humano, no qual a coalizão corpo-alma é efêmera, ocorrendo sua dissolução quando sobrevém a morte.

A alma humana foi construída com as 'sobras' utilizadas na preparação da alma do mundo, sendo composta por duas porções: uma imortal e outra mortal. A primeira é a sede da vida, sendo aquilo que anima e mantém o corpo — assim como a alma do mundo é a mantenedora do cosmo —, localizando-se na cabeça (Frias, 2002, p. 103). A alma mortal é repleta de paixões terríveis e fatais (Platão, 1956, passo 69c-d), sendo subdivida em "irascível" — situada no tórax, relacionada à coragem mas também à cólera — e 'concupiscente' — alocada na região umbilical, sendo relativa aos apetites, desejos, prazeres e dor. A alma humana é assim tripartida: racional (imortal), irascível e apetitiva (as duas últimas mortais).

À alma imortal pertence à possibilidade de conhecer, de acordo com o que é discutido no Mênon. Aquilo que é o real — as Formas ou Idéias — é o verdadeiro objeto do conhecimento, apreensível pela alma imortal, conforme explicitado em A República.4 As Formas eternas — ingênitas, indestrutíveis, intangíveis e paradigmáticas — compõem o mundo genuinamente real e transcendente que, se contemplado por uma alma capaz, pode proporcionar um conhecimento verdadeiro e duradouro. É com essa articulação que Platão funda uma genuína cognoscibilidade. A alma imortal conhece o real pela contemplação das Formas eternas, antes mesmo do nascimento (ou encarnação) para esta vida, ou seja, ele é a priori, como está apontado no Fédon (Platão, 1979a, passo 100a-b).

Ora, se o conhecimento é obtido pela contemplação das Formas eternas, existe a possibilidade de que ele brote na intimidade do homem, desde que este se lembre do que viu, ou seja, desde que rememore o passado. A rememoração é uma instância modelar da narrativa mítica, tendo participação decisiva na cultura helênica (Siqueira-Batista, 2003a; Vernant, 1973, pp. 305-7). No caso dos aedos gregos, a recordação está relacionada à participação das Musas . Sem embargo, no pensamento de Platão, a perspectiva é deslocada de uma instância extrínseca — a revelação das musas — para a intimidade daquele que conhece, ou seja, consiste em um atributo da alma imortal. Uma passagem exemplar acerca desta questão é encontrada no Mênon, conforme o excerto a seguir:

Sendo então a alma imortal e tendo nascido muitas vezes, e tendo visto tanto as coisas [que estão] aqui quanto as [que estão] no Hades, enfim, todas as coisas, não há o que não tenha aprendido; de modo que não é nada de admirar, tanto com respeito à virtude quanto ao demais, ser possível a ela rememorar aquelas coisas justamente que já antes conhecia (Platão, 2001, passo 81c).

Neste diálogo, Sócrates procura convencer Mênon de que realmente o conhecimento já se encontra na alma imortal. Para isso, utiliza um dos escravos de seu interlocutor, submetendo-o a um interrogatório sobre um problema geométrico.5 O escravo, após chegar a algumas conclusões equivocadas, é novamente argüido, até que finalmente alcança a solução do problema. Com isso é demonstrado que, a despeito de não ter sido submetido a um aprendizado formal, um homem — no caso um escravo — pode ser capaz de resolver problemas complexos, desde que seja 'orientado' por um repertório correto de indagações. Essas perguntas permitem que a resposta correta seja 'parida', em concordância à analogia estabelecida no Teeteto entre o método socrático e a atividade de uma 'parteira' — 'daí maiêutica'. De onde viria tal conhecimento? Da própria alma,6 seria a resposta platônica, sendo evocado a partir da

No Ménon a teoria da Anamnesis foi apresentada para fugir ao dilema sofístico: ou conhecemos uma coisa, e então não há necessidade de a procurar; ou não a conhecemos, e então não podemos saber o que procuramos. O dilema pressupunha uma única alternativa, ou o conhecimento completo ou a ignorância total. A Anamnesis fornece graus de conhecimento entre estes dois extremos (Cornford, 1989, p. 82).

Além da possibilidade de conhecimento, a contemplação das Idéias por parte da alma platônica encerra um genuíno conteúdo moral. Sócrates pontuava que se os homens fossem libertados dos preconceitos e das falsas convicções poderiam vislumbrar a verdadeira finalidade da vida. Assim, pois, aquele que atingisse o Bem não poderia deixar de fazê-lo. Exatamente esta apreensão dependia da contemplação das Idéias eternas pela alma imortal, propiciando um incontornável esteio moral, como analisa F. M. Cornford (idem, ibidem, p. 74):

... tratava-se antes de uma Teoria das Idéias para regular a conduta moral. ... Constituem, sim, um mundo comum a todos nós, mas que é independente de todos nós. São [as Idéias], afinal, os objetos absolutos do conhecimento socrático de que toda a virtude depende (grifo nosso).

A alma é, pois, a instância imortal e mais importante do ser humano, representando a sede do verdadeiro conhecimento e da conduta moral — isso atrelado à contemplação das Idéias perfeitas (Cherniss, 1990, pp. 109-10; Frias, 2001, p. 108).

Para Platão, uma alma saudável é aquela que se compraz na justiça (Platão, 1987, passo 444d), tal como discutido em A República. Sem embargo, há circunstâncias nas quais a alma pode se tornar enferma — por influência de distúrbios do corpo, afinal a alma imortal é o que o homem tem de divino; assim sendo, não seria factível que na própria alma imortal tivessem origem suas moléstias —, como se apresenta a seguir.



A medicina: relações e digressões corpo-alma

A filosofia platônica demarca uma nítida preeminência da alma sobre o corpo. Entretanto, este não foi negligenciado pelo ateniense — por exemplo, a ginástica era uma das atividades importantes da Academia —, merecendo destaque em alguns dos diálogos, marcadamente no Timeu. Corpo e alma — assim como tudo que existe no cosmo — são constituídos por quatro elementos: fogo, água, ar e terra. Estes, em última instância, podem ser decompostos em figuras geométricas: o fogo em tetraedros, a terra em cubos hexagonais, o ar em octaedros e a água em icosaedros. Estas formas podem ser ainda reduzidas a triângulos retângulos isósceles e retângulos escalenos. Pelo rearranjo dos triângulos seriam compreendidas as transformações dos corpos, com grandes implicações sobre sua durabilidade e desagregação.

No entanto, as relações entre corpo e alma não se limitam à identidade constitutiva — triângulos. Platão explica no Timeu o funcionamento de diferentes órgãos — como o coração, o fígado, o baço e os intestinos —, os quais têm suas fisiologias atreladas à função da alma — ou seja, cada segmento anatômico refere-se à finalidade da alma que lhe corresponde —, talhando aquilo que I. M. Frias (2002, p; 107) chama de "organicismo psicológico".7 Ademais, o filósofo esclarece que a ligação da alma com o corpo é feita pela medula , como o estabelecido por L. Brisson (1988, p. 429): "Na medula cervical está fixada a espécie imortal da alma humana e na medula espinhal a espécie mortal e, por conseqüência, suas duas subespécies."

Com base nestes aspectos anatomo-fisiológicos, Platão constrói sua fisiopatologia, distinguindo as doenças do corpo e da alma. As enfermidades somáticas podem ocorrer por (1) desequilíbrio dos seus elementos constitutivos — fogo, terra, ar e água; (2) por corrupção dos tecidos do corpo — a carne, os nervos, o sangue, os ossos e a medula; e (3) pelo ar e por humores — bile e flegma. É digno de nota que a teoria humoral empregada por Platão no Timeu tem inspiração na doutrina hipocrática (Siqueira-Batista, 2003a). Há contudo importante diferença entre uma e outra concepções. No tratado Da natureza do homem são descritos quatro humores constitutivos de todos os indivíduos — sangue, flegma, bile amarela e bile negra —, que, mantidos em equilíbrio, preservam o estado de saúde. Para o filósofo tais humores surgem a partir da decomposição dos tecidos, o que os torna nocivos, implicando portanto a necessidade de que sejam eliminados para a perpetuação da sanidade.

As doenças da alma podem ser apreendidas como genuínas doenças morais (Frias, 2001, pp. 35-7), sendo genericamente chamadas de 'demência', situações nas quais há um bloqueio na ação da alma racional, a qual não consegue mais exercer domínio sobre a alma mortal. A demência pode ser de dois tipos: ignorância e loucura, as quais têm diferentes causas, conforme o apresentado no Timeu:

Por conseguinte, toda afecção que provoca em alguém uma dessas perturbações deve ser chamada doença, sendo forçoso reconhecer que os prazeres excessivos e as dores fortes são as mais graves doenças da alma. ... Contudo, quando a semente se acumula em excesso na medula, a ponto de transbordar, à maneira de uma árvore carregada de frutos, então seus desejos e suas conseqüências lhes ensejam, em cada ocasião, não apenas prazeres como também sofrimentos em grande cópia, e muito embora se comporte como um louco quase toda a vida, por causa das dores e dos prazeres excessivos, vindo a adoecer e embotar-se-lhe a alma por causa do corpo, ninguém o considera doente, mas vicioso por própria deliberação (Platão, 1977, passo 73b; grifo nosso).

Aqui sobressaem alguns elementos da maior importância. Os excessos são deletérios à saúde da alma, promovendo a loucura — como na intemperança sexual, secundária ao aumento da produção de sêmen na medula (Platão, 1956, passo 86b-e) —, doença passível de tratamento, mas não de censura para aquele que sofre. Esta idéia está de acordo com o conceito, defendido por Sócrates em vários diálogos platônicos, de que ninguém é mau deliberadamente, por força de sua própria vontade. Assim, pois, no Sofista, Platão (1979b, passo 230a) afirma que: "... toda ignorância é involuntária, e aquele que se acredita sábio se recusará sempre a aprender qualquer coisa de que se imagine experto."

De modo similar, se lê nas Leis: "... ninguém é intemperante por deliberação própria, pois é sempre por ignorância ou por não saber dominar-se ou por ambas as causas ao mesmo tempo, que a grande maioria dos homens não pratica a temperança" (Platão, 1980, passo 734b).

Isso abre a perspectiva para que uma conduta moral tenha como substrato um distúrbio fisiológico (Joubaud, 1991, p. 183). Uma outra origem para a loucura reside na produção de humores deletérios — bile e flegma — secundários à decomposição do corpo, os quais mesclam seus vapores aos movimentos da alma, produzindo tristeza, audácia, covardia e esquecimento, entre outros (Platão, 1977, passo 86e-87a).

A ignorância tem sua origem em dois aspectos — má constituição corporal e educação ruim —, os quais poderiam ser vistos na medicina contemporânea como caráter genotípico (constitutivo) e participação ambiental. Assim, homens somaticamente defeituosos e expostos a uma educação imprópria são propensos à ignorância; se, no entanto, o processo educativo é adequado, é possível que tais homens superem sua má constituição, tornando-se justos (Frias, 2002, p. 127). Nesse sentido, o homem é também um produto da sociedade na qual vive, de tal modo que uma enfermidade social se torna capaz de promover o adoecimento individual (Brisson, op. cit., p. 454).

Há de se mencionar, em relação à ignorância, a possibilidade de que esta ocorra por uma "queda da alma no corpo" (Platão, 1977, passo 43b). Esta situação decorre de problemas ocasionados na alma à época do nascimento, uma vez que, ao 'cair no corpo', a alma passa por um processo anárquico, que paulatinamente é substituído pela harmonia de suas revoluções. Distúrbios desses primevos momentos geram alterações nos círculos da alma — bem como nas revoluções do Mesmo e do Outro —, os quais se manifestam clinicamente por troca de nomes de alguns objetos e abalos corpóreos.

Jacques Pigeaud (1981, p. 47) traz como elementos importantes para a compreensão da 'doença da alma' platônica, os seguintes aspectos: (1) as enfermidades da alma têm origem somática; (2) a ignorância é também de origem orgânica; (3) a causa física da loucura já era conhecida dos médicos hipocráticos antes mesmo de Platão; (4) medicina e moral devem ser pressupostos uníssonos para o tratamento do homem, em uma medicina da relação corpo-alma. Veja-se o alcance da terapêutica no pensamento platônico.



A terapêutica e seus limites

Platão se preocupou com o tratamento das mais diferentes moléstias do homem. Neste aspecto, o Timeu traz informações sobre vários métodos de tratamento empregados na Grécia do século IV a.C., explicitando para quais doenças eles devem ser indicados. Sob uma perspectiva mais ampla, a terapêutica platônica funda-se no princípio de proporção, a exata medida nas relações entre corpo e alma. O importante é a perpetuação de uma harmonia entre as partes que compõem este binômio. Uma vez mais, o que está em jogo para o restabelecimento da saúde é a harmonia do todo — ou seja, entre as porções do corpo e da alma. Deste modo, no Cármides e nas Leis, o ateniense critica a postura dos médicos hipocráticos ao priorizar o corpo em detrimento da alma (Coolidge Jr., 1993, pp. 23-6). Ou seja, é questionada a conduta de se tratar apenas a 'parte' — o corpo. Platão, ao contrário, ressalta a importância de se buscar a compreensão do todo:

... como talvez já tenhas ouvido, os bons médicos, quando alguém os consulta e se queixa da vista, respondem, naturalmente, que não é possível cuidar dos olhos isoladamente, mas que é necessário tratar simultaneamente da cabeça, se se quiser passar bem os olhos. De igual modo, julgar, enfim, que a cabeça se cura em si mesma, separadamente de todo o corpo, é uma grande insensatez. Partindo deste princípio, debruçando-se sobre todo o corpo, as suas prescrições procuram, através do todo, tratar e curar a parte (Platão, 1988, passo 156b-c).

As prescrições arroladas para o tratamento das enfermidades são as mais diversas: ginástica, prática da música, dietas, estudo da astronomia e filosofia, sobre a qual há também importante referência no Cármides: a utilização de "belas conversas" (Platão, 1988, passo 157a) é capaz de engendrar na alma a temperança, a prudência e a sabedoria (Frias, 2002, p. 103). As palavras são (phármakon), no duplo sentido que o termo encerra: 'veneno' e 'remédio'. Nas mãos do sofista são um tóxico mortal; mas quando usadas pelo filósofo, podem constituir um profícuo bálsamo terapêutico — como o estabelecido no passo 270b do Fedro.

É exatamente nesse sentido que Platão qualifica a filosofia como uma genuína medicina da alma, havendo múltiplas referências à terapia anímica nos diálogos platônicos. De acordo com o filósofo, em A República (Platão, 1987, passo 444d), uma alma saudável é aquela que se compraz na justiça, possuindo equilíbrio. A enfermidade da alma é comparável à injustiça; deste modo, a medicina estaria para o corpo assim como a justiça estaria para a alma (Platão, 1992, passo 464b-c), no sentido que aquela adquire de therapeía para a alma. Há um nítido caráter ético (Gomperz, 1969, p. 610) e político nesta formulação, uma vez que toda a cosmogonia platônica (no Timeu) visa, em última análise, a deslindar a 'harmonia' intrínseca ao cosmo, que é da mesma ordem da harmonia que rege a alma humana e que deverá fundar a ideal. Assim, restabelecer a saúde da alma tem uma finalidade ética primaz, o que engendra toda a discussão sobre a excelsa (Cambiano, 1981) que o filósofo almejava (Cornford, 1937, p. 6). Tratar a alma é promover a sua reordenação e o retorno de sua harmonia — restabelecendo a justiça —, tal qual apontado no Górgias (Platão, 1992, passo 504d-e):

... fala às almas dos seus ouvintes em todas as circunstâncias. E, se dá ou tira aos cidadãos alguma coisa, é sempre com a intenção de fazer nascer a justiça na sua alma, de expulsar dela a injustiça, de implantar nela a moderação e dela afastar a intemperança.

Com base nessas premissas, o escopo da atividade filosófica seria manter a saúde da alma, o que é mister para que a atinja seu máximo grau de excelência.

É interessante notar que o alcance curativo da medicina é, para Platão, intimamente relacionado às 'causas' e à história natural das enfermidades, bem como à constituição daquele que adoece. Em relação a esses aspectos tem importância capital o repertório de triângulos que compoem a intimidade do corpo humano, consoante as discussões presentes no Timeu. Cada pessoa ao nascer detém uma quantidade e arranjo de seus triângulos, os quais facultam um tempo de vida 'esperado' e que não tem como ser prorrogado. Assim também são as doenças: elas têm um curso próprio — uma 'história natural' —, segundo o qual o tempo de sua duração e o desenlace encontram-se preestabelecidos. De acordo com as palavras do próprio filósofo (Platão, 1977, passo 89b-c):

De regra, a constituição das doenças apresenta alguma semelhança com a dos seres vivos, pois a composição destas condiciona uma duração regulada para a espécie em geral, nascendo cada pessoa com o tempo de vida fixado pelo destino, exceção feita para os acidentes inevitáveis de origem externa, pois desde o nascimento os triângulos de qualquer ser vivo se conglutinam de maneira que possam resistir até um determinado limite, além do qual ninguém consegue prolongar a vida. O mesmo se passa com a constituição das doenças.

Há um determinismo inerente à constituição humana e ao desenrolar da moléstia, o qual torna limitados os tratamentos prescritos. Na continuação do mesmo passo do Timeu, Platão critica o uso de medicamentos para a contenção de doenças leves — as quais devem ser deixadas livres para seguir seu próprio curso —, enfatizando que os fármacos devem ser empregados apenas nos casos "mais graves", ou seja, naqueles em que há "grande perigo" para o doente (Platão, 1977, passo 89b-d). As moléstias não devem, assim, ser irritadas com o uso de remédios, o que traz mais prejuízos que benefícios para aquele que sofre. Ainda mais: se a moléstia for incurável — ou seja, mortal (exceção feita às condições traumáticas) —, não deve ser prolongada a vida 'artificialmente' por meio de modalidades terapêuticas — aqui não restritas aos fármacos, mas também às práticas como a dieta e a ginástica —, de acordo com o que está exposto em A República (Platão, 1987, passo 406a-b):

— ... Heródico, que era mestre de ginástica, tornou-se enfermeiro, e, misturando o exercício básico com a medicina, atormentou-se primeiro e acima de tudo a si mesmo, e depois a muitos outros.

— Como assim? — Perguntou ele.

— Dilatando a sua própria morte — respondi eu. Acompanhando passo a passo a sua doença, que era mortal, sem ser, ao que parece, capaz de se curar, atravessou a vida a tratar-se, sem se ocupar de mais nada, estafando-se a ver que não se desviasse da dieta habitual, custando-lhe a morrer, devido ao seu saber, até que atingiu a velhice (grifo nosso).

Nesta passagem Platão renega a atuação de Heródico, o qual adotou um 'combinado' de ginástica e dieta para protelar sua moléstia incurável. Sua prática, que "atormentou" a si mesmo e a outros, propiciou que vagasse pela vida doente — subentendendo-se aqui que tenha sofrido e feito sofrer com isto. Neste sentido, seria muito mais pertinente se declinar em buscar de forma 'ensandecida' o tratamento da enfermidade, uma vez que a morte, no caso de doenças incuráveis, pode ser muito mais redentora que algoz: "... se o corpo [do homem atingido por enfermidade mortal] não é capaz de resistir, a morte liberta-o de dificuldades" (Platão, 1987, passo 406e, grifo nosso).

A opção pela morte parece ser mais razoável nessas circunstâncias, as quais se referem a moléstias não passíveis de cura. Assim, Platão elabora uma censura aberta ao emprego da arte médica como forma de prolongar a vida, caso o enfermo esteja acometido por moléstia incurável. Para isso utiliza uma bela e coesa argumentação, a qual se mantém ainda extremamente atual, sobretudo no contexto dos debates bioéticos sobre o fim da vida, como foi possível se discutir em outras oportunidades (Schramm, 2001; Siqueira-Batista et al., 2002; Siqueira-Batista et al., 2003 a e b).



Ponderações finais

A cultura ocidental representa, nos seus mais distintos matizes, um genuíno legado da Grécia antiga. Diferentes campos do saber se estruturaram e alcançaram grande maturidade na sociedade helênica, imprimindo profundas marcas na sua 'evolução' histórica e conceitual subseqüente. Inserem-se neste âmbito a medicina hipocrática — cujo método em grande parte continua presente na prática clínica hodierna — e a filosofia — um 'produto' intrín-seco ao espírito grego, provavelmente a mais original e decisiva herança daquele povo.

Filosofia e medicina são contemporâneas — o 'registro civil' de uma e de outra dista pouco mais de cem anos: séculos VI e V a.C., respectivamente —, o que permitiu a emergência de uma marcante cumplicidade entre ambas (Siqueira-Batista, 2003a, p. 232). Esta constatação se torna mais diáfana à medida que: (1) identificam-se homens que se dedicavam, simultaneamente, aos dois misteres — como Alcmeón de Crótona e Empédocles de Agrigento; (2) percebe-se uma nítida influência da filosofia pré-socrática nas doutrinas médicas da Escola de Cós — como no equilíbrio (pitagórico) dos quatro humores e no conceito de , visto anteriormente; (3) na presença de idéias médicas nos textos filosóficos, cujo divisor de águas foi, indubitavelmente, o filósofo Platão.

Como se tentou demarcar neste breve ensaio, o pensador ateniense manifestou grande interesse por diferentes aspectos da medicina. Suas concepções médicas se articulam intimamente a todo manancial teórico de sua obra, representando preocupações com as relações entre o cosmo e o homem — e entre este a e pólis —, o corpo e a alma e, de um certo modo, com o próprio binômio vida e morte, uma vez que todo o seu esforço se dirige à idéia de uma alma tripartida que possui uma porção imortal — divina — 'habitando' o corpo mortal e perecível.

Há uma fecunda confluência de teorias médicas e filosóficas nos diálogos platônicos, como na idéia de saúde relacionada ao equilíbrio entre parte e todo — e entre corpo e alma —, cabendo ao tratamento um papel relevante no sentido de restabelecer a 'crase' perdida, tal como se pode perceber nos fragmentos filosóficos (como em Alcméon) e nos tratados hipocráticos — Dos humores e Da natureza do homem, entre outros (Hippocrates, 1992, pp. 10-1). Entretanto, o campo de atuação das condutas terapêuticas é restrito: as moléstias têm uma história natural — quiçá um 'prognóstico', tal como ensinado pelos médicos de Cós —, de modo que é passível de crítica a utilização de medidas corretivas para as enfermidades brandas — as quais não devem ser 'irritadas' pelos remédios —, bem como para as incuráveis, pois o tratamento destas últimas possibilita o prolongamento artificial e 'sofrido' da vida.

Eis o panorama: na complexidade e abrangência de suas especulações, Platão realiza uma leitura da medicina de sua época que se mantém extremamente atual, no contexto de seus problemas mais recônditos. Questões como: a relação entre homem e meio ambiente; a possibilidade de adoecimento psíquico por causas orgânicas; a explicação 'fisiológica' para a inexorabilidade de determinados estados nosológicos; e a conseqüente crítica aos tratamentos "desproporcionais" — que beirariam a 'obstinação terapêutica' — podem ser retomados hoje, como frutífero pano de fundo teórico para uma atitude mais reflexiva em relação à medicina.

Refletir sobre o fazer médico — eis uma perspectiva da maior importância em uma sociedade laica e plural. Procedendo assim, à moda platônica, abre-se um caminho para a construção de uma prática médica mais condizente com as necessidades humanas, voltada para a amplidão das suas possibilidades, mas também ciosa em relação aos limites de suas próprias mãos e dos meios por elas utilizados e aperfeiçoados, representados pela arte de curar e cuidar.



NOTAS

* Trabalho realizado no Departamento de Ciências Sociais/Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP)/Fundação Oswaldo Cruz e no Núcleo de Estudos em Filosofia e Saúde (NEFISA)/Fundação Educacional Serra dos Órgãos.

1 A palavra grega (physis) é traduzida, de forma muito simplista e rudimentar, como natureza. Etimologicamente, physis é formada pelo sufixo sis e pela raiz verbal phy. Na voz ativa a palavra significa 'produzir' e na voz média, 'crescer'. Acredita-se que o termo se origina a partir de características do reino vegetal, estendendo-se mais tarde o significado do verbo a ponto de assumir uma amplidão máxima. Para W. Jaeger (1995), em Paidéia, "a palavra abarca também a fonte originária de todas as coisas, aquilo a partir do qual se desenvolvem e pelo qual se renova constantemente o seu desenvolvimento; em outras palavras, a realidade subjacente às coisas de nossa experiência". Deste modo, a palavra physis indica aquilo que por si brota, emerge, surge de si próprio e se manifesta neste desdobramento, pondo-se no manifesto. A physis é tudo o que existe, nada existe que não seja . Para aprofundamento dessa discussão ver Bornheim (1999, p. 7).

2 No século XVI os textos platônicos foram traduzidos (para o latim) e publicados por H. Estienne, o qual dispôs a versão grega em duas colunas, cada uma delas divididas em letras a, b, c e d, precedidas por um número. Esta menção tem relevância porque as traduções subseqüentes mantiveram tal disposição, sendo bastante comum a referência a determinado 'passo' de um diálogo ao se comentar sobre um excerto específico.

3 A existência de dois mundos — sensível e inteligível — é uma das teses mais famosas do pensamento platônico. O mundo inteligível é constituído pelas Formas (ou Idéias) eternas e detentoras do ser, as quais são o modelo — paradigma incorruptível — para o mundo sensível (cópia do primeiro), e que detém as 'coisas' sujeitas ao devir: "O Demiurgo de que nos fala Platão no Timeu não é o mero artesão, o que simplesmente trabalha com as mãos, mas aquele que produz contemplando um modelo, transferindo para a cópia as virtudes desse modelo. O Demiurgo contempla e produz: há nele uma atividade teórica e uma prática, inseparáveis" (Platão, 1977, 'Introdução', p. 14). Sem embargo, é importante demarcar que as Idéias eternas não representam leis da natureza — algo imanente ao mundo sensível (como a alma nos milésios): "Os objetos que descobriu [Platão] não eram leis da natureza, se por estas entendermos fórmulas que descrevem a seqüência de fenômenos sensíveis, ou coisas desse gênero. Nas suas mãos, a teoria transformou-se numa doutrina da inteligível 'natureza das coisas' em oposição consciente ao materialismo que identificava a realidade com os componentes elementares dos corpos tangíveis" (Cornford, 1989, p. 74).

4 No Livro V de A República, Platão comenta que se estes objetos — as Idéias — podem ser conhecidos, eles têm de ser reais, uma vez que o perfeitamente real tem de ser necessariamente idêntico ao perfeitamente cognoscível. (Platão, 1987, passo 477a).

5 Na verdade o problema versa sobre a construção de um quadrado que deve ser o dobro de um dado quadrado, o que implica no teorema do quadrado da hipotenusa (este, uma provável descoberta de Pitágoras).

6 Apesar de, no Mênon, a questão do conhecimento já estar centrada na alma, não há alusão explícita à Teoria das Formas, consoante o discutido por M. Iglésias (Platão, 2001. p. 12): "O Mênon entretanto não faz nenhuma menção clara à teoria das Idéias transcendentes, nem mesmo na passagem sobre a reminiscência, onde é esperado que ela faria sua aparição."

7 Para Ivan M. Frias (2001, p. 108), "Vê-se que a alma é primeira. A estrutura corporal é um simples abrigo e meio de locomoção para a alma. O corpo encontra sua razão de ser na alma. Cada segmento anatômico tem uma finalidade derivada da função que é desempenhada pela parte da alma que lhe corresponde. Há, portanto, um finalismo em cada passagem da anátomo-fisiologia do Timeu que também está presente na descrição das estruturas onde efetivamente ocorre a ligação da alma com o corpo".



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História, Ciências, Saúde-Manguinhos

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